EXCELENTÍSSIMO SENHOR DESEMBARGADOR PRESIDENTE DO EGRÉGIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Protocolado n. 123.819/15

 

 

 

 

 

Ementa: Constitucional. Ação direta de inconstitucionalidade. Art. 29, incisos V e VI, da Lei nº 973, de 20 de dezembro de 1995, do Município de Iracemápolis. Requisitos para a candidatura a membro do Conselho Tutelar. Ofensa ao princípio democrático e ao do pacto federativo (Invasão da competência da União para, concorrentemente com os Estados e Distrito Federal, legislar sobre proteção à Infância e à Juventude).

 

 

 

                   O Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, no exercício da atribuição prevista no art. 29, I, da Lei n. 8.625, de 12 de fevereiro de 1993 (Lei Orgânica Nacional do Ministério Público), no art. 103, II, da Lei Complementar Estadual n. 734, de 26 de novembro de 1993 (Lei Orgânica do Ministério Público de São Paulo), e no art. 90, III, da Constituição do Estado de São Paulo, em conformidade com o disposto nos arts. 125, § 2º e 129, IV, da Constituição Federal, com amparo nas informações colhidas no incluso protocolado, vem, respeitosamente, perante esse Egrégio Tribunal de Justiça, promover a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE em face dos incisos V e VI do artigo 29 da Lei nº 973, de 20 de dezembro de 1995, do Município de Iracemápolis, pelos fundamentos a seguir expostos:

1.                DO ATO NORMATIVO IMPUGNADO

         O artigo 29 da Lei nº 973, de 20 de dezembro de 1995, do Município de Iracemápolis, tem, com o nosso destaque, a seguinte redação:

“Art. 29 - São requisitos para candidatar-se a exercer as funções de Conselheiro Tutelar:

I – reconhecida idoneidade moral;

II – idade superior a 21 (vinte e um) anos;

III – residir no Município de Iracemápolis há pelo menos 04 (quatro) anos;

IV – ser eleitor no Município de Iracemápolis e estar quite com a Justiça Eleitoral;

V – não ser vereador;

VI – não ser funcionário público de qualquer espécie;

VI – ter o mínimo 2º grau completo;

VIII – comprovar mediante certidão de cartório distribuidor da Comarca de Iracemápolis não estar sendo processado criminalmente ou ter contra si, sentença criminal condenatória transitada em julgado.

VIX – participar de curso de capacitação promovido pelo CMDA e de prova seletiva (Incluído pela Lei Municipal nº 1.340, de 2002).” (grifo nosso)

         Cumpre observar, no entanto, que a Lei Federal nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), ao tratar do Conselho Tutelar, dispõe:

“Art. 133 - Para a candidatura a membro do Conselho Tutelar, serão exigidos os seguintes requisitos:

I – reconhecida idoneidade moral;

II – idade superior a vinte e um anos;

III – residir no município”

         Tendo em vista o citado art. 133 da Lei Federal nº 8.060/90, o  Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente – CONANDA editou a Resolução nº 170, de 17 de março de 2010, dispondo:

“Art. 12 - Para a candidatura a membro do Conselho Tutelar serão exigidos os critérios do art. 133 da Lei nº 8.069, de 1990, além de outros requisitos expressos na legislação local específica.

§ 1º - Os requisitos adicionais devem ser compatíveis com as atribuições do Conselho Tutelar, observada a Lei nº 8.069, de 1990 e a legislação municipal ou do Distrito Federal.

§ 2º - Entre os requisitos adicionais para candidatura a membro do Conselho Tutelar a serem exigidos pela legislação local, devem ser consideradas:

I - a experiência na promoção, proteção e defesa dos direitos da criança e do adolescente;

II - comprovação de, no mínimo, conclusão de ensino médio.

§ 3º - Havendo previsão na legislação local é admissível aplicação de prova de conhecimento sobre o direito da criança e do adolescente, de caráter eliminatório, a ser formulada por uma comissão examinadora designada pelo Conselho Municipal ou do Distrito Federal dos Direitos da Criança e do Adolescente, assegurado prazo para interposição de recurso junto à comissão especial eleitoral, a partir da data da publicação dos resultados no Diário Oficial do Município, do Distrito Federal ou meio equivalente.” (sic - grifo nosso)

         Considerando o que dispõe os arts. 24, XV, e 30, II, da Constituição Federal, o art. 133 do Estatuto da Criança e do Adolescente, norma federal editada de acordo com a competência concorrente da União, Estados e Distrito Federal para legislar sobre proteção à infância e à juventude, bem ainda o quanto estabelecido nos §§ 2º e 3º da Resolução nº 170/2010 do CONANDA, depreende-se que a lei impugnada - ao exigir que o candidato a membro do Conselho Tutelar não seja vereador, nem funcionário público de qualquer espécie - criou restrições à capacidade eleitoral passiva, em descompasso com as normas gerais federais e que tampouco podem ser compreendidas no âmbito da competência suplementar de interesse local. 

