Excelentíssimo Senhor Doutor Desembargador Presidente do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

 

 

Protocolado n. 136.720/2015

 

 

 

Constitucional. Administrativo. Ação direta de inconstitucionalidade. Art. 3º, da Lei nº 2.215, de 12 de dezembro de 2014, do Município de Caraguatatuba. Bolsa de estudos para filhos de servidores públicos. Ofensa aos princípios da impessoalidade, isonomia, igualdade e razoabilidade. 1. É inconstitucional lei local que concede bolsa de estudo ao filho de servidor público, em flagrante ataque aos princípios administrativos da impessoalidade, isonomia, igualdade e razoabilidade. 2. Ofensa aos arts. 111, 128 e 144, da Constituição Estadual de São Paulo.

 

 

 

 

 

O Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, no exercício da atribuição prevista no art. 116, VI, da Lei Complementar Estadual n. 734, de 26 de novembro de 1993 (Lei Orgânica do Ministério Público de São Paulo), em conformidade com o disposto nos arts. 125, § 2º, e 129, IV, da Constituição Federal, e, ainda, nos arts. 74, VI, e 90, III, da Constituição do Estado de São Paulo, com amparo nas informações colhidas no incluso protocolado, vem, respeitosamente, perante esse Egrégio Tribunal de Justiça, promover a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE, com pedido liminar, em face do art. 3º, da Lei nº 2.215, de 12 de dezembro de 2014, do Município de Caraguatatuba, pelos fundamentos a seguir expostos:

I – O ATO NORMATIVO IMPUGNADO

          A Lei nº 2.215, de 12 de dezembro de 2014, do Município de Caraguatatuba, que “Dispõe sobre a concessão de bolsas de estudos aos servidores públicos no âmbito do Município de Caraguatatuba e dá outras providências”, assim dispõe, atentando para o seu art. 3º:

“(...)

Art. 1º - Esta Lei disciplina a concessão de bolsas de estudos em estabelecimentos oficiais de ensino aos servidores públicos e filho de servidores públicos no âmbito do Município de Caraguatatuba.

Parágrafo único. A bolsa de estudos de que trata esta Lei somente será concedida mediante justificação da conveniência e interesse público por parte da Comissão de Avaliação de Bolsas de Estudos, na medida das disponibilidades orçamentárias do Município.

Art. 2º - A bolsa de estudos a que alude o artigo 1º será concedida para o servidor efetivo que esteja matriculado ou cursando estabelecimento oficial de ensino superior, de graduação e pós-graduação, no montante máximo de 50% (cinquenta por cento) do valor efetivamente pago pelo bolsista.

§ 1º - Aos professores, a bolsa de estudos poderá ser concedida para os cursos de pós-graduação, no montante do valor integral efetivamente pago pelo beneficiário, desde que o curso escolhido pelo professor tenha aplicabilidade imediata junto às suas atribuições em sala de aula e haja interesse da Administração no seu aperfeiçoamento, devidamente justificado pelo Secretário Municipal de Educação.

§ 2º - Excepcionalmente, em virtude de relevante interesse público demonstrado pelo Secretário da Pasta e com a anuência do Chefe do Executivo, a bolsa de estudos poderá ser concedida independente do valor da remuneração do servidor, podendo o montante do benefício ultrapassar o percentual estabelecido no caput deste artigo;

Art. 3º - A concessão da bolsa de estudos poderá se estender a um único filho do servidor com idade de até 24 (vinte e quatro) anos.

Art. 4º - Também poderá ser concedida bolsa de estudos aos professores efetivos do Estado de São Paulo, que prestem serviços no Município em face da municipalização do ensino fundamental, observados os requisitos previstos nesta Lei e no que for aplicável à concessão de bolsa de estudos aos servidores efetivos do Município.

Art. 5º - O beneficiário da concessão de bolsa de estudos deve comprometer-se a prestar, gratuitamente, durante o curso ou após sua formação, serviço de interesse social e/ou de interesse público, nos órgãos da Administração ou entidade conveniada ao Município, pelo período disciplinado no Decreto.

