EXCELENTÍSSIMO SENHOR DESEMBARGADOR PRESIDENTE DO E. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

 

 

 

Protocolado nº 20.285/16

 

Ementa: Constitucional. Tributário. Ação Direta Inconstitucionalidade. Decreto nº 6.186, de 29 de dezembro de 1997, consideradas as alterações promovidas pelos Decretos nº 6.236/98, 6.775/00 e 8.354/05, todos do Município de Indaiatuba. Tarifa de expediente. Inexistência de especificidade e divisibilidade para instituição. Ofensa ao direito constitucional de petição, ao direito de obter informações junto à administração e à legalidade tributária. 1. Ofende o art. 164, I da Carta Bandeirante a “Tarifa de Expediente” prevista no Decreto nº 6.186/97, do Município de Indaiatuba, porquanto a apresentação de petição ou documento a ser apreciado pela Administração não pode estar sujeita à cobrança de exação (direito de petição). 2. Ademais, a presente “Tarifa de Expediente” viola duplamente a legalidade tributária (art. 163, I, CE), pois, de proêmio, institui tributo sem lei (decreto autônomo), e se funda em texto normativo vago em discriminar as situações nas quais sua cobrança é exigida, fato este que permite a ampliação demasiada da cobrança do tributo em apreço (legalidade cerrada). 3. Por fim, aTarifa de Expediente” prevista no Decreto nº 6.186/97, do Município de Indaiatuba, não se coaduna com o art. 160, II, da CE, vez que, embora incida para o desempenho de um serviço público, não atende aos requisitos da especificidade e divisibilidade, encerrando mais uma atividade inerente à existência da Administração, que à luz dos princípios da publicidade e do interesse público, deve permitir vias de acesso aos particulares junto ao Poder Público, seja por protocolo de pedidos ou deflagração de processos, possibilitando o controle das atividades estatais e impugnação de eventuais abusos cometidos pelos agentes públicos.

 

 

 

O PROCURADOR-GERAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO, no exercício da atribuição prevista no art. 116, inciso VI, da Lei Complementar Estadual nº 734, de 26 de novembro de 1993 (Lei Orgânica do Ministério Público de São Paulo), em conformidade com o disposto no art. 125, § 2º e art. 129, inciso IV, da Constituição Federal, e ainda art. 74, inciso VI e art. 90, inciso III, da Constituição do Estado de São Paulo, com amparo nas informações colhidas no incluso protocolado (PGJ nº 20.285/16), vem, respeitosamente, perante esse Egrégio Tribunal de Justiça, promover a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE em face da “Tarifa de Expediente” prevista no Decreto nº 6.186, de 29 de dezembro de 1997, consideradas as alterações promovidas pelos Decretos nº 6.236/98, 6.775/00 e 8.354/05, todos do Município de Indaiatuba, pelos seguintes fundamentos:

I - DO ATO NORMATIVO IMPUGNADO

Editado em 29 de dezembro de 1997, no Município de Indaiatuba, o Decreto nº 6.186 trouxe a lume no ente regramento concernente à “Tarifa de Expediente” e sua forma de cobrança, a qual é exigida dos munícipes em razão de serviços de protocolo de requerimentos em geral e tramitação de processos administrativos.

Consideradas as alterações promovidas pelos Decretos de nº 6.236/98, 6.775/00 e 8.354/05, o referido ato normativo possui a seguinte redação:

“Art. 1º - Fica instituído o selo auto-adesivo destinado à aposição nos requerimentos e, geral e para a tramitação de processos administrativos instaurados por interesse particular, junto aos serviços de protocolo, no valor de R$ 8,00 (oito reais) (redação alterada pelo Decreto nº 8.354, de 18 de março de 2005).

Parágrafo único – O valor a que se refere o “caput” deste artigo será atualizado na mesma época e de conformidade com a variação da UFESP – Unidade Fiscal do Estado de São Paulo, ou por outro índice que venha a substituí-lo e venha a ser adotado pela legislação municipal, sendo desprezada a fração em centavos na respectiva fixação, na forma de ato específico da Secretaria Municipal da Fazenda.

