Excelentíssimo Senhor Doutor Desembargador Presidente do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

 

 

 

 

 

 

Protocolado nº 128.323/15

 

 

 

Ementa: Constitucional. Administrativo. Ambiental.  Lei nº 2.243, de 22 de maio de 2009, do Município de Tanabi. Ação Direta de Inconstitucionalidade. Concessão de benefícios do Programa Municipal de Apoio aos Catadores de Materiais Recicláveis somente aos filiados a única associação escolhida pelo ente municipal para promover o programa. Violação aos princípios da igualdade, meio ambiente ecologicamente equilibrado, impessoalidade, razoabilidade, interesse público, liberdade de associação, reserva da administração e separação dos poderes. Art. 144 da CE (Arts. 5º, XVII e XX, e 225 da CF). Arts. 5º, caput, 47, III e XIV, 111, 191 e 193, XVIII, da CE. 1. A outorga de benefícios municipais do Programa de Apoio aos Catadores de materiais recicláveis a 1 (uma) única associação destinada à promoção da reciclagem, comercialização e eventual industrialização desses materiais na urbe, com obrigação de filiação à única associação permitida para a consecução da atividade mencionada, não guarda sintonia com o princípio da igualdade, insculpido no art. 5º, caput, da Constituição Federal, e aplicado aos Municípios por força dos arts. 1º, 18 e 29 da Lei Fundamental de 1988, e do art. 144 da Carta Bandeirante, bem como ao princípio do meio ambiente ecologicamente equilibrado, ex vi do disposto nos arts. 191 e 193, XVIII, da CE. 2. A tentativa da edilidade em direcionar os enunciados normativos da lei atacada a uma determinada pessoa jurídica a ser futuramente escolhida pelo ente não se compatibiliza com o art. 111 da CE, por violação aos princípios da impessoalidade, razoabilidade e interesse público. 3. Ao condicionar a fruição dos benefícios da lei à filiação dos sujeitos a única associação escolhida pelo ente para promover os objetivos do programa em comento, o diploma vergastado impõe uma associação compulsória não autorizada pelo texto constitucional, ofendendo o primado da liberdade de associação (art. 5º, XVII E XX, CF). 4. A edição de ato normativo infralegal (decreto ou regulamento), objetivando dar fiel cumprimento aos diplomas legais editados pelo Poder Legislativo, se situa no espectro de atribuições privativas do Chefe do Poder Executivo, ex vi do disposto no art. 47, III e XIV, da CE, de sorte que previsão legal autorizando tal conduta revela-se atentatória à separação de poderes e à reserva da Administração (arts. 5º e 47, III e XIV, CE).

 

 

 

         O Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, no exercício da atribuição prevista no art. 116, VI, da Lei Complementar Estadual n. 734, de 26 de novembro de 1993 (Lei Orgânica do Ministério Público do Estado de São Paulo), em conformidade com o disposto no art. 125, § 2º, e no art. 129, IV, da Constituição Federal, e, ainda, nos arts. 74, VI, e 90, III, da Constituição do Estado de São Paulo, com amparo nas informações colhidas no incluso protocolado, vem, respeitosamente, perante esse Egrégio Tribunal de Justiça, promover a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE em face da Lei nº 2.243, de 22 de maio de 2009, do Município de Tanabi, pelos fundamentos a seguir expostos:

 

I – DO Ato Normativo Impugnado

A Lei nº 2.243, de 22 de maio de 2009, do Município de Tanabi, que “Institui o Programa Municipal de Apoio aos Catadores de Materiais Recicláveis do Município de Tanabi, dando outras providências, tem a seguinte redação:

“Art. 1°. Fica instituído Programa Municipal de Apoio aos Catadores de Materiais Recicláveis do Município de Tanabi.

Art. 2°. Através do Programa, o Município proporcionará os seguintes benefícios aos participantes:

I - assistência técnica para constituição de uma Associação destinada à reciclagem, comercialização e eventual industrialização de materiais recicláveis, para geração de emprego renda;

II - articulação junto ao empresariado local no sentido de buscar doações que viabilizem bom funcionamento da associação;

III- disponibilizar, através dos mecanismos legais cabíveis, local equipamentos para funcionamento da associação, pelo período necessário à sua consolidação.

Art. 3°. A participação no Programa está condicionada à filiação na Associação.