Art. 6º - A bolsa de estudos será concedida proporcionalmente à remuneração do servidor quando do pedido à Comissão de Avaliação de Bolsa de Estudo, observando o limite máximo estipulado em Decreto do Poder Executivo.

Parágrafo único. O valor da bolsa de estudos será consignado em folha de pagamento sob a rubrica “Bolsa de Estudos”.

Art. 7º - VETADO.

DISPOSIÇÕES FINAIS

Art. 8º - Perderá o direito à bolsa de estudos o servidor que:

I - for afastado do exercício do cargo sem direito a remuneração;

II - desligar-se definitivamente do quadro de servidores do Município ou do Estado de São Paulo;

III - deixar de comprovar até a data estipulada no Decreto, o pagamento da mensalidade à Secretaria de Administração do Município;

IV - que for retido ou reprovado por insuficiência de aproveitamento escolar no respectivo ano letivo;

V - que não comprovar à Comissão de Avaliação de Bolsas de Estudos o cumprimento do serviço de interesse social e/ou de interesse público referido no art. 5º desta Lei.

§ 1º - O servidor que ficar com pendência em alguma matéria ou for reprovado por motivo de doença poderá renovar a bolsa de estudos, mediante procedimento administrativo instaurado perante a Comissão de Avaliação de Bolsas de Estudos, em decisão fundamentada.

§ 2º - Caso o bolsista seja aprovado para o período escolar seguinte, mas deva cursar disciplinas em dependência, o Município não contemplará o pagamento das disciplinas em dependência, com exceção das situações previstas no §1º deste artigo.

Art. 9º - Será nomeada uma Comissão de Avaliação de Bolsas de Estudos, que definirá os critérios e documentos necessários para a concessão das bolsas de estudos de que trata esta Lei, bem como fixará a porcentagem do valor da mensalidade a ser concedida ao beneficiário, competindo-lhe, ainda, resolver os casos omissos.

Parágrafo único. A Comissão a que alude o caput deste artigo será composta dos seguintes membros:

I - o Secretário Municipal de Educação, que a preside;

II - um Procurador Jurídico, indicado pelo Secretário de Assuntos Jurídicos do Município, que substituirá o presidente nas faltas e impedimentos;

III - o Secretário Municipal de Administração.

Art. 10 - Não será concedida bolsa de estudos aos servidores, ou filho de servidor se o mesmo também for servidor, para curso de graduação presencial em estabelecimentos oficiais de ensino que se situem a mais de cento e cinquenta quilômetros do Município, salvo para os cursos à distância, oficialmente reconhecidos.

Art. 11 - O valor da concessão da bolsa de estudos não se incorpora aos vencimentos do servidor beneficiado, e não serão consideradas para o cálculo de quaisquer vantagens pecuniárias ulteriores.

Art. 12 - O beneficiário da concessão de bolsa de estudos que trancar a matrícula, desistir, ou desligar-se do curso por qualquer motivo, desligar-se do quadro de servidores do Município ou do Estado de São Paulo, no prazo de dois anos contados da conclusão do curso, deverá ressarcir o erário municipal com o valor total desembolsado pelo Município na concessão da bolsa de estudos.

§ 1º - O beneficiário que afastar-se sem vencimentos durante a realização do curso deverá ressarcir o erário municipal com o valor total desembolsado pelo Município na concessão da bolsa de estudos.

§ 2º - O beneficiário da bolsa de estudos, estando dentro do primeiro semestre do curso, e uma única vez, poderá solicitar a transferência da matrícula para curso diverso, mediante parecer da Comissão de Avaliação de Bolsa de Estudos, não havendo necessidade de ressarcimento ao erário municipal.

Art. 13 - Também perderá o direito à bolsa, devendo reembolsar o Município de todos os valores despendidos com a concessão da bolsa de estudos, o beneficiário que não comprovar à Comissão Avaliação de Bolsas de Estudos o cumprimento do trabalho social gratuito designado nos órgãos da Administração ou entidade conveniada ao Município.

Art. 14 - Nos casos previstos nos artigos 11 e 12 desta Lei, a concessão de nova bolsa de estudos fica condicionada ao ressarcimento integral dos valores desembolsados pelo Município.