         Como será demonstrado, os incisos V e VI do art. 29 da Lei nº 973, de 20 de dezembro de 1995, de Iracemápolis, são inconstitucionais por violarem o art. 144 da Constituição Estadual, conforme passaremos a expor.

II – O parâmetro da fiscalização abstrata de constitucionalidade

         De proêmio, cumpre esclarecer que a autonomia municipal é condicionada pelo art. 29 da Constituição da República. O preceito estabelece que a Lei Orgânica Municipal e sua legislação devem observância ao disposto na Constituição Federal e na respectiva Constituição Estadual, sendo reproduzido pelo art. 144 da Constituição do Estado, como denota-se de sua transcrição:

Art. 144 - Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por Lei Orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.”

         Eventual ressalva à aplicabilidade das Constituições Federal e Estadual só teria, ad argumentandum tantum, espaço naquilo que a própria Constituição da República reservou como privativo do Município, não podendo alcançar matéria não inserida nessa reserva, nem em assunto sujeito aos parâmetros limitadores da auto-organização municipal ou aqueles que contêm remissão expressa ao direito estadual.

         Posta essa premissa, os incisos IV e V do art. 29 da Lei nº 973, de 20 de dezembro de 1995, de Iracemápolis, são incompatíveis com os seguintes dispositivos da Constituição Federal, de observância obrigatória nos municípios:

“Art. 1º - A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

(...)

Parágrafo Único - Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.”

 

“Art. 24 - Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:

(...)

XV – proteção à infância e à juventude”

 

         Em especial, os dispositivos legais impugnados contrariam o princípio democrático (art. 1º da Constituição Federal) e também violam a competência normativa da União para, concorrentemente com o Estado, legislar sobre a proteção à infância e juventude (art. 24, XV, da Constituição Federal), os quais, vale repetir, são aplicáveis aos Municípios por força do art. 144, da Constituição do Estado.

III – DA VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DEMOCRÁTICO E AO PRINCÍPO FEDERATIVO

         Assentadas essas premissas, cumpre analisar, pormenorizadamente, de que forma os dispositivos normativos impugnados, ao desrespeitarem princípios da Carta Magna, violam o artigo 144 da Constituição do Estado de São Paulo.  

         A Constituição Federal de 1988 estabelece, como um de seus princípios estabelecidos o denominado princípio democrático, apontado, inclusive, no art. 1º da Constituição da República.

         Os princípios fundamentais da Constituição Federal, segundo José Afonso da Silva, podem ser assim discriminados: (a) princípios relativos à existência, forma e tipo de Estado; (b) princípio relativo à forma de governo; (c) princípio relativo à organização dos Poderes; (d) princípios relativos à organização da sociedade; (e) princípios relativos à vida política; (f) princípios relativos ao regime democrático – princípio da soberania popular, princípio da representação política e princípio da participação popular direta (art. 1º, parágrafo único); (g) princípios relativos à prestação positiva do Estado; e (h) princípios relativos à comunidade internacional (in Comentário Contextual à Constituição, Malheiros, 7ª edição, pagina 31).

          Discorrendo sobre o princípio democrático, afirma o mestre que “Democracia é conceito histórico. Não sendo, por si, um valor-fim, mas meio e instrumento de realização de valores essenciais de convivência humana, que se traduzem basicamente nos direitos fundamentais do homem, compreende-se que a historicidades destes a envolva na mesma medida, enriquecendo-lhes o conteúdo a cada etapa do evolver social, mantido sempre o princípio básico de que ela revela um regime político em que o poder repousa na vontade do povo. Sob esse aspecto, a democracia não é um mero conceito político abstrato e estático, mas é um processo de afirmação do povo e de garantia dos direitos fundamentais que o povo vai conquistando no correr da história”.