Art. 2º - O selo auto-adesivo conterá o brasão do município e dispositivo de segurança de auto-destruição.

Art. 3º - O selo instituído por este Decreto será fornecido aos interessados pela Divisão de Tesouraria, que arrecadará a tarifa correspondente.

Parágrafo único – Os valores arrecadados serão depositados em conta bancária do Fundo Social de Solidariedade – FUNSSOL.

Art. 4º - O selo auto-adesivo será aposto na inicial dos requerimentos que derem origem aos processos administrativos.

Parágrafo único – Os processos administrativos de interesse particular só poderão tramitar com o selo auto-adesivo correspondente ao pagamento da tarifa de protocolo.

Art. 5º - Ficam isentos da selagem os processos administrativos abertos a requerimento de (redação alterada pelo Decreto nº 6.236, de 26 de março de 1998):

I – funcionários municipais, quando o requerimento se referir à sua situação funcional;

II – sociedades civis, sem fins lucrativos, de caráter filantrópico, com sede neste município;

III – Secretários Municipais ou Procuradores do Município, para a solução de questões de interesse do Município;

IV – Isenção ou redução de IPTU – Imposto Predial e Territorial Urbano, quando efetuados por aposentados ou seus procuradores, com fundamento na legislação municipal que prevê a concessão desse benefício fiscal em favor de aposentados;

V – concessão de planta ou projeto de moradia econômica;

VI – isenção ou redução de tributos municipais previstas em lei, quando feitas por adquirentes de casas populares em conjuntos habitacionais realizados por cooperativas, estatais ou órgãos oficiais, mediante convênio com a Prefeitura Municipal.

Parágrafo único – Os Secretários Municipais poderão delegar a assessores e diretores de departamento, mediante Portaria, a competência prevista neste artigo (redação alterada pelo Decreto nº 6.775, de 14 de março de 2000).

Art. 6º - Este Decreto entrará em vigor no dia 02 de janeiro.

Art. 7º - Revogam-se as disposições em contrário.”

Pois bem.

Conforme será explanado nesta exordial, em que pese o emprego da denominação “tarifa” para classificar a natureza da contraprestação exigida pela municipalidade ao prestar os serviços mencionados, o instituto em epígrafe, na verdade, encerra verdadeira taxa (tributo) instituída à margem das regras que disciplinam o sistema tributário nacional, havendo flagrante inconstitucionalidade da “Tarifa de Expediente”, ante os seguintes fundamentos.

II – DO parâmetro da fiscalização abstrata de constitucionalidade

O ato normativo indicado contraria frontalmente a Constituição do Estado de São Paulo, à qual está subordinada a produção normativa municipal ante a previsão dos arts. 1º, 18, 29 e 31 da Constituição Federal.

Os preceitos da Constituição Federal e da Constituição do Estado são aplicáveis aos Municípios por força do art. 29 daquela e do art. 144 desta.

O ato normativo vergastado é incompatível com os seguintes preceitos da Constituição Estadual:

“Artigo 144 - Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.

(...)

Artigo 160 - Compete ao Estado instituir:

(...)

II - taxas em razão do exercício do poder de polícia, ou pela utilização, efetiva ou potencial, de serviços públicos de sua atribuição, específicos e divisíveis, prestados ao contribuinte ou postos a sua disposição;

(...)
SEÇÃO II

Das Limitações do Poder de Tributar

Artigo 163 - Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado ao Estado:

I - exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça;

(...)

Artigo 164 - É vedada a cobrança de taxas:

I - pelo exercício do direito de petição ao Poder Público em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder;

II - para a obtenção de certidões em repartições públicas, para defesa de direitos e esclarecimentos de interesse pessoal.

(...)”.