Art. 15 - O Poder Executivo regulamentará esta Lei no prazo de 60 (sessenta) dias a partir de sua publicação oficial.

Art. 16 - As despesas criadas por esta Lei correrão por conta das dotações orçamentárias que lhes são próprias, suplementadas se necessário.

Art. 17 - Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação oficial, revogando-se as disposições contrárias, em especial a Lei Municipal nº 1.968, de 13 de setembro de 2011.

(...)” (g.n.)

II – O PARÂMETRO DA FISCALIZAÇÃO ABSTRATA DE CONSTITUCIONALIDADE

         O ato normativo impugnado contraria frontalmente a Constituição do Estado de São Paulo, a qual está subordinada a produção normativa municipal por força dos seguintes preceitos (ante a previsão dos arts. 1º, 18, 29 e 31 da Constituição Federal):

“Art. 144. Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição”.

         Na espécie, a incompatibilidade vertical da lei local com a Constituição do Estado de São Paulo se manifesta pelo contraste direto com a seguinte disposição constitucional estadual:

“Art. 111. A administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes do Estado, obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, razoabilidade, finalidade, motivação, interesse público e eficiência.

(...)

Art. 128. As vantagens de qualquer natureza só poderão ser instituídas por lei e quando atendam efetivamente ao interesse público e às exigências do serviço”.

Cuida-se, à evidência, de lei que afronta o princípio da impessoalidade.

O princípio da impessoalidade, previsto no art. 111 da Constituição Estadual, é conducente da proibição ao personalismo na administração pública, vedando favoritismos e preterições.

A violação decorre da concessão de bolsa de estudo para um único filho do servidor com idade até 24 (vinte e quatro) anos.

O preceito da impessoalidade é de observância obrigatória pelos Municípios, por força do disposto no art. 144 da Constituição Paulista.

Se não bastasse, também há afronta ao princípio da isonomia, tendo em vista o estabelecimento de discriminação em prol de filho de servidor na concessão de bolsa de estudos, em detrimento de outros.

Com efeito, o princípio da igualdade, em sua verdadeira acepção, significa tratar igualmente situações iguais, e de forma diferenciada situações desiguais.

Daí ser possível aduzir que viola o princípio da igualdade tanto o tratamento desigual para situações idênticas, como o tratamento idêntico para situações que são diferenciadas.

Como anota Celso Antônio Bandeira de Mello, “o princípio da isonomia preceitua que sejam tratadas igualmente as situações iguais e desigualmente as desiguais. Donde não há como desequiparar pessoas e situações quando nelas não se encontram fatores desiguais. E, por fim, consoante averbado insistentemente, cumpre ademais que a diferença do regime legal esteja correlacionada com a diferença que se tomou em conta” (Conteúdo jurídico do princípio da igualdade, 3ª ed., 12ª tir., São Paulo, Malheiros, 2004, p. 35).

Esse é o sentido do princípio da isonomia, salientado por José Afonso da Silva, ao afirmar que “a realização da igualdade perante a justiça, assim, exige a busca da igualização de condições dos desiguais” (Curso de direito constitucional positivo, 13ª ed., São Paulo, Malheiros, 1997, p. 215).

A diferenciação feita pelo legislador é possível quando, objetivamente, constatar-se um fator de discrímen que dê razoabilidade à diferenciação de tratamento contida na lei, pois a igualdade pressupõe um juízo de valor e um critério justo de valoração, proibindo o arbítrio, que ocorrerá “quando a disciplina legal não se basear num: (i) fundamento sério; (ii) não tiver um sentido legítimo; (iii) estabelecer diferenciação jurídica sem um fundamento razoável” (J.J. Gomes Canotilho, Direito constitucional e teoria da constituição, 3ª ed., Coimbra, Livraria Almedina, 1998, p. 400/401).

Além disso, no constitucionalismo moderno “a função de impulso e a natureza dirigente do princípio da igualdade aponta para as leis como um meio de aperfeiçoamento da igualdade através da eliminação das desigualdades fácticas” (J.J. Gomes Canotilho, Constituição dirigente e vinculação do legislador. Contributo para a compreensão das normas constitucionais programáticas, 2ª ed., Coimbra editora, 2001, p. 383).

