Excelentíssimo Senhor Doutor Desembargador Presidente do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

 

 

 

Protocolado nº 74.306/2015

 

 

 

Ementa: Constitucional. Administrativo. Urbanístico. Ação Direta de Inconstitucionalidade. Lei 3.549, de 25 de junho de 2001, e, por arrastamento, Decreto 5.427, de 07 de fevereiro de 2002, ambos do Município de Americana. Fechamento de loteamento. Ausência de participação comunitária. Concessão de uso privativo de bens públicos de uso comum do povo. Violação à liberdade de circulação. Ausência de razoabilidade e interesse público. Invasão da esfera normativa alheia sobre direito civil e normas gerais de licitação e contratação pública. Desvinculação do Plano Diretor. 1. Lei inconstitucional por não ter sido assegurada a participação comunitária em seu respectivo processo legislativo (art. 180, II, CE/89). 2. O fechamento de loteamentos, vilas e ruas sem saída com outorga de uso privativo de bens públicos de uso comum do povo, é restrição incompatível com as funções essenciais da cidade, a limitação à liberdade de circulação e de acesso e usufruto dos bens públicos de uso comum do povo (art. 180, I, CE/89). 3. Legislação a que falta interesse público e razoabilidade (art. 111, CE/89): aquele significa a garantia do livre acesso e do irrestrito gozo dos bens públicos de uso comum do povo, não se coadunando com a restrição, discriminação incompatível com o princípio da igualdade, sem possuir racionalidade, justiça, bom senso ou amparo em elemento diferencial justificável. 4. Incompatibilidade com a repartição constitucional de competências normativas, a que remete o art. 144, CE/89, pela invasão da competência alheia para legislar sobre direito civil, não havendo espaço para invocação de interesse local por não haver sua predominância nem para suplementação normativa que contraria regras federais. 5. Violação ao art. 144, CE/89, patenteada pela restrição à liberdade de circulação, princípio estabelecido como direito fundamental. 6. Ofensa à liberdade de associação, a qual pressupõe autonomia de vontade para se associar, permanecer e se retirar quando lhe aprouver.  7. A adoção de normas municipais alheadas ao plano diretor configura indevido fracionamento, permitindo soluções tópicas, isoladas e pontuais, desvinculadas do planejamento urbano integral, vulnerando sua compatibilidade com o plano diretor e sua integralidade, e sua conformidade com as normas urbanísticas (arts. 180, V, e 181, § 1º, CE/89). 8. Exceção à regra da licitação ao favorecer particular como concessionário de uso privativo de bens públicos que não se investiu nessa qualidade a partir de processo seletivo objetivo, público e imparcial, o que significa, ainda, afronta à competência legislativa da União para normas gerais sobre licitação e contrato administrativo, patenteando ofensa à competência normativa alheia, cognoscível por força do art. 144, CE/89.

 

                   O Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, no exercício da atribuição prevista no art. 116, VI, da Lei Complementar Estadual n. 734, de 26 de novembro de 1993 (Lei Orgânica do Ministério Público do Estado de São Paulo), em conformidade com o disposto no art. 125, § 2º, e no art. 129, IV, da Constituição Federal, e, ainda, nos arts. 74, VI, e 90, III, da Constituição do Estado de São Paulo, com amparo nas informações colhidas no incluso protocolado, vem, respeitosamente, perante esse egrégio Tribunal de Justiça, promover a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE em face da Lei n. 3.549, de 25 de junho de 2001, e, por arrastamento, do Decreto n. 5.427, de 07 de fevereiro de 2002, ambos do Município de Americana, pelos fundamentos a seguir expostos:

I – O Ato Normativo Impugnado

                   A Lei n. 3.549, de 25 de junho de 2001, do Município de Americana,autoriza o Poder Executivo a regularizar e aprovar o Plano de Loteamento Residencial Fechado denominado ‘Riviera Tamborlin”, nos seguintes termos:

“Artigo 1º - Fica o Poder Executivo autorizado a regularizar e aprovar o Plano de Loteamento Residencial Fechado denominado Riviera Tamborlin, localizado na Estrada Praia dos Namorados, nesta cidade, compreendendo a área superficial total de 81.069,35 m², consubstanciado no Procedimento Administrativo nº 41.673, de 21 de novembro de 2000.

Artigo 2º - As vias públicas e as áreas destinadas ao sistema de lazer situadas no loteamento fechado, serão objeto de permissão de uso gratuita outorgada à Associação dos Moradores do Loteamento Riviera Tamborlin, obedecido o disposto nos artigos 50 e 51 da Lei Municipal nº 3.270, de 15 de janeiro de 1999.

Artigo 3º - Na execução do Plano de Loteamento Fechado deverão ser observadas as prescrições contidas na Lei Municipal nº 3.270, de 15 de janeiro de 1999 e nas legislações estadual e federal pertinentes.

Artigo 4º - Esta lei entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.”

                   O Decreto n. 5.427, de 07 de fevereiro de 2002, do Município de Americana, que "aprova o projeto de Loteamento Residencial Fechado Riviera Tamborlin; outorga permissão de uso das áreas públicas que menciona e dá outras providências", tem a seguinte redação:

“Artigo 1º - Fica aprovado o fechamento do Loteamento Residencial denominado Riviera Tamborlin, localizado na Estrata Praia dos Namorados, nesta cidade, compreendendo a área superficial de 81.069,35 m², inscrição originária nº 48 do Cartório de Registro de Imóveis desta cidade, consubstanciado no processo administrativo nº 41.673, de 21 de novembro de 2000.

Artigo 2º - Fica outorgada à ASSOCIAÇÃO DOS MORADORES DO LOTEAMENTO RIVIERA TAMBORLIM, inscrita sob nº 2.502, fls. 14 verso, livro A-7 do Cartório de Registro de Pessoas Jurídicas desta cidade, permissão de uso gratuita, das áreas públicas integrantes do loteamento fechado, a seguir descritas:

I - Sistema de Recreio E – Loteamento Riviera Tamborlin – Cadastro 26.0036.0244.000, medindo e confrontando da seguinte forma: "inicia-se no ponto localizado no alinhamento da Estrada Municipal (Av. Comendador Thomaz Fortunato) onde faz divisa com Iate Clube de Americana e segue em reta pela referida divisa numa distância de 140,00 m (cento e quarenta metros); deste deflete à esquerda e segue em reta divisando com viela de passagem numa distância de 45,00 m (quarenta e cinco metros); deste deflete à esquerda e segue em reta divisando com Rua José Muller numa distância de 78,00 m (setenta e oito metros); deste segue em curva à esquerda na confluência das Ruas José Muller com Estrada Municipal (Av. Comendador Thomaz Fortunato) numa distância de 16,00 m (dezesseis metros); deste segue em reta pelo alinhamento da Estrada Municipal (Avenida Comendador Thomaz Fortunato) numa distância de 59,00 m (cinquenta e nove metros) até o ponto inicial perfazendo uma área superficial de 5.175,00 m² (cinco mil cento e setenta e cinco metros quadrados)."