Art. 4°. Fica autorizada a Prefeitura Municipal celebrar os convênios que se fizerem necessários execução desta Lei.

Art. 5°. As despesas decorrentes da execução desta Lei correrão por conta do orçamento vigente, suplementadas se necessário.

Art. 6°. Fica autorizado Executivo Municipal regulamentar a presente Lei por Decreto.

Art. 7°. Esta Lei entra em vigência na data da sua publicação.

Art. 8°. Ficam revogadas todas as disposições em contrário.”

         O diploma impugnado padece de incompatibilidade vertical com a Constituição do Estado de São Paulo, como adiante será demonstrado.

 

II – DO PARÂMETRO DA FISCALIZAÇÃO ABSTRATA DE CONSTITUCIONALIDADE

A Lei nº 2.243, de 22 de maio de 2009, do Município de Tanabi, contraria frontalmente a Constituição do Estado de São Paulo, à qual está subordinada a produção normativa municipal, ante a previsão dos arts. 1º, 18, 29 e 31, da Constituição Federal.

Cumpre rememorar que os Municípios, no exercício de sua competência, devem observância aos princípios estabelecidos na Constituição Federal e na Constituição Paulista, nos termos do art. 29 da Carta Federal, e do art. 144 da Carta Paulista.

Aludido dispositivo da Constituição Paulista, ao condicionar a autonomia municipal, consiste em norma constitucional remissiva à Constituição Federal, e que incorpora - não bastasse a observância obrigatória da própria norma constitucional central - a repartição de competências administrativas e legislativas delineada pela Constituição Federal de 1988, de tal sorte a admitir o contencioso estadual ou municipal pelo confronto direto e frontal com a norma remissiva adotada pela Constituição Estadual, conforme decidido pelo Excelso Pretório, in verbis:

“1. Agravo regimental em reclamação constitucional. 2. Competência dos Tribunais de Justiça estaduais para exercer controle abstrato de constitucionalidade de leis ou atos normativos estaduais ou municipais contestados em face de Constituição Estadual. 3. Legitimidade da invocação, como referência paradigmática para controle concentrado de constitucionalidade de leis ou atos normativos municipais/estaduais, de cláusula de caráter remissivo que, inscrita na Constituição estadual, remete a norma constante da própria Constituição Federal, incorporando-a, formalmente, ao ordenamento constitucional do Estado-membro. 4. Invocação de paradigma. Reclamação 7.396. Processo de caráter subjetivo. Efeitos restritos às partes. 5. Agravo regimental a que se nega provimento”. (STF, AgR-Rcl 10.406-GO, 2ª Turma, Rel. Min. Gilmar Mendes, 26-08-2014, v.u., DJe 16-09-2014). - g.n.

 

“RECLAMAÇÃO. A QUESTÃO DA PARAMETRICIDADE DAS CLÁUSULAS CONSTITUCIONAIS ESTADUAIS, DE CARÁTER REMISSIVO, PARA FINS DE CONTROLE CONCENTRADO, NO ÂMBITO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA LOCAL, DE LEIS E ATOS NORMATIVOS ESTADUAIS E/OU MUNICIPAIS CONTESTADOS EM FACE DA CONSTITUIÇÃO ESTADUAL. RECLAMAÇÃO A QUE SE NEGA SEGUIMENTO. Revela-se legítimo invocar, como referência paradigmática, para efeito de controle abstrato de constitucionalidade de leis ou atos normativos estaduais e/ou municipais, cláusula de caráter remissivo, que, inscrita na Constituição Estadual, remete, diretamente, às regras normativas constantes da própria Constituição Federal, assim incorporando-as, formalmente, mediante referida técnica de remissão, ao plano do ordenamento constitucional do Estado-membro. Com a técnica de remissão normativa, o Estado-membro confere parametricidade às normas, que, embora constantes da Constituição Federal, passam a compor, formalmente, em razão da expressa referência a elas feita, o ‘corpus’ constitucional dessa unidade política da Federação, o que torna possível erigir-se a própria norma constitucional estadual, de conteúdo remissivo, à condição de parâmetro de confronto, para os fins a que se refere o art. 125, § 2º da Constituição da República. Doutrina. Precedentes” (STF, Rcl 2.462-RJ, Rel. Min. Celso de Mello, 30-04-2015, DJe 06-05-2014). – g.n.

