Excelentíssimo Senhor Doutor Desembargador Presidente do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

 

 

 

Protocolado n. 150.234/2015

 

 

 

 

 

Ementa: Constitucional. Administrativo. Ação Direta de Inconstitucionalidade. Lei n. 3.927, de 06 de junho de 2016, do Município de Ubatuba. Autorização para realização de convênio. Repasse de recursos financeiros à entidade privada. Associação de Pais e Mestres das Escolas Municipais. Violação à regra do concurso público e da licitação. Ofensa aos princípios da moralidade, impessoalidade e igualdade. matéria tipicamente administrativa. Delegação inversa de poderes. ofensa ao princípio da separação dos poderes. 1. A autorização legislativa para a realização de convênio com entidade privada, cujo objeto consiste no repasse de recursos financeiros voltados ao atendimento de despesas com manutenção e desenvolvimento das escolas municipais, ofende a regra do concurso público, licitação, moralidade, impessoalidade e igualdade (arts. 111, 115, II e 117, CE/89). 2. A realização de convênio pelo poder executivo configura matéria tipicamente administrativa, de forma que a submissão ao poder legislativo de projeto de lei a esse respeito configura delegação inversa de poderes, com violação à reserva da administração e ao princípio da separação dos poderes (art. 5º, “caput”, § 1º, art. 47, II e XIV, e art. 144 da CE/89).

                                                                    

 

            O Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, no exercício da atribuição prevista no art. 116, VI, da Lei Complementar Estadual n. 734, de 26 de novembro de 1993 (Lei Orgânica do Ministério Público de São Paulo), em conformidade com o disposto nos arts. 125, § 2º, e 129, IV, da Constituição Federal, e, ainda, nos arts. 74, VI, e 90, III, da Constituição do Estado de São Paulo, com amparo nas informações colhidas no incluso protocolado, vem, respeitosamente, perante esse Egrégio Tribunal de Justiça, promover a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE, com pedido liminar, em face da Lei n. 3.927, de 06 de junho de 2016, do Município de Ubatuba, pelos fundamentos a seguir expostos:

I – O ATO NORMATIVO IMPUGNADO.

          Assim dispõe a Lei n. 3.927, de 06 de junho de 2016, do Município de Ubatuba:

Lei n. 3.927, de 06 de junho de 2016.

Autoriza o Executivo Municipal a repassar recursos financeiros mediante convênio às APM´S – Associações de Pais e Mestres das Escolas Municipais para os fins que especifica e revoga a Lei nº 2161/02.

Art. 1º - Fica o Executivo Municipal autorizado a repassar recursos financeiros mediante convênio, às APM´S – Associações de Pais e Mestres das Escolas Municipais legalmente constituídas.

Art. 2º - O objetivo do Convênio visa atender as despesas com manutenção e desenvolvimento das escolas municipais legalmente instituídas, conforme a proposta pedagógica das unidades escolares e o Plano de Aplicação, em consonância com o projeto político pedagógico, visando sempre o bem coletivo exclusivamente para:

I – aquisição de materiais e equipamentos permanentes;

II – aquisição de materiais de consumo, peças e acessórios de equipamentos;

III – manutenção, conservação e pequenos reparos em móveis, equipamentos e nas instalações físicas da unidade escolar;

IV – manutenção e desenvolvimento do ensino, das atividades pedagógicas e educacionais, incluindo material esportivo;

V – manutenção e recuperação de carteiras escolares;

VI – aquisição de materiais e jogos pedagógicos.

VII – VETADO.

§ 1º - O valor total do repasse concedido às APM´S – Associações de Pais e Mestres, de cada unidade de ensino, será definido anualmente por meio de Portaria e terá como base de cálculo:

I – O número de alunos matriculados na unidade, extraído do censo escolar do ano vigente ao exercício do efetivo repasse;

II – As modalidades de ensino da unidade.

§ 2º - O Município poderá liberar recurso suplementar por meio de convênio específico, para atender as necessidades extraordinárias das unidades de ensino, desde que devidamente fundamentadas e aprovadas pela Administração Municipal.