II - Sistema de Recreio F – Loteamento Riviera Tamborlin – Cadastro 26.0031.0208.000, medindo e confrontando da seguinte forma: "inicia-se no ponto localizado no alinhamento da Estrada Municipal (Av. Comendador Thomaz Fortunato) e segue em reta pelo referido alinhamento numa distância de 84,00 m (oitenta e quatro metros); deste deflete à direita e segue em reta divisando com viela de passagem numa distância de 35,00 m (trinta e cinco metros); deste deflete à direita e segue em reta pelo alinhamento da Rua José Muller numa distância de 79,00 m (setenta e nove metros); deste segue em curva à direita na confluência das Ruas José Muller com Estrada Municipal (Av. Comendador Thomaz Fortunato) numa distância de 10,00m (dez metros) até o ponto inicial perfazendo uma área superficial de 1.777,00 m² (um mil setecentos e setenta e sete metros quadrados)."

III - Rua Valdemar Nogueira localizada entre as quadras C e D, H e G, sendo 14,00 m de largura por 101,00 m de um lado e 91,00 m do outro, perfazendo uma área superficial de 1.344,00 m² (um mil trezentos e quarenta e quatro metros quadrados).

 

IV - Rua Manoel Pita localizada entre as quadras B e I, e quadras C e H, sendo 14,00 m de largura por 111,00 m, perfazendo uma área superficial de 1.554,00 m² (um mil e quinhentos e cinquenta e quatro metros quadrados).

V - Rua José Muller localizada entre as quadras B, C, D e sistema de recreio E, e quadras I, H, G e sistema de recreio F, sendo 14,00 m de largura por 561,00 m de um lado e 578,57 m do outro, perfazendo uma área superficial de 7.976,99 m² (sete mil novecentos e setenta e seis metros quadrados e noventa e nove centímetros quadrados).

VI - Viela de passagem localizada entre o lote 6 da quadra G e sistema de recreio F, sendo 3,00 m de largura por 35,00 m, perfazendo uma área superficial de 105,00 m² (cento e cinco metros quadrados).

VII - Viela de passagem localizada entre o lote 8 da quadra D e sistema de recreio E, sendo 3,00 m de largura por 45,00 m, perfazendo uma área superficial de 135,00 m² (cento e trinta e cinco metros quadrados).

VIII - Avenida Osvaldo Jensen e canteiro central, indicado com praça, contendo 2.227,00 m², localizada entre as quadras A e quadra B, I sendo 45,00 m de largura por 123,00 m de um lado e 139,00 m do outro, perfazendo uma área superficial total de 5.895,00 m² (cinco mil oitocentos e noventa e cinco metros quadrados).

IX - Balão de retorno localizado dentro da quadra A, perfazendo uma área superficial de 1.704,00 m² (um mil setecentos e quatro metros quadrados).

Parágrafo Único – Fica ressalvado que, a permissão de uso referente à Avenida Osvaldo Jensen e ao Balão de Retorno, descritos nos incisos VIII e IX acima, e o fechamento da parte constante da quadra A do loteamento, ficarão expressamente revogados, sem quaisquer ônus ou indenizações, quando da efetiva abertura da referida Avenida Osvaldo Jensen, por ocasião da urbanização e implantação do plano viário no local.

Artigo 3º - Em compensação pela permissão de uso das áreas públicas descritas no artigo anterior e respeitadas as legislações pertinentes, é obrigação da permissionária, mediante prévia autorização da Prefeitura, executar:

I - os serviços de poda e manutenção das árvores;

II - remoção de lixo e resíduos sólidos em geral até a área de recolhimento, situada na parte externa do loteamento e determinada pela Prefeitura;

III - manutenção das vias de circulação;

IV - manutenção dos serviços elétricos e de iluminação pública;

V - manutenção da segurança pública dentro dos limites do loteamento fechado;

VI - quaisquer outras obras ou serviços determinado pela Prefeitura Municipal.

Parágrafo Único – Fica a Secretaria de Obras e Serviços Urbanos incumbida de determinar a execução das obras e serviços, aprovar os projetos e fiscalizar a execução das obras e serviços de manutenção dos bens públicos.

Artigo 4º - O não cumprimento pela permissionária, das obrigações atribuídas no artigo anterior, ensejará a revogação da permissão, com as seguintes consequências:

I - anulação a perda do caráter de loteamento fechado;

II - assunção imediata das obrigações, pela Prefeitura;

III - aplicação da multa correspondente a 100% (cem por cento) do imposto imobiliário devido no último exercício, que será atribuída a cada lote integrante do loteamento fechado.

Parágrafo Único – No caso de revogação da permissão e anulação da característica de loteamento fechado, as áreas públicas descritas no artigo 2º, serão reintegradas ao patrimônio público municipal, juntamente com a infra-estrutura urbana implantada.

Artigo 5º - Enquanto perdurar a presente permissão de uso, a utilização das áreas públicas descritas no artigo 2º, respeitados os dispositivos legais vigentes, poderão ser objeto de regulamentação própria a ser estabelecido pela Associação permissionária.

Parágrafo Único – A permissionária poderá controlar, mas não impedir o acesso à parte fechada do loteamento.

Artigo 6º - Nas áreas públicas integrantes do sistema de lazer, é proibida a execução de edificações de caráter permanente, que descaracterizem a sua destinação.

Artigo 7º - As despesas para o fechamento do loteamento, bem como toda a sinalização necessária à sua implantação, são de responsabilidade da permissionária.

Artigo 8º - Este decreto entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário”.