III – Da inconstitucionalidade dA TARIFA DE EXPEDIENTE instituída pelo município de indaiatuba POR MEIO DO DECRETO Nº 6.186, DE 29 DE DEZEMBRO DE 1997.

Segundo informações prestadas às fls. 54/56 do incluso protocolado, a “Tarifa de Expediente” prevista no Decreto nº 6.186/97 passou a ser exigida pelo município em função da ausência de essencialidade no desempenho dos serviços de protocolo de requerimentos em geral e à tramitação de processos administrativos no Município de Indaiatuba.

No entendimento da municipalidade:

“(...) temos que a remuneração de serviços de protocolo de requerimentos em geral e tramitação de processos administrativos de interesse em geral, não se trata de prestação de serviço público genérico e em potencial a todos os contribuintes do Município de Indaiatuba, ou seja, serviço público do ponto de vista material e formal, mas, na verdade, se trata de atividade não essencial da Prefeitura de Indaiatuba, destinada a garantir o acesso público e físico a todo e qualquer usuário interessado neste tipo de atividade, exigindo a cobrança (do usuário) apenas o custo financeiro pelo fornecimento dos serviços de protocolo, correspondente ao pagamento da tarifa de protocolo, suficiente para cobrir seus custos – preço público.

(...)

Por essa razão, ao contrário do que preconiza o douto Promotor de Justiça, não há que se falar em inconstitucionalidade material e ou formal, neste último caso porque não é o caso de edição de lei formal editada na forma do processo legislativo, mas de decreto do Poder Executivo – ato legislativo editado dentro da esfera da gestão administrativa, devidamente autorizado pelo art. 119 da Lei Orgânica do Município de Indaiatuba – LOMI (...)” (g.n.)

Ou seja, para o Município de Indaiatuba os serviços públicos em questão não seriam enquadrados como essenciais, estando, portanto, afastados da incidência de taxas, podendo, ao contrário, ser custeados por tarifa, cuja instituição resta autorizada pela via de decreto, segundo o art. 119 da Lei Orgânica Municipal.

Todavia, em que pese o posicionamento da municipalidade, a situação em apreço evidencia uma teratologia insustentável à luz do ordenamento jurídico, na medida em que a atividade desempenhada pela Administração para a instituição da “Tarifa de Expediente” se situa no espectro de serviços essenciais ao interesse público e justificadores da existência do Estado, para cujo custeio se reclama a edição de taxa (tributo).

Com efeito, para melhor compreensão da problemática, observe-se a classificação doutrinária existente nos compêndios jurídicos acerca dos serviços públicos e suas respectivas fontes de custeio (taxa versus tarifa), que auxiliará a desvendar qual espécie de contraprestação poderá ser imposta para financiar as atividades promovidas pela Administração, lembrando ser irrelevante a nomenclatura empregada pelo legislador local, pois o que caracteriza determinado instituto jurídico é a sua natureza e contornos, pouco importando o nome in iuris a ele empregado, a exemplo do que prescreve o art. 4º da Lei Federal nº 5.172/66 (Código Tributário Nacional).

Segundo posicionamento majoritário, serviços públicos podem ser essenciais/administrativos ou econômicos/empresariais, e a depender de sua categoria a Administração irá custeá-los via taxa (tributo) ou tarifa (preço público), espécie estas, frise-se, completamente diversas em razão da forma de instituição e dos contornos legais que as disciplinam.

Em relação aos primeiros, estes são caracterizados como atividades ínsitas à soberania do Estado ou essenciais ao interesse público, possuindo regramento legal, natureza de receita derivada e cobrados via taxas (tributo).

 

Assim, a contraprestação instituída neste caso deve observar os limites constitucionais ao poder de tributar, sob pena de ofensa ao texto constitucional.

Em contrapartida, os serviços econômicos/empresariais são dotados de natureza contratual, resultando de um ato de vontade das partes, cuja contraprestação (tarifa), que não depende de lei para sua edição, destina-se a cobrir os gastos resultantes de serviço público não-essencial, possuindo receita de natureza originária.