Art. 3º - Os recursos destinados às APM´S – Associações de Pais e Mestres serão liberados pela Secretaria Municipal de Fazenda, conforme cronograma de desenvolvimento apresentado pelas APM´S, mediante requisição da Secretaria Municipal de Educação.

Art. 4º - A liberação do recurso fica condicionada à solicitação de repasse da Secretaria Municipal de Educação para a Secretaria Municipal de Fazenda, mediante relatório de execução física e a apresentação da prestação de contas.

Art. - As APM´S – Associações de Pais e Mestres das escolas municipais poderão promover a utilização dos muros das respectivas unidades, para pintura de painéis artísticos e institucionais, idealizados e executados pelos próprios alunos, devendo ser observado o aspecto estético e atentando para a poluição visual que possam causar.

Art. 6º - As despesas decorrentes da celebração dos convênios previstos nesta Lei, correrão por conta de dotações orçamentárias próprias, destinadas à manutenção do ensino, suplementadas, se necessário.

Art. - Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação, ficando revogada a Lei nº 2161/02.

(...)”.

II – O PARÂMETRO DA FISCALIZAÇÃO ABSTRATA DE CONSTITUCIONALIDADE.

 A Lei Municipal n. 3.927, de 06 de junho de 2016, do Município de Ubatuba, contraria frontalmente a Constituição do Estado de São Paulo, à qual está subordinada a produção normativa municipal, ante a previsão dos arts. 1º, 18, 29 e 31, da Constituição Federal.

Os dispositivos legais mencionados são incompatíveis com os seguintes preceitos da Constituição Estadual, aplicáveis aos Municípios por força de seu art. 144:

Art. 5º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

§ 1º - É vedado a qualquer dos Poderes delegar atribuições.

(...)

Art. 47 – Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:

(...)

II – exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;

(...)

XIV – praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do Executivo;

(...)

Art. 111 - A administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes do Estado, obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, razoabilidade, finalidade, motivação, interesse público e eficiência.

(...)

Art. 115 - Para a organização da administração pública direta e indireta, inclusive as fundações instituídas ou mantidas por qualquer dos Poderes do Estado, é obrigatório o cumprimento das seguintes normas:

(...)

II – a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia, em concurso público de provas ou de provas e títulos, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão, declarado em lei, de livre nomeação e exoneração;

(...)

Art. 117 - Ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública, que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.

(...)

Art. 144 – Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.

(...)”.

Note-se que o disposto nos arts. 5º, 47, II, 111, 115, II, e 117 da Constituição Estadual, reproduz os arts. 2º, 37, “caput”, e incisos II e XXI, e 84, II, da Constituição Federal.

De outra parte, o art. 144 da Constituição Estadual, que determina a observância na esfera municipal, além das regras da Constituição Estadual, dos princípios da Constituição Federal, é denominado “norma estadual de caráter remissivo, na medida em que, para a disciplina dos limites da autonomia municipal, remete para as disposições constantes da Constituição Federal”, como averbou o Supremo Tribunal Federal ao credenciar o controle concentrado de constitucionalidade de lei municipal por esse ângulo (STF, Rcl 10.406-GO, Rel. Min. Gilmar Mendes, 31-08-2010, DJe 06-09-2010; STF, Rcl 10.500-SP, Rel. Min. Celso de Mello, 18-10-2010, DJe 26-10-2010).

A – Da violação à regra da licitação, do concurso público e dos princípios da moralidade, impessoalidade e igualdade.

A lei local impugnada estabeleceu a autorização para celebração de convênio com as Associações de Pais e Mestres das Escolas Municipais de Ubatuba cujo objeto consiste no repasse de recursos financeiros.

Pelo que consta do art. 2º, “caput” e incisos, tal ajuste visa, primordialmente, atender as despesas com manutenção e desenvolvimento das escolas municipais legalmente constituídas, tais como: aquisição de materiais e equipamentos, efetivação dos respectivos reparos, manutenção e desenvolvimento de ensino, atividades pedagógicas, entre outros (incisos I a VII).

Por outro lado, o § 2º do ato normativo impugnado dispõe que “o município poderá liberar recurso suplementar por meio de convênio específico, para atender as necessidades extraordinárias das unidades de ensino, desde que devidamente fundamentas e aprovadas pela Administração Municipal”.