 III – O parâmetro da fiscalização abstrata de constitucionalidade

                   Os atos normativos impugnados contrariam frontalmente a Constituição do Estado de São Paulo, à qual está subordinada a produção normativa municipal ante a previsão dos arts. 1º, 18, 29 e 31 da Constituição Federal. Os preceitos da Constituição Federal e da Constituição do Estado são aplicáveis aos Municípios por força do art. 29 daquela e do art. 144 desta.

                        Conforme será demonstrado, a inconstitucionalidade da Lei n. 3.549, de 25 de junho de 2001, e, por arrastamento, do Decreto n. 5.427, de 07 de fevereiro de 2002, ambos do Município de Americana, manifesta-se pela dissonância de tais atos normativos com os seguintes preceitos da Constituição Bandeirante:

Artigo 111 – A administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes do Estado, obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, razoabilidade, finalidade, motivação, interesse público e eficiência.

(...)

Artigo 144 - Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.

(...)

Artigo 180 - No estabelecimento de diretrizes e normas relativas ao desenvolvimento urbano, o Estado e os Municípios assegurarão:

I - o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e a garantia do bem-estar de seus habitantes;

II – a participação das respectivas entidades comunitárias no estudo, encaminhamento e solução dos problemas, plano, programas e projetos que lhes sejam concernentes;

(...)

V - a observância das normas urbanísticas, de segurança, higiene e qualidade de vida;

(...)

Artigo 181 - Lei municipal estabelecerá, em conformidade com as diretrizes do plano diretor, normas sobre zoneamento, loteamento, parcelamento, uso e ocupação do solo, índices urbanísticos, proteção ambiental e demais limitações administrativas pertinentes.

§ 1º - Os planos diretores, obrigatórios a todos os Municípios, deverão considerar a totalidade de seu território municipal”.

A – INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL

                   A autorização para fechamento de loteamentos é norma urbanística e como tal a aprovação de lei que discipline tais matérias depende da participação comunitária em seu respectivo processo legislativo. No caso, não foi observada essa importante formalidade essencial - que aquinhoa legitimidade material ao seu conteúdo – determinada pelo inciso II do art. 180 da Constituição do Estado de São Paulo que reproduz o art. 29, XII, da Constituição Federal – como se verifica da análise do processo legislativo n. 206/2000.

                   O dispositivo constitucional parâmetro do controle de constitucionalidade da lei municipal em foco nesta sede assegura a participação da população em todas as matérias atinentes ao desenvolvimento urbano e ao meio ambiente, inclusive nos anteprojetos e projetos de lei, e, são reiteradamente prestigiados pela jurisprudência:

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - Lei n. 2.786/2005 de São José do Rio Pardo - Alteração sem plano diretor prévio de área rural em urbana - Hipótese em que não foi cumprida disposição do art. 180, II, da Constituição do Estado de São Paulo que determina a participação das entidades comunitárias no estudo da alteração aprovada pela lei - Ausência ademais de plano diretor - A participação de Vereadores na votação do projeto não supre a necessidade de que as entidades comunitárias se manifestem sobre o projeto - Clara ofensa ao art. 180, II, da Constituição Estadual - Ação julgada procedente.” (TJSP, ADI 169.508.0/5, Rel. Des. Aloísio de Toledo César, 18-02-2009).

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - Leis n°s. 11.764/2003, 11.878/2004 e 12.162/2004, do município de Campinas - Legislações, de iniciativa parlamentar, que alteram regras de zoneamento em determinadas áreas da cidade - Impossibilidade - Planejamento urbano - Uso e ocupação do solo - Inobservância de disposições constitucionais - Ausente participação da comunidade, bem como prévio estudo técnico que indicasse os benefícios e eventuais prejuízos com a aplicação da medida - Necessidade manifesta em matéria de uso do espaço urbano, independentemente de compatibilidade com plano diretor - Respeito ao pacto federativo com a obediência a essas exigências - Ofensa ao princípio da impessoalidade - Afronta, outrossim, ao princípio da separação dos Poderes - Matéria de cunho eminentemente administrativo - Leis dispuseram sobre situações concretas, concernentes à organização administrativa - Ação direta julgada procedente, para declarar a inconstitucionalidade das normas.” (ADI 163.559-0/0-00).

“ação direta de inconstitucionalidade – lei complementar disciplinando o uso e ocupação do solo – processo legislativo submetido À participação popular – votação, contudo, de projeto substitutivo que, a despeito de alterações significativas do projeto inicial, não foi levado ao conhecimento dos munícipes – vício insanável – inconstitucionalidade declarada.

‘O projeto de lei apresentado para apreciação popular atendia aos interesses da comunidade local, que atuava ativamente a ponto de formalizar pedido exigindo o direito de participar em audiência pública. Nada obstante, a manobra política adotada subtraiu dos interessados a possibilidade de discutir assunto local que lhes era concernente, causando surpresa e indignação. Cumpre ressaltar que a participação popular na criação de leis versando sobre política urbana local não pode ser concebida como mera formalidade ritual passível de convalidação. Trata-se de instrumento democrático onde o móvel do legislador ordinário é exposto e contrastado com idéias opostas que, se não vinculam a vontade dos representantes eleitos no momento da votação, ao menos lhe expõem os interesses envolvidos e as conseqüências práticas advindas da aprovação ou rejeição da norma, tal como proposta” (TJSP, ADI 994.09.224728-0, Rel. Des. Artur Marques, m.v., 05-05-2010).

“Ação Direta de Inconstitucionalidade. Leis Municipais de Guararema, que tratam do zoneamento urbano sem a participação comunitária. Violação aos artigos 180, II e 191 da Constituição Estadual. Ação procedente para declarar a inconstitucionalidade das leis nº 2.661/09 e 2.738/10 do Município de Guararema” (TJSP, ADI 0194034-92.2011.8.26.0000, Rel. Des. Ruy Coppola, v.u., 29-02-2012).

                  A democracia participativa decorrente do art. 180, II, da Constituição Estadual, alcança a elaboração da lei antes e durante o trâmite de seu processo legislativo até o estágio final de sua produção. Ela permite que a população participe da produção de normas que afetarão a estética urbana, a qualidade de vida e os usos urbanísticos.

outros fundamentos.

A legislação impugnada não se atém aos limites do interesse local, círculo da competência normativa dos Municípios, incompatibilizando-se com o princípio federativo que impõe a observância das balizas constitucionais destinadas a delimitar as competências legislativas dos entes federativos, sob pena de atentar ao princípio federativo, e cuja sindicância é viável nesta via por caracterizar-se ofensa ao art. 144 da Constituição Estadual.