         E remata o renomado constitucionalista: “O povo é a fonte primária do poder, que caracteriza o princípio da soberania popular, fundamento do regime democrático (...) É no regime de democracia representativa que se desenvolvem a cidadania e as questões da representatividade, que tende a fortalecer-se no regime de democracia participativa. A Constituição combina representação e participação direta, tendendo, pois, para a democracia participativa. É o que desde o parágrafo único do art. 1º já está configurado, quando ai se diz que ‘todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos, [democracia representativa] ou diretamente’ [democracia participativa]. Consagram-se nesse dispositivo os princípios fundamentais da ordem democrática adotada” (Op. cit., pag. 43 – grifo nosso)

         No caso em exame, ao estabelecer como requisitos para candidatura a membro do Conselho Tutelar “não ser vereador” e “não ser funcionário público de qualquer espécie” (incisos V e VI), a lei municipal restringiu desarrazoadamente a capacidade eleitoral passiva e o processo democrático de escolha de tal função, extrapolando a autonomia municipal.

         As condições acima mencionadas não foram previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente (idoneidade moral, idade superior a 21 anos e domicílio no Município, art. 133), tampouco dele podem ser extraídas, em eventual competência normativa suplementar, permitida nos termos do art. 30, II, da Constituição Federal, pois ausente o interesse local.

Tal conclusão, inclusive, é corroborada pelos §§ 2º e 3º da Resolução nº 170, de 10 de dezembro de 2014, do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, que estabelecem parâmetros para fixação de requisitos adicionais por leis municipais.  

         Ao assim proceder, reduzindo a capacidade eleitoral passiva, o legislador municipal feriu o princípio democrático, ou princípio da soberania popular, porque impôs limitações não previstas, nem compatíveis com a lei federal para a eleição, livre e democrática, dos Conselheiros Tutelares.

         Em vista disso, requer-se seja declarada a inconstitucionalidade dos incisos V e VI do art. 29 da Lei nº 973, de 20 de dezembro de 1995, do Município de Iracemápolis, por violação do princípio democrático.

         Não é só.  Além da ofensa ao princípio da soberania popular, o legislador municipal, ao acrescentar critérios gerais, desvinculados do interesse local, ainda invadiu a competência normativa da União para, concorrentemente com os Estados e o Distrito Federal, legislar sobre a proteção à infância e à juventude (art. 24, XV, da Constituição Federal), sendo, portanto, incompatível com a autonomia municipal expressa no art. 144 da Constituição Estadual. Senão vejamos.

         As exigências escolhidas pelo legislador não pertencem à esfera normativa dos Municípios, por não se enquadrarem na predominância do interesse local, nem se adstringirem à suplementação da legislação federal ou estadual na medida do interesse local (art. 30, I e II, da Constituição Federal).

         É da essência da organização política brasileira o princípio do pacto federativo que ilumina a repartição de competências normativas e administrativas entre as unidades federadas, com assento nos arts. 1º e 18 da Constituição da República, bem como no art. 1º da Constituição Paulista.

         Como é cediço, a Constituição da República estabelece a repartição constitucional de competências entre as diversas esferas da federação brasileira, consistindo no corolário mais evidente do aludido princípio.

         Um dos aspectos de maior relevo, e que representa sua dimensão e alcance, adotado pelo Constituinte em 1988, é justamente o que se assenta nos critérios adotados pela Constituição Federal para a repartição de competências entre os respectivos entes, bem como a fixação da autonomia e dos limites dos Estados, Distrito Federal e Municípios, em relação à União.

         Anota, a propósito, Fernanda Dias Menezes de Almeida que “avulta, portanto, sob esse ângulo, a importância da repartição de competências, já que a decisão tomada a respeito é que condiciona a feição do Estado Federal, determinando maior ou menor grau de descentralização.” Daí a afirmação de doutrinadores no sentido de que a repartição de competências é ‘a chave da estrutura do poder federal’, ‘o elemento essencial da construção federal’, ‘a grande questão do federalismo’, ‘o problema típico do Estado Federal’. (Competências na Constituição Federal de 1988, 4. Ed., São Paulo, Atlas, 2007, p. 19/20).

         A preservação do princípio federativo tem contado com anuência do C. STF, pois, como destacado em julgado relatado pelo Min. Celso de Mello:

“(...) a idéia de Federação – que tem, na autonomia dos Estados-membros, um de seus cornerstones – revela-se elemento cujo sentido de fundamentalidade a torna imune, em sede de revisão constitucional, à própria ação reformadora do Congresso Nacional, por representar categoria política inalcançável, até mesmo, pelo exercício do poder constituinte derivado (CF, art. 60, § 4º, I).” (HC 80.511, voto do Min. Celso de Mello, julgamento em 21.8-01, DJ de 14-9-01). (sic)

         Por essa linha de raciocínio, pode-se também afirmar que a Lei Municipal que regula matéria cuja competência é do legislador federal e do estadual está, ao desrespeitar a repartição constitucional de competências, a violar o princípio federativo.