De proêmio, ao autorizar o Poder Executivo a firmar convênio com a Associação de Pais e Mestres – APM´S, a lei em análise viola a regra da licitação, prevista no art. 117 da CE, pois, sob o rótulo de autorização para a realização de convênio, acabou o poder legislativo por chancelar a contratação, sem licitação, da entidade mencionada, o que também é incompatível com os princípios da moralidade, impessoalidade e igualdade, previstos no mencionado art. 111 da CE.

Os permissivos legais, sobretudo os que trazem expressões genéricas e abertas, representam evidente burla aos princípios da isonomia, da licitação e da impessoalidade, que devem nortear a Administração Pública.

         Não é só.

         Pelo que consta do art. 2º da lei, permitindo o repasse de recursos financeiros para a “manutenção e desenvolvimento do ensino” (inciso VI, art. 2º) e “para atender necessidades extraordinárias das unidades de ensino” (§ 2º, art. 2º), tais disposições violam princípios constitucionais que exigem a realização de concurso público para acesso aos cargos e empregos na administração pública, e, por consequência, também a regra da acessibilidade geral, da isonomia com relação ao provimento de cargos na administração pública e da impessoalidade administrativa.

Dispensa maiores digressões a afirmação de que a realização de concurso público, para acesso aos cargos, empregos, e funções públicas, é a regra. Ela só admite exceções nas estritas hipóteses previstas na Constituição Federal e Estadual, quais sejam, (a) a nomeação para cargos de provimento em comissão previstos em lei específica de cada ente federativo (nos casos de cargos ou funções de direção, chefia ou assessoramento superior da administração, em que deva prevalecer o vínculo de especial confiança entre o servidor e o agente superior ao qual se vincule), e (b) a contratação temporária, nas hipóteses previstas em lei de cada ente federativo, para atendimento a necessidade temporária de excepcional interesse público (cf. art. 115 II, V  e X da Constituição Paulista; art. 37 I, II e IX da CR/88).

Diante disso, qualquer dispensa indevida da realização de concurso para fins de ingresso no serviço público, ou mesmo a autorização para realização de convênios que importem na terceirização do sistema de educação municipal, são atos que significam, na prática, burla à regra do concurso.

Traduzem-se, do mesmo modo, em criação de óbice à acessibilidade de todos os cidadãos aos cargos públicos previstos em lei, e, por conseguinte, violação ao princípio da isonomia. Criam, finalmente, possibilidade de favorecimento, com quebra do princípio da impessoalidade.

Nosso sistema constitucional consagrou o livre acesso aos cargos, empregos e funções públicas, na forma prevista em lei, e a submissão prévia a concurso público, ressalvadas, evidentemente, as nomeações para cargos em comissão.

Na definição de Adilson Abreu Dallari, concurso público é “um procedimento administrativo aberto a todo e qualquer interessado que preencha os requisitos estabelecidos em lei, destinado à seleção de pessoal, mediante a aferição do conhecimento, da aptidão e da experiência dos candidatos, por critérios objetivos, previamente estabelecidos no edital de abertura, de maneira a possibilitar uma classificação de todos os aprovados” (Regime Constitucional dos Servidores Públicos, 2. ed., São Paulo, RT, 1992, p. 36, apud Celso Ribeiro Bastos, Comentários à Constituição do Brasil, 3º vol., T. III, São Paulo, Saraiva, 1992, p. 67).

É por meio do concurso que se resguarda “a aplicação do princípio da igualdade de todos (CF., art. 37, I) e, ao mesmo tempo, o interesse da Administração em admitir somente os melhores” (Celso Ribeiro Bastos, op. cit., p. 66), afastando-se “os ineptos e apaniguados, que costumam abarrotar as repartições públicas, num espetáculo degradante de protecionismo e falta de escrúpulos de políticos que se alçam e se mantêm no poder, leiloando empregos públicos” (Hely Lopes Meirelles, Direito Administrativo Brasileiro, 34. ed., São Paulo, RT, 2008, p. 440/441).