                   Com efeito, o texto normativo impugnado contrasta com o art. 144 da Constituição Estadual, norma que determina a observância da Constituição Federal e da Constituição Estadual pelos Municípios no exercício de sua autonomia, reproduzindo o caput do art. 29 da Constituição Federal.

                   O art. 144 da Constituição Estadual impondo a observância na esfera municipal, além das regras da Constituição Estadual, dos princípios da Constituição Federal, é denominado “norma estadual de caráter remissivo, na medida em que, para a disciplina dos limites da autonomia municipal, remete para as disposições constantes da Constituição Federal”, como decidiu o Supremo Tribunal Federal ao admitir o controle concentrado de constitucionalidade de lei municipal por esse ângulo (STF, Rcl 10.406-GO, Rel. Min. Gilmar Mendes, 31-08-2010, DJe 06-09-2010; STF, Rcl 10.500-SP, Rel. Min. Celso de Mello, 18-10-2010, DJe 26-10-2010).

                   Destarte, é possível examinar o preceito legal municipal impugnado à luz das normas constitucionais centrais, viabilizando por força da mencionada norma remissiva o seu contraste com a repartição constitucional de competências legislativas inerentes ao princípio federativo, em especial o art. 22, I, da Constituição Federal, que arrola o direito civil no espaço da competência normativa privativa da União.

                  A disciplina do fechamento de loteamentos e vias públicas é matéria inerente ao direito civil, sobre o qual o Município não detém competência normativa, não havendo espaço para invocação de interesse local por não haver sua predominância nem para suplementação normativa que contraria regras federais. Nesse sentido, colaciona-se o seguinte julgado:

“Ora, em se tratando de competência privativa da União, e competência essa que não pode ser exercida pelos Estados se não houver lei complementar – que não existe – que a autorize a legislar sobre questões específicas dessa matéria (artigo 22 da Constituição), não há como pretender-se que a competência suplementar dos Municípios prevista no inciso II do artigo 30, com base na expressa vaga aí constante ‘no que couber’ se possa exercitar para a suplementação dessa legislação da competência privativa da União (...)” (STF, RE 227.384-SP).

                   Portanto, a legislação municipal contestada é incompatível com o art. 144 da Constituição Estadual.

B – INCONSTITUCIONALIDADE MATERIAL

                        Não obstante a inconstitucionalidade apontada, os atos normativos objurgados também estão maculados por inconstitucionalidade material.

                   Isso porque, ex vi do disposto nos incisos I e V do art. 180 da Constituição Paulista, aos quais a produção normativa municipal está subordinada, o Município, ao traçar as normas de desenvolvimento urbanístico, tem o dever de assegurar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade, dentre as quais a circulação, e observar as normas urbanísticas e de qualidade de vida. José Afonso da Silva assevera que uma vez instituído o sistema viário, por meio da afetação do bem, o acesso público a ele torna-se um poder legal exercitável erga omnes, em face do qual não se opõe nenhum limite – configurado, por exemplo, pela exigência de identificação para ingresso no loteamento fechado:

O sistema viário é o meio pelo qual se realiza o direito à circulação, que é a manifestação mais característica do direito de locomoção, direito de ir e vir e também de ficar (estacionar, parar), assegurado na Constituição Federal. Pedro Escribano Collado, em excelente monografia sobre as vias urbanas, coloca muito bem o problema, nas seguintes palavras: `De maneira ampla, e do ponto de vista do usuário, pode definir-se o direito à circulação como a faculdade, enquanto perdure a afetação da via, de deslocar-se através dela de um lugar para outro do núcleo urbano. Enquanto se tratar de bem afetado, a utilização não constituirá uma mera possibilidade, mas um poder legal exercitável erga omnes. Em consequência, a Administração não poderá impedir, nem geral nem singularmente, o trânsito de pessoas de maneira estável, a menos que desafete a via, já que, de outro modo, se produziria uma transformação da afetação por meio de uma simples atividade de polícia” (José Afonso da Silva. Direito Urbanístico Brasileiro, Malheiros, 5ªed., p. 183-184).     

                   Da leitura dos dispositivos impugnados, é cristalina a restrição à ampla liberdade de circulação e de usufruto dos bens públicos de uso comum do povo, enfim, às funções sociais da cidade, rompendo com a diretiva de observância das normas urbanísticas e de qualidade de vida, de modo a colidir com o art. 180, I e V, da Constituição Estadual.

                   Além disso, e por conta da norma remissiva do art. 144 da Constituição Estadual, há notória supressão do direito fundamental à liberdade de locomoção e circulação, previsto no art. 5º, caput e inciso XV, da Constituição Federal. Sobre a temática, importante consignar o posicionamento sedimentado na jurisprudência do Pretório Excelso:

“- LOTEAMENTO. RUA DE ACESSO COMUM. CONDOMÍNIO INEXISTENTE. Com o condomínio singulariza-se a propriedade dos lotes, caindo no domínio público e no livre uso comum a rua de acesso. Não é juridicamente possível, em tais circunstâncias, pretender-se constituir condomínio sobre a rua, à base da Lei 4.591/64. Nulidade da convenção condominial e dos atos dela decorrentes. Recurso extraordinário provido”. (STF, RE 100.467-3, Rel. Min. Francisco Rezek).