Feitas estas considerações, a legislação objurgada do Município de Tanabi, ao prever a concessão de benefícios do Programa de Apoio aos Catadores de Materiais Recicláveis apenas a uma associação, viola os seguintes dispositivos constitucionais estaduais, bem como dispositivos da Constituição Federal:

CF/88:

Art. 5º

(...)

XVII - é plena a liberdade de associação para fins lícitos, vedada a de caráter paramilitar;

(...)

XX - ninguém poderá ser compelido a associar-se ou a permanecer associado;

(...)

Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações.”

 

CESP:

“Artigo 5º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

(...)

Artigo 47 - Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:

(...)


III - sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como, no prazo nelas estabelecido, não inferior a trinta nem superior a cento e oitenta dias, expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução, ressalvados os casos em que, nesse prazo, houver interposição de ação direta de inconstitucionalidade contra a lei publicada;” (NR)


(**) Redação dada pela Emenda Constitucional nº 24, de 23 de janeiro de 2008.

(...)

XIV - praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do Executivo;”

(...)

Artigo 111 – A administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes do Estado, obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, razoabilidade, finalidade, motivação, interesse público e eficiência.

(...)

Artigo 144 - Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.

(...)

Artigo 191 - O Estado e os Municípios providenciarão, com a participação da coletividade, a preservação, conservação, defesa, recuperação e melhoria do meio ambiente natural, artificial e do trabalho, atendidas as peculiaridades regionais e locais e em harmonia com o desenvolvimento social e econômico.

(...)

Artigo 193 - O Estado, mediante lei, criará um sistema de administração da qualidade ambiental, proteção, controle e desenvolvimento do meio ambiente e uso adequado dos recursos naturais, para organizar, coordenar e integrar as ações de órgãos e entidades da administração pública direta e indireta, assegurada a participação da coletividade, com o fim de:

(...)

XVIII - incentivar e auxiliar tecnicamente as associações de proteção ao meio ambiente constituídas na forma da lei, respeitando a sua autonomia e independência de atuação;”

III – Da violação aos princípios da igualdade e do meio ambiente ecologicamente equilibrado (arts. 5º e 225 da CF; Arts. 191 e 193, XVIII, CE)

         Prevê a Lei nº 2.243/09, precisamente em seu art. 2º, I, que a outorga de benefícios municipais do Programa de Apoio aos Catadores de materiais recicláveis está condicionada à formação de 1 (uma) única associação destinada à promoção da reciclagem, comercialização e eventual industrialização desses materiais na urbe, devendo os interessados em participar do referido programa se filiar à única associação permitida para a consecução da atividade mencionada, segundo se abstrai da exegese do art. 3º da lei vergastada.

         No entanto, cumpre destacar que tal previsão limitadora à concessão dos benefícios do programa a outras associações instituídas no âmbito municipal não guarda sintonia com o princípio da igualdade, insculpido no art. 5º, caput, da Constituição Federal, e aplicado aos Municípios por força dos arts. 1º, 18 e 29 da Lei Fundamental de 1988, e do art. 144 da Carta Bandeirante.  

Vale lembrar que qualquer restrição demanda a existência de relação entre o fator ou elemento discriminante, o discrímen e a finalidade da discriminação, ou seja, impende que exista uma adequação racional entre o tratamento diferençado construído e a razão diferencial que lhe serviu de supedâneo(Celso Antonio Bandeira de Mello. O Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1978, p. 49).

Além disso, a diferenciação feita pelo legislador apenas será possível quando, objetivamente, constatar-se um fator de discrímen que dê razoabilidade à diferenciação de tratamento contida na lei, pois a igualdade pressupõe um juízo de valor e um critério justo de valoração, proibindo o arbítrio, que ocorrerá “quando a disciplina legal não se basear num: (i) fundamento sério; (ii) não tiver um sentido legítimo; (iii) estabelecer diferenciação jurídica sem um fundamento razoável” (J. J. Gomes Canotilho. Direito constitucional e teoria da constituição, Coimbra: Almedina, 3ª ed., 1998, pp. 400-401).

Pois bem.

Partindo dessas premissas, inexiste fundamento legítimo que justifique a limitação dos benefícios conferidos pela Lei nº 2.243/09 a outras associações instituídas no Município de Tanabi e que almejem promover o objeto alvo do programa em epígrafe.

