EXCELENTÍSSIMO
SENHOR DESEMBARGADOR PRESIDENTE DO E. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO
PAULO
Protocolado nº 27.507/2016
Ementa:
1. Ação direta de inconstitucionalidade em face da Lei nº 5.713, de 01 de dezembro de 2015, do Município de Catanduva, de iniciativa parlamentar, que proíbe a realização de feiras itinerantes de comercialização de alimentos em áreas públicas – “food-trucks” – no Município de Catanduva.
2. Violação do princípio da separação entre os Poderes, sendo matéria de iniciativa do Poder Executivo (art. 5º, e art. 47, II e XIV, da CE).
3. Violação da livre iniciativa e da livre concorrência. Princípios gerais da atividade econômica aplicáveis aos Estados e Municípios (art. 170, caput, e inciso IV da Constituição Federal, e art. 144 da Constituição do Estado).
O Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, no exercício da atribuição prevista no art. 116, VI da Lei Complementar Estadual n. 734, de 26 de novembro de 1993 (Lei Orgânica do Ministério Público de São Paulo), em conformidade com o disposto no art. 125, § 2º e art. 129, IV, da Constituição Federal, e ainda nos arts. 74, VI e 90, III, da Constituição do Estado de São Paulo, com amparo nas informações colhidas no incluso protocolado, vem, respeitosamente, perante esse egrégio Tribunal de Justiça, promover a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE em face da Lei nº 5.713, de 01 de dezembro de 2015, do Município de Catanduva, pelos fundamentos a seguir expostos.
I
– O Ato Normativo Impugnado
A Lei nº 5.713, de 01 de dezembro de 2015, do Município de Catanduva, de iniciativa parlamentar, apresenta a seguinte redação:
“Art. 1º - Fica proibido no Município de Catanduva, a realização de feiras itinerantes de comercialização de alimentos sobre rodas, em veículos automotores adaptados – ‘food-trucks’ – tanto por meio de equipamentos montados sobre veículos a motor, quanto por meio de estruturas rebocadas.
Art. 2º - Considera-se ‘food-truck’, o comércio de alimentos em veículos móveis no Município de Catanduva que compreendam venda direta ao consumidor.
Art. 3º - É de competência do Poder Público Municipal, por meio de seus órgãos e entidades, no âmbito de suas atribuições, a fiscalização para o fiel cumprimento do disposto nesta Lei.
Art. 4º - Esta
lei entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em
contrário.” (sic)
Ocorre que a mencionada lei é incompatível com nosso ordenamento constitucional pelas razões a seguir expostas.
II
– FUNDAMENTAÇÃO
Trata-se de lei municipal de iniciativa parlamentar que estabelece restrição ao comércio na vias públicas.
O ato normativo ora impugnado viola o princípio da separação de poderes, previsto no art. 5º, e no art. 47, II e XIV, da Constituição do Estado, aplicáveis aos Municípios por força do art. 144 da Carta Paulista, uma vez que a matéria concernente ao comércio local é típica da gestão administrativa local.
Com efeito, a iniciativa parlamentar que culminou na
edição do ato normativo em análise invadiu a esfera de atribuições do Chefe do
Poder Executivo.
Ao Poder Legislativo cabe a função de editar atos
normativos de caráter geral e abstrato. Ao Executivo cabe o exercício da função
de gestão administrativa, que envolve atos de planejamento, direção,
organização e execução.
Atos que, na prática, representam invasão da esfera
executiva pelo legislador, devem ser invalidados em sede de controle
concentrado de normas, na medida em que representam quebra do equilíbrio
assentado nos arts. 5º, 37 e 47, II e XIV, da Constituição do Estado de São
Paulo, aplicáveis aos Municípios por força de seu art. 144.