Ou seja, “taxa e preço público diferem quanto à compulsoriedade de seu pagamento. A taxa é cobrada em razão de uma obrigação legal enquanto o preço público é de pagamento facultativo por quem pretende se beneficiar de um serviço prestado” (RT 914/430), e além disso, este se caracteriza como receita não tributária decorrente da prestação de serviços públicos empresariais ou da exploração de atividade econômica pelo Estado ou de bem público pelo particular. A diferenciação encontra-se na Súmula 545 do Supremo Tribunal Federal, verbis:

“Preços de serviços públicos e taxas não se confundem, porque estas, diferentemente daqueles, são compulsórias e têm sua cobrança condicionada à prévia autorização orçamentária, em relação à lei que as institui”.

Sobre o tema em discussão, aliás, cumpre mencionar que o E. STF, no RE nº 86.876, relatado pelo eminente Min. Moreira Alves, no qual se discutia a natureza jurídica de contraprestação paga em função dos serviços de remoção de lixo, teve a oportunidade de firmar entendimento acerca da diferenciação de serviços públicos e suas respectivas fontes de custeio, a fim de pacificar inúmeras discussões que chegavam àquela Augusta Corte.

No caso, a Suprema Corte firmou posicionamento, até hoje insuperável, sobre questão análoga à travada nesta demanda, razão pela qual pedimos para reproduzir excertos da r. decisão, os quais auxiliarão o deslinde da quaestio iuris trazida a este Colendo Órgão Especial:

“Como distinguir os casos em que é cabível a instituição de taxa dos em que é permitida a do preço público? (...) A solução só pode ser encontrada, em casos como o presente, no exame da natureza da relação jurídica que está em causa, entre o Poder Público e o particular. A contrapartida será preço público se o serviço prestado (remoção normal de lixo domiciliar) for serviço comercial ou industrial; será taxa, se ele serviço próprio do Estado, ou seja, serviço que se prende intimamente às atribuições do Poder Público, que tem o dever de prestá-los porque eles visam, em primeiro plano, à coletividade, e, somente em segundo plano, ao interesse individual. (...) O que importa, no caso, é examinar a natureza do serviço prestado, para saber se é ele um serviço devido pelo Poder Público (e, portanto, obrigatório para ele), ou se, apenas, este pode ou não prestá-lo, o que implica dizer que a prestação é facultativa para ele, e, consequentemente, se ele o presta, o particular tem, também, faculdade de usar, ou não, dela.”

Fazendo um cotejo da decisão esposada com a questão trazida à baila, infere-se que a atividade de protocolo de requerimentos em geral e tramitação de processos administrativos se aloca na categoria de serviços públicos essenciais aos administrados, de sorte que eventual cobrança para financiar seus custos deveria ser promovida por meio de tributo, no caso, taxa, e não sob a modalidade “tarifa”, como fora no feito pelo Município no caso apresentado.

Destarte, por não observar as prescrições do sistema constitucional tributário, a “Tarifa de Expediente”, instituída pelo Decreto nº 6.186/97, revela-se inconstitucional ante sua ofensa a diversos preceitos impostos pelo texto constitucional, a começar pelo óbice ao direito fundamental de petição, previsto na Constituição Federal de 1988 (art. 5º, XXXIV, alínea “a”) e resta protegida na Carta Bandeirante, especificamente em seu art. 164, inciso I.

Com efeito, a exigência de contraprestação de natureza tributária para viabilizar o protocolo de requerimentos em geral e tramitação de processos administrativos, ofende o art. 164, inciso I, da Carta Bandeirante, que veda qualquer tributação incidente sobre o exercício do consagrado direito de petição, destinado à defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder. Vejamos:

“Artigo 164 - É vedada a cobrança de taxas:

I - pelo exercício do direito de petição ao Poder Público em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder;”

E nem poderia ser diferente, vez que o direito de petição aduzido no texto magno de 1988 configura-se mecanismo assaz relevante ao controle administrativo, não podendo o legislador infraconstitucional, muito menos o Constituinte Derivado Reformador ou Decorrente, tolher tal instrumento dos detentores do poder constituinte, sob pena de afronta a diversos preceitos constitucionais, em especial à cidadania, prevista como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil (art. 1º, II, CF/88).