Isso porque a abertura deste programa a outras pessoas e associações interessadas que preencham os requisitos legais somente tende a concretizar exponencialmente o dever constitucional de proteção ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, cujo dever recai sobre toda a coletividade, segundo dispõe o art. 191 da Constituição Estadual, lembrando que a reciclagem se situa na temática ambiental, havendo, inclusive, inúmeros diplomas regentes sobre a matéria, a exemplo da Lei Federal nº 12.305/10, que institui a Política Nacional de Resíduos Sólidos, sendo, portanto, absolutamente injustificável restringir o acesso destes benefícios a outras pessoas que buscam atender aos anseios protecionistas do Constituinte Originário, sob pena de diferenciação atentatória ao primado da isonomia.

Por óbvio, a diferenciação entre sujeitos não é vedada pelo ordenamento. Na verdade, é promovida por ele em situações justificadas por circunstâncias razoáveis que transcendem os limites jurídicos, havendo, inclusive, inúmeros instrumentos legais assegurando tal conduta.

Entretanto, a possibilidade de tratamento diversificado a administrados pertencentes a um mesmo corpo deve ser feita com extrema cautela.

Não se pode conferir a alguns uma conjuntura favorecida à luz de critérios obscuros ou mesmo carentes de legitimidade, sob pena de desviar da finalidade precípua em igualar, criando, ao revés, um privilégio fruído por poucos e indesejado pelo próprio ordenamento.

Na hipótese em apreço, o legislador municipal achou por bem conferir a apenas 1 (uma) associação benefícios públicos para a concretização do objetivo perquirido pela lei, como se este monopólio de atuação fosse mais eficaz para a tutela do bem difuso em questão.

Ocorre que tal diferenciação, editada com o pretexto de se tutelar de forma mais profícua o meio ambiente ecologicamente equilibrado, revela-se, na verdade, odiosa e sem respaldo constitucional, principalmente levando-se em consideração que seria mais salutar pluralizar as ferramentas de proteção ambiental a diversos agentes interessados na tutela desse bem difuso para atingir à sadia qualidade de vida das gerações presentes e futuras via proteção ambiental.

Aliás, a própria Carta Bandeirante possui previsão normativa no sentido indicado, que evidencia sua predileção por um sistema mais plural e democrático de proteção ambiental, no qual incumbe ao Estado incentivar e auxiliar tecnicamente as associações de proteção ao meio ambiente, conforme se observa no art. 193, XVIII, de seu texto:

“Artigo 193 - O Estado, mediante lei, criará um sistema de administração da qualidade ambiental, proteção, controle e desenvolvimento do meio ambiente e uso adequado dos recursos naturais, para organizar, coordenar e integrar as ações de órgãos e entidades da administração pública direta e indireta, assegurada a participação da coletividade, com o fim de:

(...)

XVIII - incentivar e auxiliar tecnicamente as associações de proteção ao meio ambiente constituídas na forma da lei, respeitando a sua autonomia e independência de atuação;”

No esteio dos fundamentos esposados, a referida legislação mostra-se absolutamente desarrazoada e extremamente discriminatória, violando o princípio da isonomia (art. 5º, CF) e também arrefecendo a possibilidade de maior proteção ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, haja vista ratio normativa na contramão do objetivo plasmado nos arts. 191 e 193, XVII, da CE, por privilegiar somente 1 (uma) associação no Município no recebimento de recursos do programa, ao revés de se fomentar a proteção do meio ambiente na localidade por outros agentes interessados, o que tornaria mais eficaz a tutela do referido bem.

 

Iv – Da ofensa aos princípios da impessoalidade, razoabilidade e interesse público

Não obstante as inconstitucionalidades mencionadas no tópico anterior, a legislação impugnada também não se coaduna com os princípios da impessoalidade, razoabilidade e interesse público, insculpidos no art. 111 da Carta Bandeirante.

Conforme explanado no ponto antecedente, a lei vergastada outorga benefícios municipais do Programa de Apoio aos Catadores de materiais recicláveis a 1 (uma) única associação destinada à promoção da reciclagem, comercialização e eventual industrialização desses materiais na urbe, havendo, portanto, uma tentativa de se direcionar seus enunciados normativos a uma determinada pessoa jurídica a ser futuramente escolhida pelo ente.