                   Em questão similar, assim voltou a se pronunciar a E. Corte Constitucional:

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI DISTRITAL N. 1.713, DE 3 DE SETEMBRO DE 1.997. QUADRAS RESIDENCIAIS DO PLANO PILOTO DA ASA NORTE E DA ASA SUL. ADMINISTRAÇÃO POR PREFEITURAS OU ASSOCIAÇÕES DE MORADORES. TAXA DE MANUTENÇÃO E CONSERVAÇÃO. SUBDIVISÃO DO DISTRITO FEDERAL. FIXAÇÃO DE OBSTÁCULOS QUE DIFICULTEM O TRÂNSITO DE VEÍCULOS E PESSOAS. BEM DE USO COMUM. TOMBAMENTO. COMPETÊNCIA DO PODER EXECUTIVO PARA ESTABELECER AS RESTRIÇÕES DO DIREITO DE PROPRIEDADE. VIOLAÇÃO DO DISPOSTO NOS ARTIGOS 2º, 32 E 37, INCISO XXI, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. 1. A Lei n. 1.713 autoriza a divisão do Distrito Federal em unidades relativamente autônomas, em afronta ao texto da Constituição do Brasil --- artigo 32 --- que proíbe a subdivisão do Distrito Federal em Municípios. 2. Afronta a Constituição do Brasil o preceito que permite que os serviços públicos sejam prestados por particulares, independentemente de licitação [artigo 37, inciso XXI, da CB/88]. 3. Ninguém é obrigado a associar-se em ‘condomínios’ não regularmente instituídos. 4. O artigo 4º da lei possibilita a fixação de obstáculos a fim de dificultar a entrada e saída de veículos nos limites externos das quadras ou conjuntos. Violação do direito à circulação, que é a manifestação mais característica do direito de locomoção. A Administração não poderá impedir o trânsito de pessoas no que toca aos bens de uso comum. 5. O tombamento é constituído mediante ato do Poder Executivo que estabelece o alcance da limitação ao direito de propriedade. Incompetência do Poder Legislativo no que toca a essas restrições, pena de violação ao disposto no artigo 2º da Constituição do Brasil. 6. É incabível a delegação da execução de determinados serviços públicos às ‘Prefeituras’ das quadras, bem como a instituição de taxas remuneratórias, na medida em que essas ‘Prefeituras’ não detêm capacidade tributária. 7. Ação direta julgada procedente para declarar a inconstitucionalidade da Lei n. 1.713/97 do Distrito Federal” (STF, ADI 1.706-DF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Eros Grau, 09-04-2008, v.u., DJe 12-09-2008).

                        Gizado nesse venerando aresto que:

“(...) 2. Afronta a Constituição do Brasil o preceito que permite que os serviços públicos sejam prestados por particulares, independentemente de licitação [artigo 37, inciso XXI, da CB/88]. (...) 4. O artigo 4º da lei possibilita a fixação de obstáculos a fim de dificultar a entrada e saída de veículos nos limites externos das quadras ou conjuntos. Violação do direito à circulação, que é a manifestação mais característica do direito de locomoção. A Administração não poderá impedir o trânsito de pessoas no que toca aos bens de uso comum”.

                   Em conclusão, há novamente ofensa ao art. 144 da Constituição Paulista.

                   A restrição à circulação permitida pelos atos normativos impugnados não se alia ao interesse público nem à razoabilidade. O interesse público, ao contrário da providência legislativa adotada, é a garantia do livre acesso e do irrestrito gozo dos bens públicos de uso comum do povo, não se coadunando com a limitação instituída nas normas vergastadas que, além de irrazoáveis, são desprovidas de racionalidade, justiça e bom senso, implantando discriminação insuportável.

                   Não se deve olvidar que vias públicas são bens de uso comum do povo, assim como que vias e praças, espaços livres e áreas destinadas a edifícios públicos e outros equipamentos urbanos nos loteamentos passam a integrar o patrimônio público municipal a partir de seu registro.

                   E diferente do regulado pela Lei nº 6.766/79 e pelo Código Civil, no fechamento de loteamentos, vilas e ruas sem saída pelo Município de Americana, que mais se assemelha a um “condomínio privado”, o particular não está a serviço da administração, mas a serviço próprio; nada é feito em favor da coletividade, trata-se de investimentos privados destinados a seus titulares.

                   Não há preconceito à utilização de bens públicos por particulares, situação essa disciplinada pela autorização, permissão e concessão de uso, precedidas de licitação, inspiradas pela satisfação do interesse geral. O que se pretende nesta exordial é combater a instituição de “condomínios privados” em áreas públicas, visto que contraria o interesse público, a função social da cidade e a ordem jurídica.

                   E nem se alegue, por oportuno, a insuficiência dos órgãos de segurança pública no combate à criminalidade para se legitimar o fechamento de áreas públicas em prol da fruição de pequena parcela da população.

                   No atual estágio civilizatório, todos os cidadãos encontram-se vulneráveis (em diferentes graus) à crescente onda de violência, e a decisão de se privilegiar determinados munícipes com o fechamento de suas vias ou bairros, em detrimento de outros, revela-se ato totalmente refratário ao primado da isonomia, vez que possui traços de pessoalidade e arbitrariedade, isso sem mencionar a possibilidade de óbice ao direito geral de locomoção nos perímetros que compõem a urbe.

                   Em relação ao tema sub judice, lança-se precedente firmado neste Sodalício, in verbis:

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE – LEI MUNICIPAL QUE AUTORIZA O FECHAMENTO NORMALIZADO DE RUAS SEM SAÍDA, VILAS E LOTEAMENTOS SITUADOS EM ÁREAS RESIDENCIAIS, INCLUSIVE COM ACESSO CONTROLADO - VÍCIO DE INICIATIVA PATENTE - INTELIGÊNCIA DOS ARTS. 21 E 30, I, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 - AÇÃO PROCEDENTE AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE – LEI  MUNICIPAL QUE AUTORIZA O FECHAMENTO NORMALIZADO DE RUAS SEM SAÍDA, VILAS E LOTEAMENTOS SITUADOS EM ÁREAS RESIDENCIAIS, INCLUSIVE COM ACESSO CONTROLADO - INADMISSIBILIDADE - NÚCLEO SEMÂNTICO DO DIREITO À CIDADE QUE NÃO HARMONIZA COM A LEGISLAÇÃO QUESTIONADA - O DIREITO FUNDAMENTAL À CIDADE NÃO PODE SER CONFUNDIDO COM INEXISTENTE DIREITO FUNDAMENTAL A SE CRIAR ESPAÇOS SEGREGADOS NA CIDADE - INCIDÊNCIA DO PRINCÍPIO DA VEDAÇÃO DE RETROCESSO - PRECEDENTES DOUTRINÁRIOS - AÇÃO PROCEDENTE” (ADI 9055901-19.2008.8.26.0000, Rel. Des. Renato Nalini, m.v., 04-05-2011).