         Para a solução do caso, é necessário ter em mente que a matéria referente a proteção à infância e à juventude encontra-se inserida dentro da competência legislativa concorrente entre a União, Estados e Distrito Federal, estabelecida no art. 24, XV, da Constituição Federal.

         E que, embora o Município, nos termos do art. 30, II, da Constituição Federal, tenha competência legislativa suplementar em virtude da predominância do interesse local - em assuntos que diretamente estejam ligados às necessidades imediatas do município - no caso em análise, as hipóteses contemplados nos incisos V e VI do art. 29 da lei impugnada não denotam peculiaridades da urbe.   

         Bem por isso, é cabível o contraste de lei local com a norma remissiva contida no art. 144 da Constituição Estadual - que reproduz o art. 29 caput da Constituição Federal – e que determina a observância na esfera municipal, além das regras da Constituição Estadual, dos princípios da Constituição Federal, sendo denominado “norma estadual de caráter remissivo, na medida em que, para a disciplina dos limites da autonomia municipal, remete para as disposições constantes da Constituição Federal”, como averbou o Supremo Tribunal Federal ao credenciar o controle concentrado de constitucionalidade de lei municipal por esse ângulo (STF, Rcl 10.406-GO, Rel. Min. Gilmar Mendes, 31-08-2010, DJe 06-09-2010; STF, Rcl 10.500-SP, Rel. Min. Celso de Mello, 18-10-2010, DJe 26-10-2010).

         Subsumindo o caso concreto a tais diretrizes, possível reconhecer que os dispositivos impugnados não respeitaram, na exata concreção do seu alcance, a essência do art. 133 da Lei Federal n. 8.060/90, extrapolando, ainda, o art. 30, II, da Constituição Federal, em nítida afronta aos arts. 1º, parágrafo único, e 24, XV, da mesma Carta, (violação ao princípio democrático e ao do pacto federativo) aplicáveis aos Município por obra do art. 144 da Constituição Estadual.

         Em síntese, os incisos V e VI do art. 29 da Lei nº 973, de 20 de dezembro de 1.995, do Município de Iracemápolis, são verticalmente incompatíveis com o art. 144 da Constituição do Estado de São Paulo, fundamento este suficiente para a procedência desta ação direta de inconstitucionalidade.

IV – Pedido liminar

         À saciedade demonstrado o fumus boni iuris, pela ponderabilidade do direito alegado, soma-se a ele o periculum in mora. A atual tessitura da lei municipal apontada como violadora de princípios e regras da Constituição do Estado de São Paulo é sinal, de per si, para suspensão de sua eficácia até final julgamento desta ação, evitando suas nocivas consequências sobre a composição, organização e funcionamento de órgão de capital importância para a proteção da infância e da juventude.

À luz deste perfil, requer a concessão de liminar para suspensão da eficácia, até final e definitivo julgamento desta ação, incisos V e VI do artigo 29 da Lei nº 973, de 20 de dezembro de 1995, do Município de Iracemápolis.

VI – Pedido

Posto isso, requer o recebimento e o processamento da presente ação para que, ao final, seja julgada procedente para declarar a inconstitucionalidade do artigo 29 da Lei nº 973, de 20 de dezembro de 1995, do Município de Iracemápolis.

Requer ainda sejam requisitadas informações à Câmara Municipal e ao Prefeito Municipal de Iracemápolis, bem como posteriormente citado o douto Procurador-Geral do Estado para se manifestar sobre o ato normativo impugnado, protestando por nova vista, posteriormente, para manifestação final.

Termos em que, pede deferimento.

São Paulo, 02 de fevereiro de 2016.

 

 

Márcio Fernando Elias Rosa

Procurador-Geral de Justiça

 

ms/mjap

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Protocolado n. 123.819/15

 

 

 

 

1.     Distribua-se a petição inicial da ação direta de inconstitucionalidade, em face dos incisos V e VI do artigo 29 da Lei nº 973, de 20 de dezembro de 1995, do Município de Iracemápolis, junto ao Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

2.     Oficie-se ao interessado, informando-lhe a propositura da ação, com cópia da petição inicial.

                   São Paulo, 02 de fevereiro de 2016.

 

 

Márcio Fernando Elias Rosa

Procurador-Geral de Justiça

 

 

 

ms/mjap