Acerca dos contornos do direito de petição, confira-se o entendimento sedimentado no seio da jurisprudência do E. Supremo Tribunal Federal. In verbis:

“O direito de petição, presente em todas as Constituições brasileiras, qualifica-se como importante prerrogativa de caráter democrático. Trata-se de instrumento jurídico-constitucional posto à disposição de qualquer interessado – mesmo daqueles destituídos de personalidade jurídica –, com a explícita finalidade de viabilizar a defesa, perante as instituições estatais, de direitos ou valores revestidos tanto de natureza pessoal quanto de significação coletiva. (...).” (ADI 1.247-MC, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 17-8-1995, Plenário, DJ de 8-9-1995.)

Portanto, dada a envergadura constitucional do instrumento em apreço, haja vista ser espécie de direito subjetivo do administrado voltado não somente a sua defesa em face de atuações abusivas e/ou ilegais do Poder Público, mas também à higidez da atuação administrativa, que apenas é legitimamente desenvolvida quando esteja sob a égide de preceitos constitucionais impostos pela Carta Maior, em especial a legalidade, é defeso qualquer ato estatal destinado a impedir seu exercício, de sorte que, nesse diapasão, não outro entendimento pode ser patrocinado senão o da flagrante inconstitucionalidade da “Tarifa de Expediente” inserta no Decreto nº 6.186/97.

Não obstante a inconstitucionalidade apontada, a “tarifa” objurgada também viola o art. 163, I, da Constituição Estadual, que contempla o princípio da legalidade tributária. Senão vejamos.

Em qualquer seara da ciência jurídica, sempre houve a preocupação por parte dos teóricos em se buscar um ideal de justiça nas relações por eles disciplinadas, sendo que no Direito Tributário tal desiderato não poderia ser outro.

Se de um lado o Estado necessita de receitas voltadas à mantença de sua complexa máquina, não menos relevante é o interesse do contribuinte em defender seu patrimônio da iminente atividade predatória desempenhada pelos entes quando do exercício de seu poder de tributar, de sorte que a bem de um sistema arrecadatório equilibrado caberia ao próprio ordenamento estabelecer balizas voltadas a compatibilizar intentos deveras antagônicos.

Nesse contexto e tendo em vista sua natureza garantista por excelência, a Constituição Federal de 1988 instituiu no decorrer de seu texto, inúmeros direitos e garantias na órbita tributária à defesa do cidadão, plasmando em seu Título VI, Capítulo I, Seção I, limites expressos e implícitos à efetivação da capacidade tributária ativa pelos entes, dentre os quais destaca-se, em função de sua relevância no presente caso, o princípio da legalidade tributária (art. 150, I, CF; art. 163, I, CE).

Segundo a Carta Maior, o princípio da legalidade tributária veda a exigência ou majoração de tributo sem lei que o estabeleça (art. 150, I, CF), impondo ao legislador infraconstitucional, portanto, o dever de observância à estrita legalidade quando da produção normativa tributária atinente a certos institutos.

No que tange à compreensão da estrita legalidade em matéria tributária, pontuais são os apontamentos de José Maria Arruda Andrade. Vejamos:

“Sobre a legalidade, no plano constitucional, ela aparece como norteadora de toda a estrutura do Estado de direito e da repartição das funções públicas. No âmbito do direito tributário, a legalidade atua de forma mais específica e determinante, configurando o que a doutrina e a jurisprudência costumam chamar de estrita legalidade, reserva absoluta de lei ou tipicidade fechada tributária, de acordo com a orientação teórica adotada. Para o devido entendimento acerca da legalidade no direito tributário, deve-se analisá-lo inserido na ideia de Estado de direito e em sua feição liberal. A legalidade surge justamente diante do esforço de ascensão política por parte da burguesia, no contexto do século XVIII, e de sua necessidade de impor maior controle à atuação estatal, para permitir a livre fruição de bens e a segurança das relações jurídicas privadas.