                   No mesmo sentido, vetusto acórdão do Supremo Tribunal Federal fixou que o interesse público é preservado pela defesa da livre utilização de bem público de uso comum do povo:

“Loteamento. Fechamento de acesso a ruas que interligam lotes e conduzem à orla marítima. - Legalidade de ato da Prefeitura Municipal, removendo obstáculos que impediam aquele livre acesso. - Inconstitucionalidade inocorrente da Lei Municipal nº 557/79, de Ubatuba: assegura direito à utilização de bem público de uso comum do povo. Recurso Extraordinário não conhecido” (STF, RE 94.253-SP, 1ª Turma, Rel.  Min. Oscar Correa, 12-11-1982, v.u., DJ 17-12-1982, p. 13.209).

                   Os atos normativos combatidos ofendem, outrossim, o direito de liberdade de associação previsto no art. 5, incisos XVII e XX, da Constituição Federal, aplicáveis aos municípios por força do art. 144 da Constituição Paulista.

                   Pelo que se depreende do art. 2° da Lei n. 3.549, de 25 de junho de 2001, do Município de Americana, é necessária a constituição de uma entidade representativa dos proprietários, chamada na lei de Associação dos moradores do Loteamento Riviera Tamborlim, o que significa compelir os proprietários de imóveis a se associarem e manterem-se associados, pois, dessa forma, viabiliza-se o fechamento de loteamentos, vilas e ruas sem saída.

                     Tratando do conteúdo da liberdade de associação, anota Paulo Gustavo Gonet Branco que:

“Os dispositivos da Lei Maior brasileira a respeito da liberdade de associação revelam que, sob a expressão, estão abarcadas distintas faculdades, tais como (a) a de constituir associações, b) a de ingressar nelas, (c) a de abandoná-las e de não associar, e, finalmente, (d) a de sócios se auto-organizarem e desenvolverem as suas atividades associativas” (Curso de Direito Constitucional, São Paulo, Saraiva, 2013, pp. 303-305).

                   A associação pressupõe ato de vontade. A jurisprudência é fértil ao censurar a restrição à liberdade de associação resultantes de condomínios atípicos:

“AGRAVO REGIMENTAL. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA EM RECURSO ESPECIAL. ASSOCIAÇÃO DE MORADORES. CONDOMÍNIO ATÍPICO. COBRANÇA DE NÃO ASSOCIADO. IMPOSSIBILIDADE. APLICAÇÃO DO 'ENUNCIADO SUMULAR N° 168/STJ. Consoante entendimento sedimentado no âmbito da Eg. Segunda Seção Desta Corte Superior, as taxas de manutenção instituídas por associação de moradores não podem ser impostas a proprietário de imóvel que não é associado, nem aderiu ao ato que fixou o encargo (Precedentes: AgRg no Ag 1179073/RJ, Rei. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, DJe de 02/02/2010; AgRg no Ag 953621/RJ, Rei. Min. João Otávio de Noronha, Quarta Turma, DJe de 14/12/2009; AgRg no REsp 1061702/SP, Rel. Min. Aldir Passarinho, Quarta Turma, DJe de 05/10/2009; AgRg no REsp 1034349/SP, Rel. Min. Massami Uyeda, Terceira Turma, DJe 16/12/2008. (...)”. (STJ, AgRg-EREsp 961.927-RJ, Rel. Min. Vasco Della Giustina, DJe 15-09-2010).

“AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ESPECIAL. CIVIL. AÇÃO DE COBRANÇA. ASSOCIAÇÃO DE MORADORES. CONDOMÍNIO ATÍPICO. COTAS RESULTANTES DE DESPESAS EM PROL DA SEGURANÇA E CONSERVAÇÃO DE ÁREA COMUM. COBRANÇA DE QUEM NÃO É ASSOCIADO. IMPOSSIBILIDADE. 1. Consoante entendimento firmado pela Segunda Seção do STJ, ‘as taxas de manutenção criadas por associação de moradores, não podem ser impostas a proprietário de imóvel que não é associado, nem aderiu ao ato que instituiu o encargo’ (ERESP nº 444.931/SP, rel. Min. Fernando Gonçalves, rel. p/o acórdão Min. Humberto Gomes de Barros, DJ de 1º.2.2006’. 2. Agravo regimental desprovido. (STJ, AgRg-REsp 613.474-RJ, 4ª Turma, Rel. Min. João Otávio de Noronha, DJe 05-10-2009).

“Existem precedentes concluindo que o condomínio, ainda que atípico, tem legitimidade para propor ação de cobrança de despesas condominiais. No caso, todavia, a autora da ação de cobrança é simples associação de moradores – quando muito, o que se denomina condomínio atípico. As deliberações desses condomínios atípicos não podem atingir quem delas não tomou parte. Vale dizer: as obrigações assumidas pelos que espontaneamente se associaram para ratear as despesas comuns não alcançam terceiros que a elas não aderiram” (TJSP, Apelação 0041203-52.2004.8.26.0114, Rel. Des. Moreira Viegas).

                   Ora, se ninguém pode ser compelido a se associar ou manter-se associado.

                   Todavia, não é o que ocorre na questão apresentada, vez que para materialização do fechamento a lei impugnada acaba por obrigar os proprietários de imóveis a pactuar com essa prática vedada pelo ordenamento, não lhes restando outra opção a não ser aderir aos desmandos da associação, sob pena de não poderem fruir desses bens comuns, além de dificultar-lhes o gozo de seu próprio patrimônio imobiliário situado nessas áreas indevidamente fechadas, já que dependem da condição de associados.

                   Tanto não bastasse, a legislação impugnada criou exceção à regra da licitação, violando o art. 117 da Constituição Estadual que reproduz os arts. 37, XXI e 175 da Constituição Federal, ao favorecer como usuário privativo de bens públicos pessoa jurídica de direito privado sem que esta tenha participado de processo seletivo objetivo, público e imparcial.

                   Tal significa, ainda, afronta à competência legislativa da União para normas gerais sobre licitação e contrato administrativo sobre uso de bens públicos e execução de serviços públicos (arts. 22, XXVII, 37, XXI, e 175, Constituição Federal), patenteando, novamente, ofensa à competência normativa alheia, sindicável por força do art. 144 da Constituição Estadual, ao remeter ao art. 22, XXVII, da Constituição Federal.