Como ensinou Hely Lopes Meirelles:
“A Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode
administrar. Cada um dos órgãos tem missão própria e privativa: a Câmara
estabelece regra para a Administração; a Prefeitura a executa, convertendo o
mandamento legal, genérico e abstrato, em atos administrativos, individuais e
concretos. O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as
normas. Nesta sinergia de funções é que residem a
harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º)
extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara,
realizada com usurpação de funções é nula e inoperante (...) todo ato do
Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da
Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo,
por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local
(CF, art.2º c/c o art.31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito Municipal Brasileiro, 15ª. ed.,
São Paulo: Malheiros, 2006, p. 708, 712).
Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder
Legislativo administra, editando leis de efeitos concretos, ou que equivalem, na prática, a verdadeiros atos de administração, viola
a harmonia e independência que deve existir entre os Poderes. Essa é exatamente
a hipótese verificada nos autos.
Neste sentido, já proclamou esse Egrégio Tribunal que:
“Ao Executivo haverá de caber sempre o exercício de atos que
impliquem no gerir as atividades municipais. Terá, também, evidentemente, a
iniciativa das leis que lhe propiciem a boa execução dos trabalhos que lhe são
atribuídos. Quando a Câmara Municipal, o órgão meramente legislativo, pretende
intervir na forma pela qual se dará esse gerenciamento, está a usurpar funções
que são de incumbência do Prefeito” (ADI n. 53.583-0, Rel. Des. Fonseca
Tavares).
E nesta linha, verificando a inconstitucionalidade por
ruptura do princípio da separação de poderes, este Egrégio Tribunal de Justiça
vem declarando a inconstitucionalidade de leis similares (ADI 117.556-0/5-00,
Rel. Des. Canguçu de Almeida, v.u., 02-02-2006; ADI 124.857-0/5-00, Rel. Des.
Reis Kuntz, v.u., 19-04-2006; ADI 126.596-0/8-00, Rel. Des. Jarbas Mazzoni,
v.u., 12-12-2007; ADI 127.526-0/7-00, Rel. Des. Renato Nalini, v.u.,
01-08-2007; ADI 132.624-0/6-00, Rel. Des. Mohamed Amaro, m.v., 24-10-2007; ADI
142.130-0/0-00, Rel. Des. Ivan Sartori, 07-05-2008).
De outro lado, o ato legislativo impugnado também
revela a inexistência de adequado planejamento para a elaboração do ato
normativo.
A matéria
atinente à gestão da cidade decorre, essencialmente, da administração
realizada pelo Chefe do Executivo, o que leva à conclusão de que, na hipótese
em exame, foi violado o princípio da separação de poderes (arts. 5º e 47, II e
XIV, Constituição Paulista; art. 2º, Constituição Federal).
Embora o Município seja dotado de autonomia política e
administrativa, dentro do sistema federativo (arts. 1º e 18, Constituição
Federal), esta autonomia não tem caráter absoluto. Limita-se ao âmbito
pré-fixado pelo ente estrutural e hierarquicamente superior, isto é, a
Constituição Federal (José Afonso da Silva, Direito
constitucional positivo, 13ª ed., São Paulo, Malheiros, 1997, p.459). E
deve ser exercida com a observância dos princípios contidos na Constituição
Federal e na Constituição Estadual (Luiz Alberto David Araújo e Vidal Serrano
Nunes Júnior, Curso de direito
constitucional, 9ªed., São Paulo, Saraiva, 285) para a consecução de suas
quatro capacidades básicas: (a) capacidade de auto-organização (elaboração de
lei orgânica própria); (b) capacidade de autogoverno (eletividade do Prefeito e
dos Vereadores às respectivas Câmaras Municipais); (c) capacidade normativa
própria (autolegislação, mediante competência para elaboração de leis
municipais); (d) capacidade de auto-administração
(administração própria para manter e prestar serviços de interesse local); que
refletem, respectivamente, a autonomia política (capacidades de
auto-organização e de autogoverno), normativa (capacidade de fazer leis
próprias sobre matéria de suas competências), administrativa (administração
própria e organização dos serviços locais) e financeira (capacidade de
decretação de seus tributos e aplicação de suas rendas).