(...)

No que tange à legalidade, ela surge como instrumento, nesse contexto, limitador, justamente, da atividade estatal. A legalidade não será vista como um conteúdo de atuação, mas como um limitador na relação Estado e cidadão, uma proteção deste último. Outro elemento relevante, decorrente da separação dos poderes, é a reserva da lei (muitas vezes alegadamente absoluta), já que qualquer ato estatal que invada a esfera da liberdade individual, e aqui se tem o tributo como figura-chave dessa invasão, somente pode ser autorizado pelos representantes do povo (da burguesia, no caso), no Poder Legislativo (no taxation without representation). Tem-se, assim, as duas chaves principais do Estado de direito: a legalidade/limite e a separação de poderes.” (Andrade, José Maria Arruda. Interpretação da Norma Tributária, São Paulo: MP Editora, 2006, p. 169/170).

Fazendo uso das lições esposadas, em conjunto com a regra inserta no art. 150, I da CF, reproduzida no art. 163, I da CE, percebe-se a clara intenção do Constituinte em conferir aos administrados uma garantia/limite em face do ius imperium estatal quando da promoção de seu poder de tributar, porquanto a ausência de balizas à tributação poderia trazer efeitos indesejados a toda coletividade, o que não se consente desde a instituição do Estado de Direito, cujo surgimento se deve justamente ao desígnio de se limitar a atuação estatal que outrora restava desenfreada sob o manto do absolutismo monárquico.

E nem poderia ser diferente, porquanto em um Estado de Direito estruturado sob o império da lei, qualquer atividade tributária descompassada da estrita legalidade revela-se abusiva e arbitrária, dissonante do almejado controle ao poder de tributar preconizado no Título VI, Capítulo I, Seção I da CF/88.

Assim, para a legitimidade da edição de qualquer exação cabe ao legislador infraconstitucional prever no respectivo diploma todos os elementos estruturantes essenciais ao surgimento do tributo (tipicidade cerrada), sob pena de se arredar da garantia supramencionada e, consequentemente, se distanciar de um sistema tributário coerente, cuja essência reside na tributação razoável e controlada de seus contribuintes em prol da existência digna destes, e que, ao mesmo tempo, permite a concretização do objetivo constitucional voltando à garantia do desenvolvimento nacional, seja no âmbito econômico, social ou em outros.

Pois bem.

No caso trazido a lume, o Decreto nº 6.186/97 padece de inconstitucionalidade por dupla ofensa ao princípio da legalidade.

Primeiro, porque instituiu tributo por via diversa da lei, no caso, por decreto autônomo, ainda que se questione não se tratar de tributo e taxa, discussão esta já superada alhures.

 Segundo, por estar a “Tarifa de Expediente” calcada em fato gerador materializado quando da prestação de “serviços de protocolo de requerimentos em geral”.

Ora, a exigência de “tarifa” pela consecução de “serviços de protocolo de requerimentos em geral” encontra certa elasticidade semântica, haja vista sua vagueza conceitual que abriria ao ente a possibilidade de tributar uma enorme gama de serviços, havendo nítido desrespeito ao art. 163, I da Carta Bandeirante, porquanto o ente municipal lançou mão de construção imprecisa e com amplo espectro de incidência, vez que a definição de sua significância restaria na competência discricionária do ente, o que não se permite à luz da tipicidade cerrada em matéria tributária.