Ocorre que esse intento do legislador municipal não se compatibiliza com o art. 111 da Constituição Estadual, mais especificamente com os princípios da impessoalidade, razoabilidade e interesse público, os quais revelam-se concatenados na questão sob apreciação e são de observância imperiosa pelos entes políticos da federação, pois norteiam toda atividade administrativa praticada por esses e eventuais pessoas vinculadas a eles.

Segundo o escólio de Jose dos Santos Carvalho Filho, o princípio da impessoalidade pode ser compreendido como:

“(...) “o que não pertence a uma pessoa em especial”, ou seja, aquilo que não pode ser voltado especialmente a determinadas pessoas. O princípio objetiva a igualdade de tratamento que a Administração deve dispensar aos administrados que se encontrem em idêntica situação jurídica. Nesse ponto, representa uma faceta do princípio da isonomia. Por outro lado, para que haja verdadeira impessoalidade, deve a Administração voltar-se exclusivamente para o interesse público, e não para o privado, vedando-se, em consequência, sejam favorecidos alguns indivíduos em detrimento de outros e prejudicados alguns para favorecimento de outros. Aqui reflete a aplicação do conhecido princípio da finalidade, sempre estampado na obra dos tratadistas da matéria, segundo o qual o alvo a ser alcançado pela Administração é somente o interesse público, e não se alcança o interesse público se for perseguido o interesse particular, porquanto haverá nesse caso sempre uma atuação discriminatória.” (Carvalho Filho, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo, 27ª edição, Ed. Atlas, São Paulo, 2014, p. 20-21)

Na esteira de raciocínio da lição supra, quando a edilidade promulga diploma conferido benefícios a uma só pessoa sem que haja fundamento razoável para tanto, em verdade acaba instituindo privilégio odioso e ilegítimo que atenta contra seu dever constitucional de tratar os administrados de forma equânime e impessoal, se distanciando do interesse público que deveria perquirir, pois este busca não satisfazer interesses privados ou de grupos diminutos, mas de todo o corpo social.

No caso, quanto maior o número de agentes promovendo a reciclagem de materiais no Município de Tanabi a probabilidade de se atingir o interesse público na hipótese em comento será maior, pois almeja a coletividade uma tutela mais efetiva do meio ambiente ecologicamente equilibrado, não se podendo defender, portanto, esse tipo de legislação, vez que ofende gravemente os princípios da impessoalidade, razoabilidade e interesse público, devendo, portanto, ser extirpada do ordenamento municipal.

 

 

V - DA VIOLAÇÃO À LIBERDADE DE ASSOCIAÇÃO

Ademais, o diploma objurgado igualmente viola a liberdade de associação prevista no art. 5º, incisos XVII e XX, da Constituição Federal, aplicável aos Municípios por força do art. 144 da Constituição do Estado de São Paulo.

Com efeito, a legislação impugnada condiciona a fruição de benefícios municipais do Programa de Apoio aos Catadores de materiais recicláveis aos filiados à única associação escolhida pela municipalidade para promover a reciclagem, comercialização e eventual industrialização desses materiais na urbe (arts. 2º e 3º).

Ou seja, somente poderá participar do programa em tela aqueles que estejam filiados à associação escolhida pelo ente para promover os objetivos da lei atacada, o que representa indevida associação compulsória não autorizada pelo texto constitucional, ante o primado da liberdade de associação previsto no art. 5º, XVII, CF.

Sobre o conteúdo da liberdade de associação, anota Paulo Gustavo Gonet Branco:

“Os dispositivos da Lei Maior brasileira a respeito da liberdade de associação revelam que, sob a expressão, estão abarcadas distintas faculdades, tais como (a) a de constituir associações, (b) a de ingressar nelas, (c) a de abandoná-las e de não associar, e, finalmente, (d) a de sócios se auto-organizarem e desenvolverem as suas atividades associativas”. (Curso de Direito Constitucional, p.p 303/305, Editora Saraiva, 2013).

Mais adiante, assevera que “a associação pressupõe ato de vontade” (“Curso de Direito Constitucional”; Ed. Saraiva: São Paulo, 2013- pp. 303-305).