A autonomia do Município, entretanto, deve respeitar o
princípio da separação dos Poderes, contando o art. 5º da Constituição do
Estado com a expressa previsão de que eles atuam de forma independentemente e
harmônica, regra, aliás, que também consta do art. 2º da Constituição Federal,
igualmente aplicável no âmbito estadual por força do art. 144 da Constituição
Bandeirante.
Recorde-se, com Hely Lopes Meirelles, que as
atribuições do Prefeito são de natureza governamental e administrativa, sendo
certo que atua sempre “por meio de atos concretos e específicos, de governo
(atos políticos) ou de administração (atos administrativos), ao passo que a
Câmara desempenha suas atribuições típicas editando normas abstratas e gerais
de conduta (leis). Nisso se distinguem fundamentalmente suas atividades. O ato
executivo do Prefeito é dirigido a um objetivo imediato, concreto e especial; o
ato legislativo da Câmara é mediato, abstrato e genérico(...)
O prefeito provê in concreto, em razão do seu poder de administrar; a Câmara
provê in abstracto em virtude de seu poder de regular. Todo ato do prefeito que
infringir a prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que
invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por
ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF,
art.2º c.c. o art.31), podendo ser invalidado pelo Judiciário” (Direito Municipal Brasileiro, 6ªed., 3ª
tir., atualizada por Izabel Camargo Lopes Monteiro e Yara Darcy Police
Monteiro,
São Paulo, Malheiros, 1993, p. 523).
A lei em exame ofendeu a separação que deve ocorrer no
exercício das funções estatais, por ingressar na esfera de competência do Poder
Executivo.
Pela natureza da matéria e pelos requisitos que nosso
sistema constitucional estabelece para a elaboração da legislação urbanística,
é lícito afirmar que ela demanda planejamento administrativo.
E o planejamento na ocupação e uso do solo urbano das cidades é algo que só o
Poder Executivo é habilitado, estrutural e tecnicamente, a fazer.
Considerando que ao Poder Legislativo cabe legislar, e
ao Poder Executivo cabe administrar, é lícito concluir que o ato legislativo
que invade a esfera da gestão administrativa - que envolve atos de planejamento
e estabelecimento de diretrizes – é inconstitucional, por violar a regra da
separação de Poderes.
Por igualdade de razões é que a Constituição Estadual,
em dispositivo aplicável aos Municípios em função do seu art. 144, prevê, nos incisos II e XIV do seu art. 47 as atribuições
privativas do Chefe do Executivo para “exercer, com o auxílio dos Secretários
de Estado, a direção superior da administração estadual”, bem como “praticar os
demais atos de administração, nos limites da competência do Executivo”.
Vale, a propósito, colacionar precedentes desse
egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em casos que tratam de leis
municipais de iniciativa parlamentar dispondo sobre comércio local:
“Ação Direta de Inconstitucionalidade. Leis Municipais de Ubatuba, de iniciativa parlamentar, dispondo sobre o comércio ambulante. Afronta ao princípio da separação dos poderes. Invasão de competência exclusiva do Executivo. Ação procedente para declarar a inconstitucionalidade das leis, salvo a Lei 2.351/03, já declarada anteriormente e a Lei 3.260/09, objeto de outra ação em trâmite.” (Adin n. 0368633-44.2010.8.26.0000, relator Min. Ruy Coppola, j. 16.03.2011)
"Ação Direta de Inconstitucionalidade. Lei 5.479/10, do
Município de Jacareí, que altera a Lei 5.330/2008, que 'dispõe sobre a
organização e funcionamento das feiras
livres'. Ato de gestão administrativa. Ofensa ao princípio da
separação dos poderes. Ação procedente" (Ação Direta de
Inconstitucionalidade nº 0403421-84.2010.8.26.0000, Órgão Especial do Tribunal
de Justiça de São Paulo, v. un., Rel. Des. Cauduro Padin, em 16/3/11).