Conforme exaustivamente explanado nos parágrafos anteriores, além da exigência de lei stricto sensu para legitimar a cobrança de tributo, a imposição de exação requer também o detalhamento em lei de seus elementos estruturantes essenciais, a fim de tornar passível a aferição da presença desses e viabilizar sua exigência pelo ente tributante, que somente pode arrecadá-lo, frise-se, quando todos os elementos do tributo estiverem presentes no mundo fenomênico e estejam, outrossim, em conformidade com o ordenamento (tipicidade cerrada).

Ademais, se faz relevante pontuar que caso fosse possível uma tributação a esmo, sem que houvesse uma delimitação fechada pelo legislador quando da instituição de espécies tributárias, rememorando que a “tarifa” em questão na verdade trata-se de tributo, tal atividade administrativa se encontraria em oposição à segurança almejada pelo Constituinte Originário, que na Lei Fundamental obrigou os entes políticos a respeitar a legalidade asseguradora das liberdades individuais, assim como a própria atividade administrativa, porquanto somente cabe ao Poder Público atuar quando houver previsão legal neste sentido, e dentro de seus limites (art. 37, caput, CF; art. 111, caput, CE).

Assim sendo, a “Tarifa de Expediente” instituída pelo Decreto nº 6.186/97 também encontra-se eivada de manifesta inconstitucionalidade material por dupla ofensa à legalidade tributária insculpida no art. 163, I da Carta Paulista.

Por fim, não bastassem os vícios apontados, a “Tarifa de Expediente” em exame suscita outro questionamento acerca da sua compatibilidade com o texto constitucional, precisamente com o art. 160, II, da CE. Vejamos.

Conforme estabelece a Constituição Paulista, somente é conferida ao ente tributante a competência para instituir taxas em razão do poder de polícia ou pela oferta de serviços públicos. In verbis:

“Artigo 160 - Compete ao Estado instituir:

(...)

II - taxas em razão do exercício do poder de polícia, ou pela utilização, efetiva ou potencial, de serviços públicos de sua atribuição, específicos e divisíveis, prestados ao contribuinte ou postos a sua disposição;”

A despeito de mencionar apenas a competência do Estado-membro à edição da aludida espécie tributária, cumpre ressaltar que as disposições da Constituição Estadual se aplicam também aos Municípios circunscritos em seus limites territoriais, vide o disposto no art. 144 da Carta Paulista:

“Artigo 144 - Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.”

Pois bem.

Afastando a natureza de poder de polícia da “Tarifa de Expediente” ora vergastada, ante a ausência desse atributo em seu fato gerador, compete perquirir se a “tarifa” em comento, que, conforme já explanado, é uma taxa, poderia ser editada sob a alegação da existência de serviço público na situação, a fim de ser possível sua exigência, ou se, ao contrário, os serviços de protocolo e tramitação de processos não passariam de atividades típicas da Administração local, que deveriam ser custeados por outra espécie tributária. Vejamos.

À luz do comando constitucional disciplinador da matéria, as taxas cobradas em razão de serviços públicos fruídos ou postos à disposição do contribuinte devem respeitar três critérios essenciais e cumulativos para sua legitimidade, sendo estes: (a) Existência de serviço público; (b) Especificidade do serviço; e (c) Divisibilidade do serviço em relação a seus usuários.

Dentre os requisitos mencionados, perceba-se que o Constituinte Derivado, reproduzindo a mens legis da Carta Republicana Federal, impõe como critério primordial à edição desta espécie de taxa a existência de serviço público, de sorte que sua definição, portanto, é o ponto fulcral ao deslinde da questão.

Ante conceito perfilado por doutrina balizada, o instituto em comento possui os seguintes contornos:

“Toda atividade prestada pelo Estado ou por seus delegados, basicamente sob regime de direito público, com vistas à satisfação de necessidades essenciais e secundárias da coletividade” (Carvalho Filho, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo, Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2010, p. 350).

Interpretando a definição supramencionada, se conclui que a existência de serviço público requer a prestação de atividade voltada à satisfação de necessidades individuais dos membros da coletividade, sejam de caráter essencial ou secundário.