Com efeito, impende mencionar que a jurisprudência é fértil ao censurar a restrição à liberdade de associação, conforme se depreende da leitura das ementas ora colacionadas sobre a vedação ao direito examinado em questões afetas à instituição de condomínios atípicos, e que podem ser utilizadas para o deslinde da presente questão, ante a similitude de sua ratio decidendi com a problemática exposta. Vejamos:

“AGRAVO REGIMENTAL. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA; EM, RECURSO ESPECIAL, ASSOCIAÇÃO DE MORADORES. CONDOMÍNIO ATÍPICO. COBRANÇA DE NÃO ASSOCIADO IMPOSSIBILIDADE. APLICAÇÃO DO 'ENUNCIADO SUMULAR N.° 168/STJ. Consoante entendimento sedimentado no âmbito da Eg, Segunda Seção Desta Corte Superior, as taxas de manutenção instituídas por associação de moradores não podem ser impostas a proprietário de imóvel que não é associado, nem aderiu ao ato que fixou o encargo (...) 3. Agravo regimental a que se nega provimento”.  (STJ, AgRG nos EREesp nº 961927/RJ, Rel. Ministro Vasco Della Giustina, DJE 15/09/2010).

“AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ESPECIAL. CIVIL. AÇÃO DE COBRANÇA. ASSOCIAÇÃO DE MORADORES. CONDOMÍNIO ATÍPICO. COTAS RESULTANTES DE DESPESAS EM PROL DA SEGURANÇA E CONSERVAÇÃO DE ÁREA COMUM. COBRANÇA DE QUEM NÃO É ASSOCIADO. IMPOSSIBILIDADE. 1. Consoante entendimento firmado pela Segunda Seção do STJ, “as taxas de manutenção criadas por associação de moradores, não podem ser impostas a proprietário de imóvel que não é associado, nem aderiu ao ato que instituiu o encargo” (ERESP nº 444.931/SP, rel. Min. Fernando Gonçalves, rel. p/o acórdão Min. Humberto Gomes de Barros, DJ de 1º.2.2006) (...) 2 – Agravo regimental desprovido”. (STJ, AgRG no REsp 613474/RJ, Órgão Julgador 4ª Turma, Rel. João Otávio de Noronha, DJE 05/10/2009).

“(...) Existem precedentes concluindo que o condomínio, ainda que atípico, tem legitimidade para propor ação de cobrança de despesas condominiais. No caso, todavia, a autora da ação de cobrança é simples associação de moradores – quando muito, o que se denomina condomínio atípico. As deliberações desses condomínios atípicos não podem atingir quem delas não tomou parte. Vale dizer: as obrigações assumidas pelos que espontaneamente se associaram para ratear as despesas comuns não alcançam terceiros que a elas não aderiram”. (TJ/SP, Apelação nº 0041203-52.2004.8.26.0114, Relator Des. Moreira Viegas, DJE 3/10/2012).

Ora, se ninguém pode ser compelido a se associar ou a se manter associado, o condicionamento imposto pela lei atacada para fruição de seus benefícios demonstra a patente desobediência do diploma examinado ao art. 5º, XVII, da CF.

 

VI - Da ofensa à reserva da administração e da separação dos poderes

Por fim, a presente ação não se pode furtar de mencionar que o art. 6º do ato normativo ora impugnado, ainda que de iniciativa do Executivo, viola o princípio da separação de poderes, previsto no art. 5º, caput, bem como o art. 47, III e XIV, da Constituição do Estado, aplicáveis aos Municípios por força do art. 144 da Carta Paulista.

A questão é objetiva.

Cabe exclusivamente ao Poder Executivo a edição de ato normativo infralegal, leia-se, decreto ou regulamento, objetivando dar fiel cumprimento aos diplomas legais editados pelo Poder Legislativo, ex vi do disposto no art. 47, III, da Constituição Estadual, prescindindo, portanto, de autorização legislativa para a consecução dessa atribuição por se tratar de ato da competência privativa do Chefe do Poder Executivo.

Assim, quando o Poder Legislativo do Município edita lei autorizando o Poder Executivo a desempenhar atribuição que lhe fora constitucionalmente assegurada, como a da presente demanda, invade, indevidamente, esfera que é própria da atividade do Administrador Público, atentando contra o princípio da separação de poderes.

Mesmo sendo o ato normativo de iniciativa do Chefe do Executivo resta configurada a inconstitucionalidade, uma vez que este agente não necessita de autorização legislativa para atuar naquilo que está na esfera de sua competência constitucional.

         Em suma, cabe nitidamente à Administração Pública, e não ao legislador, deliberar a respeito da conveniência e oportunidade da atuação administrativa concernente a conferir fiel cumprimento à lei por meio de decretos e regulamentos de sua lavra.