Não
bastasse isso, a Constituição Federal prevê também, no art. 170, caput, e respectivo inciso IV, como
princípios gerais da atividade econômica, entre outros a livre iniciativa (art. 1º, IV, CF), a livre concorrência (art. 170, caput, IV, CF), a liberdade no exercício
de qualquer trabalho (art. 5º, XIII, CF) e o livre exercício de qualquer
atividade econômica (art. 170, parágrafo único, CF). Tais princípios também
são aplicáveis aos Estados e Municípios por força do art. 144
da Constituição Paulista.
O
legislador, ao impor a referida proibição ao comércio local, regulou
indevidamente atividade comercial. Se o município tem autonomia para
disciplina da polícia do comércio, não pode exercê-la para além dos limites
daquilo que consubstancie a predominância do interesse local. Neste sentido já se decidiu que:
“(...) 2. A competência constitucional dos
Municípios de legislar sobre interesse local não tem o alcance de estabelecer
normas que a própria Constituição, na repartição das competências, atribui à União
ou aos Estados. (...)” (RT 851/128).
O dispositivo legal em apreço, na verdade, está
restringindo a livre iniciativa e a livre concorrência.
A propósito, leciona José Afonso da Silva que: “A
liberdade de iniciativa envolve a liberdade de indústria e comércio ou
liberdade de empresa e a liberdade de contrato. Consta do art. 170, como um dos
esteios da ordem econômica, assim como de seu parágrafo único que assegura a
todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de
autorização de órgãos públicos, salvo casos previstos em lei”.
Em síntese, a lei: (a) interfere no planejamento
urbanístico, que se enquadra no conceito de gestão administrativa, reservada
esta ao Poder Executivo; e (b) restringe a livre iniciativa e a livre concorrência.
III
– Pedido liminar
À
saciedade demonstrado o fumus boni iuris,
pela ponderabilidade do direito alegado, soma-se a ele o periculum in mora. A atual tessitura dos preceitos normativos
municipais apontados como violadores de princípios e regras da Constituição do
Estado de São Paulo é sinal, de per si,
para suspensão de sua eficácia até final julgamento desta ação, evitando-se
atuação desconforme o ordenamento jurídico, criadora de lesão irreparável ou de
difícil reparação.
À luz desta contextura, requer-se a concessão de liminar para suspensão da eficácia, até final e definitivo julgamento desta ação, da Lei nº 5.713, de 01 de dezembro de 2015, do Município de Catanduva.
IV
– Pedido
Face ao exposto, requer o recebimento e
o processamento da presente ação para que, ao final, seja julgada procedente
para declarar a inconstitucionalidade da Lei nº 5.713, de 01 de dezembro
de 2015, do Município de Catanduva.
Requer
ainda sejam requisitadas informações à Câmara Municipal e ao Prefeito Municipal
de Catanduva, bem como posteriormente citado o douto Procurador-Geral do Estado
para se manifestar sobre o ato normativo impugnado, protestando por nova vista,
posteriormente, para manifestação final.
Termos
em que, pede deferimento.
São
Paulo, 19 de maio de 2016.
Gianpaolo Poggio Smanio
Procurador-Geral de Justiça
efrco/mam
Protocolado n.
27.507/2016
Interessado: Promotoria
de Justiça de Catanduva
1. Distribua-se
a petição inicial da ação direta de inconstitucionalidade, em face da Lei nº
5.713, de 01 de dezembro de 2015, do Município de Catanduva, junto ao
Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.
2. Oficie-se ao interessado, informando-lhe a propositura da ação, com cópia da petição inicial.
São Paulo, 19 de maio de 2016.
Gianpaolo Poggio Smanio
Procurador-Geral de Justiça
efrco/mam