Aliás, se analisada a fundo, a própria locução examinada evidencia uma carga semântica que de per si revela seu animus existencial, posto que outra interpretação não poderia ser extraída de “serviço público” senão a de que esta atividade é ofertada ao público, embora cada contribuinte tenha seu interesse individualizado quando da cobrança da exação.

Não por outro motivo é que o sistema tributário constitucional exige a especificidade e divisibilidade do serviço público prestado ou posto à disposição do contribuinte para a exigência de taxa, posto que, embora tal atividade seja ofertada em benefício de toda a coletividade, sua fruição será particularizada, aferida em relação a cada um dos sujeitos passivos.

Todavia, ao instituir a “Tarifa de Expediente” para financiar suposta atividade estatal relacionada aos protocolos em geral e tramitação de processos, o Município de Indaiatuba desvirtuou completamente institutos jurídicos consagrados, vez que, por exemplo, alargou indevidamente o conceito de “serviço público” a fim de possibilitar a cobrança de taxa sobre atividade típica da Administração Municipal, qual seja, o recebimento de pleitos formulados pelos administrados, os quais são os verdadeiros senhorios dos poderes que justificam a criação do Estado, e em razão dos quais existe toda a máquina estatal voltada à promoção de sua dignidade humana.

Ora, da leitura do Decreto nº 6.186/97 percebe-se que a atividade desempenhada pela municipalidade, embora seja um serviço público, enseja exação que não atende aos requisitos da especificidade e divisibilidade, pois a hipótese de incidência consiste em atividade inerente à existência da Administração, que ante os princípios da publicidade e do interesse público, deve permitir vias de acesso aos particulares junto ao Poder Público, seja por protocolo de pedidos ou pela deflagração de processos, possibilitando o controle das atividades estatais e impugnação de eventuais abusos cometidos pelos agentes públicos.

Destarte, no esteio dos fundamentos perfilados, é manifesta a incompatibilidade da “Tarifa de Expediente” prevista no Decreto nº 6.186, de 29 de dezembro de 1997, do Município de Indaiatuba, devendo ser reconhecida sua inconstitucionalidade por este E. Tribunal de Justiça.

III – Pedido

Face ao exposto, aguarda-se o recebimento e o processamento da presente ação para que, ao final, seja julgada procedente, declarando a inconstitucionalidade da “Tarifa de Expediente” prevista no Decreto nº 6.186, de 29 de dezembro de 1997, consideradas as alterações promovidas pelos Decretos nº 6.236/98, 6.775/00 e 8.354/05, todos do Município de Indaiatuba.

Requer-se ainda sejam requisitadas informações ao Prefeito e à Câmara Municipal de Indaiatuba, bem como posteriormente citado o Procurador-Geral do Estado para se manifestar sobre os atos normativos impugnados, protestando por nova vista, posteriormente, para manifestação final.

Termos em que, pede deferimento.

São Paulo, 11 de agosto de 2016.

 

 

Gianpaolo Poggio Smanio

Procurador-Geral de Justiça

 

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Protocolado n. 20.285/16

Interessado: Promotoria de Justiça de Indaiatuba

Objeto: representação para controle de constitucionalidade do Decreto nº 6.186/97, do Município de Indaiatuba.

 

 

 

1.     Promova-se a distribuição de ação direta de inconstitucionalidade, instruída com o protocolado incluso, em face da “Tarifa de Expediente” prevista no Decreto nº 6.186, de 29 de dezembro de 1997, consideradas as alterações promovidas pelos Decretos nº 6.236/98, 6.775/00 e 8.354/05, todos do Município de Indaiatuba.

2.     Oficie-se ao interessado, informando-lhe a propositura da ação, com cópia da petição inicial.

                  

São Paulo, 11 de agosto de 2016.

 

 

 

Gianpaolo Poggio Smanio

Procurador-Geral de Justiça

 

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