A jurisprudência do E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo corrobora o entendimento aqui sustentado, em caso com características semelhantes, no qual destaca-se acórdão que ficou assim ementado:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE – Lei nº 3.987, de 23 de novembro de 2012, do Município de São José do Rio Pardo, que autorizou a celebração de convênio com organização social para contratação de profissionais e empregados para a área da saúde municipal em geral –Investidura em cargos e empregos públicos, no entanto, que não pode prescindir da prévia realização de concurso público, na forma do art. 115, inciso II, da CE – Comando legal questionado que evidencia a violação a tal princípio, mostrando-se inconstitucional a admissão direta de pessoal, ainda que por meio de ente conveniado – Disposição legal, ademais, que desconsidera o princípio da obrigatoriedade da licitação, previsto no art. 117 da CE – Hipóteses de dispensa ou inexigibilidade do certame que não estavam presentes no caso dos autos, uma vez que os serviços objeto do convênio previsto na legislação impugnada não tinham características individualizadoras, de modo a tornar inviável a competição – Inexistindo, então, um atributo incomum, diferenciador, a inibir a participação de outros interessados, a licitação era mesmo de rigor – Legislação, de resto, que versa questão atinente ao planejamento, à organização, à direção e à execução dos serviços públicos, atos de governo afetos à competência exclusiva do Chefe do Poder Executivo local – Inobservância da competência reservada conferida ao Prefeito que acabou por implicar em afronta ao princípio da separação dos poderes – Apresentação do projeto pelo Chefe do Poder Executivo que não afasta a mácula, pois configura hipótese de delegação inversa de poderes, vedada pelo art. 5º, § 1º, da CE –Autorização legislativa para a realização do convênio que, ainda que se entenda necessária, deveria caracterizar-se pela generalidade e abstração, não podendo tratar de hipótese concreta – Fato de a legislação questionada conferir simples autorização ao Poder Executivo para a prática do ato nela previsto, outrossim, que não afasta a mácula atinente à invasão de competência, visto que o Prefeito não necessita de autorização para o exercício de competência que lhe foi constitucionalmente atribuída – Vícios de inconstitucionalidade aduzidos na exordial que, destarte, ficaram evidenciados na espécie, por afronta aos preceitos contidos nos artigos 5º, caput e § 1º, 47, incisos II e XIV, 115, inciso II, 117 e 144, todos da Constituição do Estado de São Paulo – Declaração de inconstitucionalidade da Lei nº 3.987/2012, por outro lado, que, diante dos efeitos repristinatórios que lhe são inerentes, implicará na revalidação da revogada Lei nº 3.253/2008, a qual padece dos mesmos vícios do ato normativo impugnado nos autos, devendo, então, por arrastamento, ser-lhe estendidos os efeitos dessa declaração de inconstitucionalidade –Ação Direta de Inconstitucionalidade julgada procedente.” (ADI n. 2088003-09.2014.8.26.0000, j. 24-09-14, rel. des. Paulo Dimas Mascaretti) (grifo nosso)

b – Da Ofensa à reserva da administração e à separação dos poderes.

O ato normativo ora impugnado, ainda que de iniciativa do Chefe do Poder Executivo, viola o princípio da separação de poderes, previsto no art. 5º, § 1º, e art. 47, II e XIV, da Constituição do Estado, aplicáveis aos Municípios por força do art. 144 da Carta Paulista.

A questão é objetiva.

Cabe exclusivamente ao Poder Executivo a celebração de convênios, nas diversas áreas de gestão, com outros órgãos da Administração Pública Federal, Estadual ou entidade privadas, prescindindo de autorização legislativa por se tratar de matéria com característica administrativa.

Esta característica administrativa vem reforçada pela norma do art. 241 da Constituição Federal, que atribui competência privativa aos Municípios para disciplinar, por meio de lei, os consórcios públicos e os convênios de cooperação entre os entes federados, autorizando a gestão associada de serviços públicos, bem como a transferência total ou parcial de encargos, serviços, pessoal e bens essenciais à continuidade dos serviços transferidos.

Exige-se, portanto, lei geral, tão só para disciplinar aspectos gerais dos consórcios e convênios públicos, e não lei específica, autorizando de modo direto a realização de convênio determinado.

Assim, quando o Poder Legislativo do Município edita lei autorizando a celebração de convênio com entidade privada específica, tendo como objeto o repasse de recursos financeiros destinados a custear despesas com manutenção e desenvolvimento das escolas municipais, invade, indevidamente, esfera que é própria da atividade do Administrador Público, violando o princípio da separação de poderes.