                   As exceções à licitação (inexigibilidade, dispensa, dispensabilidade, proibição) constituem matérias da essência das normas gerais de licitações e contratações públicas, não sendo lícito aos Municípios disciplinarem o assunto em lei para além das prescrições contidas em lei federal. Neste sentido:

MEDIDA CAUTELAR EM AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEGITIMIDADE DE AGREMIAÇÃO PARTIDÁRIA COM REPRESENTAÇÃO NO CONGRESSO NACIONAL PARA DEFLAGRAR O PROCESSO DE CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE EM TESE. INTELIGÊNCIA DO ART. 103, INCISO VIII, DA MAGNA LEI. REQUISITO DA PERTINÊNCIA TEMÁTICA ANTECIPADAMENTE SATISFEITO PELO REQUERENTE. IMPUGNAÇÃO DA LEI Nº 11.871/02, DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL, QUE INSTITUIU, NO ÂMBITO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA SUL-RIO-GRANDENSE, A PREFERENCIAL UTILIZAÇÃO DE SOFTWARES LIVRES OU SEM RESTRIÇÕES PROPRIETÁRIAS. PLAUSIBILIDADE JURÍDICA DA TESE DO AUTOR QUE APONTA INVASÃO DA COMPETÊNCIA LEGIFERANTE RESERVADA À UNIÃO PARA PRODUZIR NORMAS GERAIS EM TEMA DE LICITAÇÃO, BEM COMO USURPAÇÃO COMPETENCIAL VIOLADORA DO PÉTREO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA SEPARAÇÃO DOS PODERES. RECONHECE-SE, AINDA, QUE O ATO NORMATIVO IMPUGNADO ESTREITA, CONTRA A NATUREZA DOS PRODUTOS QUE LHES SERVEM DE OBJETO NORMATIVO (BENS INFORMÁTICOS), O ÂMBITO DE COMPETIÇÃO DOS INTERESSADOS EM SE VINCULAR CONTRATUALMENTE AO ESTADO-ADMINISTRAÇÃO. MEDIDA CAUTELAR DEFERIDA” (RTJ 192/163).

“Ação direta de inconstitucionalidade: L. Distrital 3.705, de 21.11.2005, que cria restrições a empresas que discriminarem na contratação de mão-de-obra: inconstitucionalidade declarada. 1. Ofensa à competência privativa da União para legislar sobre normas gerais de licitação e contratação administrativa, em todas as modalidades, para as administrações públicas diretas, autárquicas e fundacionais de todos os entes da Federação (CF, art. 22, XXVII) e para dispor sobre Direito do Trabalho e inspeção do trabalho (CF, arts. 21, XXIV e 22, I). 2. Afronta ao art. 37, XXI, da Constituição da República - norma de observância compulsória pelas ordens locais - segundo o qual a disciplina legal das licitações há de assegurar a ‘igualdade de condições de todos os concorrentes’, o que é incompatível com a proibição de licitar em função de um critério - o da discriminação de empregados inscritos em cadastros restritivos de crédito -, que não tem pertinência com a exigência de garantia do cumprimento do contrato objeto do concurso” (STF, ADI 3.670-DF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, 02-04-2007, v.u., DJe 18-05-2007).

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI DISTRITAL N. 1.713, DE 3 DE SETEMBRO DE 1.997. QUADRAS RESIDENCIAIS DO PLANO PILOTO DA ASA NORTE E DA ASA SUL. ADMINISTRAÇÃO POR PREFEITURAS OU ASSOCIAÇÕES DE MORADORES. TAXA DE MANUTENÇÃO E CONSERVAÇÃO. SUBDIVISÃO DO DISTRITO FEDERAL. FIXAÇÃO DE OBSTÁCULOS QUE DIFICULTEM O TRÂNSITO DE VEÍCULOS E PESSOAS. BEM DE USO COMUM. TOMBAMENTO. COMPETÊNCIA DO PODER EXECUTIVO PARA ESTABELECER AS RESTRIÇÕES DO DIREITO DE PROPRIEDADE. VIOLAÇÃO DO DISPOSTO NOS ARTIGOS 2º, 32 E 37, INCISO XXI, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. (...) 2. Afronta a Constituição do Brasil o preceito que permite que os serviços públicos sejam prestados por particulares, independentemente de licitação [artigo 37, inciso XXI, da CB/88]. (...)” (STF, ADI 1.706-DF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Eros Grau, 09-04-2008, v.u., DJe 12-09-2008).

“SERVIÇO PÚBLICO CONCEDIDO. TRANSPORTE INTERESTADUAL DE PASSAGEIROS. AÇÃO DECLARATÓRIA. PEDIDO DE RECONHECIMENTO DE DIREITO DE EMPRESA TRANSPORTADORA DE OPERAR PROLONGAMENTO DE TRECHO CONCEDIDO. AUSÊNCIA DE LICITAÇÃO. Afastada a alegação do recorrido de ausência de prequestionamento dos preceitos constitucionais invocados no recurso. Os princípios constitucionais que regem a administração pública exigem que a concessão de serviços públicos seja precedida de licitação pública. Contraria os arts. 37 e 175 da Constituição federal decisão judicial que, fundada em conceito genérico de interesse público, sequer fundamentada em fatos e a pretexto de suprir omissão do órgão administrativo competente, reconhece ao particular o direito de exploração de serviço público sem a observância do procedimento de licitação. Precedentes. Recurso extraordinário conhecido e a que se dá provimento” (RT 837/125).

“ADMINISTRATIVO. AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO DE INSTRUMENTO. CONTRATAÇÃO DE SERVIÇO DE TRANSPORTE COLETIVO. NECESSIDADE DE LICITAÇÃO. ARTIGO 37 DA CONSTITUIÇÃO. PRECEDENTES. AGRAVO IMPROVIDO. I - O acórdão recorrido está em consonância com a jurisprudência desta Corte no sentido de que a partir da vigência da Constituição de 1988, a licitação passou a ser indispensável à Administração Pública, consoante art. 37, da mesma Carta, por garantir a igualdade de condições e oportunidades para aqueles que pretendem contratar obras e serviços com a Administração. II – Agravo regimental improvido” (STF, AgR-AI 792.149-MG, 1ª Turma, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, 19-10-2010, v.u., DJe 16-11-2010).

                   Não bastasse, as normas impugnadas também são inconstitucionais por ofensa aos arts. 180, V, e 181, § 1º, da Constituição do Estado de São Paulo.

                   Das normas municipais de desenvolvimento urbano se impõe compatibilidade às normas urbanísticas (art. 180, V, Constituição Estadual) e, outrossim, delas se exige, inclusive no tocante às limitações administrativas, que instituam conformidade com diretrizes do plano diretor, que deve caráter integral (art. 181, caput e § 1º, da Constituição Paulista).