A inconstitucionalidade, portanto, decorre da violação da regra da separação de poderes, prevista na Constituição Paulista e aplicável aos Municípios (arts. 5º, 47, III e XIV, e 144, CE).

É pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público.

De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

O artigo impugnado, na prática, invadiu a esfera da gestão administrativa, que cabe ao Poder Executivo, e envolve a sua competência outorgada pelo Constituinte Originário para expedir decretos e regulamentos destinados a dar fiel execução à lei de autoria da edilidade, ofendendo, por conseguinte, a garantia constitucional da separação dos poderes.

Cumpre recordar, aqui, o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. (...) O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”. Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art. 2º c/c o art. 31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15. ed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p. 708 e 712).

A jurisprudência do E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo corrobora o entendimento aqui sustentado.

Confiram-se, a título de exemplificação, os seguintes precedentes do Col. Órgão Especial: ADI 149.044-0/8-00, rel. des. Armando Toledo, j. 20.02.2008; ADI 134.410-0/4, rel. des. Viana Santos, j. 05.03.2008; ADI 12.345-0 - São Paulo - 15.05.91, rel. des. Carlos Ortiz; ADI n. 096.538-0, rel. Viseu Júnior - 12.02.03; ADI n. 123.145-0/9-00, rel. des. Aloísio de Toledo César – 19.04.06; ADI n. 128.082-0/7-00, rel. des. Denser de Sá – 19.07.06; ADI n. 163.546-0/1-00, rel. des. Ivan Sartori, j. 30.7.2008.

Nesse mesmo sentido o entendimento do Col. STF, colhido em julgado que, mutatis mutandis, aplica-se à hipótese em exame:

“(...)

O princípio constitucional da reserva de administração impede a ingerência normativa do Poder Legislativo em matérias sujeitas à exclusiva competência administrativa do Poder Executivo. É que, em tais matérias, o Legislativo não se qualifica como instância de revisão dos atos administrativos emanados do Poder Executivo. (...) Não cabe, desse modo, ao Poder Legislativo, sob pena de grave desrespeito ao postulado da separação de poderes, desconstituir, por lei, atos de caráter administrativo que tenham sido editados pelo Poder Executivo, no estrito desempenho de suas privativas atribuições institucionais. Essa prática legislativa, quando efetivada, subverte a função primária da lei, transgride o princípio da divisão funcional do poder, representa comportamento heterodoxo da instituição parlamentar e importa em atuação ultra vires do Poder Legislativo, que não pode, em sua atuação político-jurídica, exorbitar dos limites que definem o exercício de suas prerrogativas institucionais.” (RE 427.574-ED, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 13-12-2011, Segunda Turma, DJE de 13-2-2012.)

(...)”

Destarte, é possível afirmar que o art. 6º da Lei nº 2.243, de 22 de maio de 2009, do Município de Tanabi, ofende frontalmente a Constituição do Estado de São Paulo em seus artigos 5º, “caput”, 47, III e XIV, e 144.

VII – DO PEDIDO

Face ao exposto, requer-se o recebimento e o processamento da presente ação para que, ao final, seja julgada procedente, com a declaração da inconstitucionalidade da Lei nº 2.243, de 22 de maio de 2009, do Município de Tanabi.

Requer-se, ainda, sejam requisitadas informações ao Prefeito e à Câmara Municipal de Tanabi, bem como posteriormente citado o Procurador-Geral do Estado, para se manifestar sobre os atos normativos impugnados, protestando por nova vista, posteriormente, para manifestação final.

 

Termos em que pede deferimento.

 

São Paulo, 07 de janeiro de 2016.

 

 

 

Márcio Fernando Elias Rosa

Procurador-Geral de Justiça

 

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Protocolado n. 128.323/2015

Interessado: Promotoria de Justiça de Tanabi  

 

 

 

 

 

 

 

1.     Distribua-se a petição inicial da ação direta de inconstitucionalidade, em face da Lei nº 2.243, de 22 de maio de 2009, do Município de Tanabi, junto ao Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

2.     Oficie-se ao interessado, informando-lhe a propositura da ação, com cópia da petição inicial.

 

São Paulo, 07 de janeiro de 2016.

 

 

 

Márcio Fernando Elias Rosa

Procurador-Geral de Justiça

 

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