Mesmo sendo o ato normativo de iniciativa do Chefe do Executivo, resta configurada a inconstitucionalidade, uma vez que este não necessita de autorização legislativa para atuar naquilo que está na esfera de sua competência constitucional.

De igual modo, não apenas a autorização para a celebração de convênio, como também as normas que o disciplinam pormenorizadamente (arts. 3º a 5º) fazem parte da competência constitucionalmente atribuída à Administração.

O encaminhamento, pelo executivo, de projeto de lei com tais escopos, configura hipótese de delegação inversa de poderes, vedada pelo art. 5º, § 1º, da Constituição Paulista.

         Em suma, cabe nitidamente à Administração Pública, e não ao legislador, deliberar a respeito da conveniência e oportunidade daquela atuação administrativa.

A inconstitucionalidade, portanto, decorre da violação da regra da separação de poderes, prevista na Constituição Paulista e aplicável aos Municípios (art. 5º, art. 47, II e XIV, e art. 144).

É pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público.

De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

O diploma impugnado, na prática, invadiu a esfera da gestão administrativa, que cabe ao Poder Executivo, e envolve o planejamento, a direção, a organização e a execução de atos de governo, no caso em análise representados pela eventual formalização de convênios. A atuação legislativa impugnada equivale à prática de ato de administração, de sorte a violar a garantia constitucional da separação dos poderes.

Cumpre recordar, aqui, o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. (...) O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”. Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art. 2º c/c o art. 31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15. ed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p. 708 e 712).

Deste modo, quando a pretexto de legislar o Poder Legislativo administra, chancelando projetos de lei que equivalem, na prática, a verdadeiros atos de administração, viola, via inversa, a harmonia e a independência que devem existir entre os poderes estatais.

A jurisprudência do E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo corrobora o entendimento aqui sustentado.

Confiram-se, a título de exemplificação, os seguintes precedentes do Col. Órgão Especial: ADI 149.044-0/8-00, rel. des. Armando Toledo, j. 20.02.2008; ADI 134.410-0/4, rel. des. Viana Santos, j. 05.03.2008; ADI 12.345-0 - São Paulo - 15.05.91, rel. des. Carlos Ortiz; ADI n. 096.538-0, rel. Viseu Júnior - 12.02.03; ADI n. 123.145-0/9-00, rel. des. Aloísio de Toledo César – 19.04.06; ADI n. 128.082-0/7-00, rel. des. Denser de Sá – 19.07.06; ADI n. 163.546-0/1-00, rel. des. Ivan Sartori, j. 30.7.2008.

Nesse mesmo sentido o entendimento do Col. STF, colhido em julgados que, mutatis mutandis, aplicam-se à hipótese em exame:

“(...)

O princípio constitucional da reserva de administração impede a ingerência normativa do Poder Legislativo em matérias sujeitas à exclusiva competência administrativa do Poder Executivo. É que, em tais matérias, o Legislativo não se qualifica como instância de revisão dos atos administrativos emanados do Poder Executivo. (...) Não cabe, desse modo, ao Poder Legislativo, sob pena de grave desrespeito ao postulado da separação de poderes, desconstituir, por lei, atos de caráter administrativo que tenham sido editados pelo Poder Executivo, no estrito desempenho de suas privativas atribuições institucionais. Essa prática legislativa, quando efetivada, subverte a função primária da lei, transgride o princípio da divisão funcional do poder, representa comportamento heterodoxo da instituição parlamentar e importa em atuação ultra vires do Poder Legislativo, que não pode, em sua atuação político-jurídica, exorbitar dos limites que definem o exercício de suas prerrogativas institucionais.” (RE 427.574-ED, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 13-12-2011, Segunda Turma, DJE de 13-2-2012.) (grifo nosso)

(...)”

Destarte, é possível afirmar que a lei impugnada ofende frontalmente a Constituição do Estado de São Paulo em seus artigos 5º, “caput”, § 1º, 47, II e XIV, 111, 115, inciso II, 117 e 144.

III - DA INCONSTITUCIONALIDADE POR ARRASTAMENTO.