                   A adoção de normas municipais alheadas ao plano diretor configura indevido fracionamento, permitindo soluções tópicas, isoladas e pontuais, desvinculadas do planejamento urbano integral, vulnerando sua compatibilidade com o plano diretor e sua integralidade. O Supremo Tribunal Federal entende possível o contencioso de constitucionalidade sem que se configure contraste entre a lei impugnada e o plano diretor, estimando desafio direto e frontal à Constituição:

“(...) Plausibilidade da alegação de que a Lei Complementar distrital 710/05, ao permitir a criação de projetos urbanísticos ‘de forma isolada e desvinculada’ do plano diretor, violou diretamente a Constituição Republicana. (...)” (STF, QO-MC-AC 2.383-DF, 2ª Turma, Rel. Min. Ayres Britto, 27-03-2012, v.u., 28-06-2012).

                   A Constituição do Estado acolhe objetiva e expressamente o princípio do planejamento em matéria urbanística, predicado por integralidade, compatibilidade e globalidade, e que se consubstancia no plano diretor, acolitado pelo princípio da conformidade com as normas urbanísticas e de qualidade de vida.

                   A exigência do plano diretor, como “instrumento básico da política de desenvolvimento e expansão urbana”, está assentada no § 1º do art. 182 da Constituição Federal, cuja aplicabilidade à hipótese decorre da regra contida no art. 144 da Constituição do Estado de São Paulo, não bastasse o art. 181 desta. E o art.182 caput da Carta Magna disciplina que “a política de desenvolvimento urbano, executada pelo poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes”.

                   Se o inciso VIII do art. 30 da Constituição Federal prevê a competência dos Municípios para “promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento, e da ocupação do solo urbano”, seu exercício não pode se distanciar dos demais cânones constitucionais federais e estaduais incidentes, seja qual for o propósito da legislação urbanística municipal.

                   O que se infere dos dispositivos acima apontados que a política de ocupação e uso adequado do solo se faz mediante planejamento e estabelecimento de diretrizes através de lei, e as diretrizes para o planejamento, ocupação e uso do solo devem constar do respectivo plano diretor, cuja elaboração depende de avaliação concreta das peculiaridades de cada Município.

                   Ora, a sistemática constitucional, quanto à necessidade de planejamento, diretrizes, e ordenação global da ocupação e uso do solo, torna patente que o casuísmo resta evidenciado nos atos normativos que regulam situações isoladas, como ocorre na hipótese em apreço, violando diretamente a sistemática constitucional incidente sobre a matéria, vez que qualquer modificação legislativa que envolva a política de desenvolvimento urbano, o zoneamento e a ocupação e uso do solo deve ser realizada dentro de um contexto de planejamento, e de diretrizes gerais, não se admitindo ordenação dissociada da utilização global do solo urbano.

                   Tratando da elaboração do plano diretor, anota Hely Lopes Meirelles que “toda cidade há que ser planejada: a cidade nova, para sua formação; a cidade implantada, para sua expansão; a cidade velha, para sua renovação” e acresce que “a elaboração do plano diretor é tarefa de especialistas nos diversificados setores de sua abrangência, devendo por isso mesmo ser confiada a órgão técnico da Prefeitura ou contratada com profissionais de notória especialização na matéria, sempre sob supervisão do Prefeito, que transmitirá as aspirações dos munícipes quanto ao desenvolvimento do Município e indicará as prioridades das obras e serviços de maior urgência e utilidade para a população” (Direito Municipal Brasileiro, pp. 393-395).

                   Ainda sobre o tem, pondera Toshio Mukai:

“a ocupação e o desenvolvimento dos espaços habitáveis, sejam eles no campo ou na cidade, não podem ocorrer de forma meramente acidental, sob as forças dos interesses privados e da coletividade. Ao contrário, são necessários profundos estudos acerca da natureza da ocupação, sua finalidade, avaliação da geografia local, da capacidade de comportar essa utilização sem danos para o meio ambiente, de forma a permitir boas condições de vida para as pessoas, permitindo o desenvolvimento econômico-social, harmonizando os interesses particulares e os da coletividade” (Temas atuais de direito urbanístico e ambiental, Belo Horizonte: Editora Fórum, 2004, p. 29).

                   E nem seria despropositado obtemperar que a transformação assentida pelos atos normativos combatidos teria potencialidade para incompatibilizar-se com o princípio da impessoalidade, adotado expressamente no art. 111 caput da Constituição do Estado de São Paulo, bem como no art. 37 caput da Constituição Federal, porque foram instituídas em prol de poucos que pretendem se segregar no usufruto restrito de bens públicos.

                   Deste modo, as inovações legislativas urbanísticas impendem planejamento neutro e objetivo, racional e imparcial, não inculcando mudanças tópicas capazes de criar desequilíbrio subjetivo determinado.

                   Pelas razões expostas, é flagrante a inconstitucionalidade dos atos normativos impugnados.

IV – Pedido

                   Face ao exposto, requer-se o recebimento e o processamento da presente ação para que, ao final, seja julgada procedente para declarar a inconstitucionalidade da Lei n. 3.549, de 25 de junho de 2001, e, por arrastamento, do Decreto n. 5.427, de 07 de fevereiro de 2002, ambos do Município de Americana.

                   Requer-se ainda sejam requisitadas informações ao Prefeito e à Câmara Municipal de Americana, bem como posteriormente citado o Procurador-Geral do Estado para se manifestar sobre os atos normativos impugnados, protestando por nova vista, posteriormente, para manifestação final.

                   Termos em que, pede deferimento.

                   São Paulo, 30 de janeiro de 2017.

 

Gianpaolo Poggio Smanio

Procurador-Geral de Justiça

 

blo/sh


Protocolado nº 74.306/2015

 

 

1.     Distribua-se a petição inicial da ação direta de inconstitucionalidade, em face da Lei n. 3.549, de 25 de junho de 2001, e, por arrastamento, do Decreto n. 5.427, de 07 de fevereiro de 2002, ambos do Município de Americana, junto ao Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

2.     Oficie-se ao interessado, informando-lhe a propositura da ação, com cópia da petição inicial.

     São Paulo, 30 de janeiro de 2017.

 

Gianpaolo Poggio Smanio

Procurador-Geral de Justiça

blo/sh