O que o princípio em verdade veda é que a lei vincule uma “consequência a um fato que não justifica tal ligação”, pois o vício de inconstitucionalidade por violação da isonomia deve incidir quando a norma que promove diferenciações sem que haja “tratamento razoável, equitativo, aos sujeitos envolvidos” (Celso Ribeiro Bastos, Curso de direito constitucional, 18ª ed. São Paulo, Saraiva, 1997, p. 181/182).

A valoração daquilo que constitui o conteúdo jurídico do princípio constitucional da igualdade, ou seja, a vedação de uma “regulação desigual de fatos iguais”, deve ser realizada caso a caso, com base na razoabilidade e proporcionalidade na análise dos valores envolvidos, pois “não há uma resposta de uma vez para sempre estabelecida” (cf. Konrad Hesse, Elementos de direito constitucional da República Federal da Alemanha, tradução da 20ª ed. alemã, por Luís Afonso Heck, Porto Alegre, Sérgio Antônio Fabris editor, 1998, p. 330/331).

Em outras palavras, além do aspecto negativo do princípio, como vedação de tratamento desigual a situações e pessoas em condição similar, traz conotação positiva, para conceder ao legislador a missão de, pela elaboração normativa, com parâmetro nos obstáculos e nas desigualdades reais, equiparar, ou equilibrar situações, materializando efetivamente o conteúdo concreto da isonomia. Pela elaboração normativa, o legislador poderá afastar óbices de qualquer ordem que limitem a aproximação efetiva daqueles que se encontram sob a égide do ordenamento jurídico (cf. Paolo Biscaretti Di Ruffia, Diritto constituzionale, XV edizione, Napoli, Jovene, 1989, p. 832).

No caso em tela, não há qualquer fundamento para que somente sejam beneficiados na concessão de bolsa de estudo o filho do servidor com idade até 24 (vinte e quatro) anos.

III – Pedido liminar

         À saciedade demonstrado o fumus boni iuris, pela ponderabilidade do direito alegado, soma-se a ele o periculum in mora. A atual tessitura dos preceitos legais do Município de Caraguatatuba apontados como violadores de princípios e regras da Constituição do Estado de São Paulo é sinal, de per si, para suspensão de sua eficácia até final julgamento desta ação, de maneira a evitar oneração do erário irreparável ou de difícil reparação.

         À luz deste perfil, requer a concessão de liminar para suspensão da eficácia, até final e definitivo julgamento desta ação do art. 3º, da Lei nº 2.215, de 12 de dezembro de 2014, do Município de Caraguatatuba.

IV – Pedido

         Face ao exposto, requerendo o recebimento e o processamento da presente ação para que, ao final, seja julgada procedente para declarar a inconstitucionalidade do art. 3º, da Lei nº 2.215, de 12 de dezembro de 2014, do Município de Caraguatatuba.

         Requer-se ainda sejam requisitadas informações à Câmara Municipal e ao Prefeito Municipal de Caraguatatuba, bem como citado o Procurador-Geral do Estado para se manifestar sobre os atos normativos impugnados, protestando por nova vista, posteriormente, para manifestação final.

 

Termos em que, pede deferimento.

 

São Paulo, 02 de março de 2016.

 

 

 

 

Márcio Fernando Elias Rosa

Procurador-Geral de Justiça

 

ms/dcm

 

 

 

 

 

Protocolado n. 136.720/2015

Assunto: Análise de eventual inconstitucionalidade da legislação municipal de Caraguatatuba

 

 

 

 

1.                Distribua-se a petição inicial da ação direta de inconstitucionalidade do art. 3º, da Lei nº 2.215, de 12 de dezembro de 2014, do Município de Caraguatatuba junto ao Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

2.                Oficie-se ao interessado, informando-lhe a propositura da ação, com cópia da petição inicial.

 

São Paulo, 02 de março de 2016.

 

 

Márcio Fernando Elias Rosa

Procurador-Geral de Justiça

 

ms/dcm