Para evitar que em virtude da declaração da inconstitucionalidade da Lei n. 3.927, de 06 de junho de 2016, automaticamente, seja restaurada por repristinação a Lei n. 2.161, de 24 de janeiro de 2002 (fl. 08), do Município de Ubatuba, que padece do mesmo vício de inconstitucionalidade por violação ao princípio da separação dos poderes, necessária a declaração de inconstitucionalidade por arrastamento.

A declaração de inconstitucionalidade por arrastamento é possível sempre que: a) o reconhecimento da inconstitucionalidade de determinado dispositivo legal torna despidos de eficácia e utilidade outros preceitos do mesmo diploma, ainda que não tenham sido impugnados; b) nos casos em que o efeito repristinatório restabelece dispositivos já revogados pela lei viciada que ostentem o mesmo vicio; c) quando há na lei dispositivos que não foram impugnados, mas guardam direta relação com aqueles cuja inconstitucionalidade é reconhecida.

Restabelecidos os efeitos da lei revogada, dá-se o que se chama de efeito indesejado, já havendo assentado o Supremo Tribunal Federal que:

"A reentrada em vigor da norma revogada nem sempre é vantajosa. O efeito repristinatório produzido pela decisão do Supremo, em via de ação direta, pode dar origem ao problema da legitimidade da norma revivida. De fato, a norma reentrante pode padecer de inconstitucionalidade ainda mais grave que a do ato nulificado. Previne-se o problema com o estudo apurado das eventuais consequências que a decisão judicial haverá de produzir. O estudo deve ser levado a termo por ocasião da propositura, pelos legitimados ativos, de ação direta de inconstitucionalidade. Detectada a manifestação de eventual eficácia repristinatória indesejada, cumpre requerer igualmente, já na inicial da ação direta, a declaração da inconstitucionalidade, e, desde que possível, a do ato normativo ressuscitado" (STF, ADI-MC 2.621-DF, Rei. Min. Celso de Mello, 01-08-2002).

Assim, a declaração de inconstitucionalidade deve abranger, por arrastamento, a Lei n. 2.161, de 24 de janeiro de 2002, do Município de Ubatuba.

IV – Pedido liminar.

         À saciedade demonstrado o fumus boni iuris, pela ponderabilidade do direito alegado, soma-se a ele o periculum in mora. A atual tessitura dos preceitos legais do Município de Ubatuba apontados como violadores de princípios e regras da Constituição do Estado de São Paulo é sinal, de per si, para suspensão de sua eficácia até final julgamento desta ação, de maneira a evitar oneração do erário e lesão irreparável ou de difícil reparação.

         À luz deste perfil, requer a concessão de liminar para suspensão da eficácia, até final e definitivo julgamento desta ação, da Lei n. 3.927, de 06 de junho de 2016, do Município de Ubatuba.

IV – Pedido.

         Face ao exposto, requerendo o recebimento e o processamento da presente ação para que, ao final, seja julgada procedente para declarar a inconstitucionalidade da Lei n. 3.927, de 06 de junho de 2016, do Município de Ubatuba.

         Requer-se, ainda, sejam requisitadas informações ao Presidente da Câmara Municipal e ao Prefeito Municipal de Ubatuba, bem como citado o Procurador-Geral do Estado para se manifestar sobre os atos normativos impugnados, protestando por nova vista, posteriormente, para manifestação final.

Termos em que, pede deferimento.

 

São Paulo, 05 de setembro de 2016.

 

 

 

Gianpaolo Poggio Smanio

Procurador-Geral de Justiça

efsj/mjap

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Protocolado n. 150.234/2015

Assunto: Análise de constitucionalidade da Lei nº 2.161/2002, do Município de Ubatuba.

 

 

 

 

1.                Distribua-se a petição inicial da ação direta de inconstitucionalidade em face da Lei n. 3.927, de 06 de junho de 2016, do Município de Ubatuba, junto ao Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

2.                Oficie-se ao interessado, informando-lhe a propositura da ação, com cópia da petição inicial.

São Paulo, 05 de setembro de 2016.

 

 

Gianpaolo Poggio Smanio

Procurador-Geral de Justiça

efsj/mjap