EXCELENTÍSSIMO SENHOR DESEMBARGADOR PRESIDENTE DO E. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

 

Protocolado nº 109.563/2016

 

Constitucional. Administrativo. Ação Direta Inconstitucionalidade. Lei Complementar nº 05, de 28 de dezembro de 1990, do Município de São José do Rio Preto. Servidor Público. Remuneração. Vantagens Pecuniárias. Adicional de nível universitário. Gratificação por assiduidade. Instituição desvinculada do atendimento ao interesse público e às exigências do serviço. Ofensa aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, razoabilidade, finalidade e interesse público. Procedência da ação.  1. A concessão genérica de gratificação aos servidores públicos que possuam diploma universitário, sem critérios objetivos determinados, viola os princípios da legalidade, moralidade, impessoalidade, razoabilidade e interesse público. A vantagem pecuniária deve ser orientada única e exclusivamente à valorização do profissional cujo grau universitário tenha aderência ou relação lógica e direta com o plexo de funções elementares ao cargo. 2. A concessão de bonificação, de forma genérica, mediante o cumprimento de deveres inerentes à função, como é o caso da gratificação de assiduidade, não se compatibiliza com os princípios da moralidade, razoabilidade, finalidade e interesse público. Trata-se, ainda, de vantagem pecuniária que não atende efetivamente ao interesse público e às exigências do serviço, tendo em vista que a assiduidade constitui dever funcional elementar que não demanda recompensa, além da contraprestação pecuniária pelo vencimento. 3. Constituição Estadual: artigos 111 e 128.

 

 

O PROCURADOR-GERAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO, no exercício da atribuição prevista no art. 116, VI, da Lei Complementar Estadual n. 734, de 26 de novembro de 1993, em conformidade com o disposto nos arts. 125, § 2º, e 129, IV, da Constituição Federal, e nos arts. 74, VI, e 90, III, da Constituição do Estado de São Paulo, com amparo nas informações colhidas no incluso protocolado, vem, respeitosamente, perante esse Egrégio Tribunal de Justiça, promover a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE em face dos arts. 101 e 107 da Lei Complementar nº 05, de 28 de dezembro de 1990, na redação dada pela Lei Complementar n. 54, de 16 de maio de 1996, ambas do Município de São José do Rio Preto, pelos fundamentos a seguir expostos.

                   I.            DO ATO NORMATIVO IMPUGNADO

         A Lei Complementar nº 05, de 28 de dezembro de 1990, do Município de São José do Rio Preto, que “Institui o Estatuto dos Servidores Públicos Civis do Município, das Autarquias, Empresas e Fundações Públicas Municipais”, no que interessa dispõe:

“(...)

Art. 101 - Fica instituído o adicional de Nível Universitário, no valor de 50% (cinquenta por cento) aos funcionários ocupantes, em caráter efetivo, de cargos especializados de conformidade com sua qualificação profissional, que decorra de seu diploma de curso superior.

Parágrafo Único. O adicional a que se refere esta Lei será integrado aos vencimentos dos funcionários abrangidos, para todos os efeitos.

(...)

Art. 107 - O servidor fará jus a uma gratificação especial de assiduidade, correspondente ao valor de 1% (um) por cento de seu vencimento-base, a cada anuênio de serviço prestado exclusivamente a Prefeitura Municipal de São José do Rio Preto. (Redação dada pela Lei Complementar nº 54/1996)
§ 1º Os funcionários que se beneficiarem com averbações por tempo de serviço em atividades privadas, só terão direito ao benefício deste artigo, proporcionalmente ao tempo de serviço presta do exclusivamente ao Município.
§ 2º As professoras e as telefonistas farão jus à Gratificação supra mencionada quando completar 25 (vinte e cinco) anos de serviço, proporcionalmente ao tempo de serviço, prestado exclusivamente à Prefeitura Municipal de São José do Rio Preto.

(...)”.

II - O PARÂMETRO DA FISCALIZAÇÃO ABSTRATA DE CONSTITUCIONALIDADE

         Os dispositivos impugnados contrariam frontalmente a Constituição do Estado de São Paulo, à qual está subordinada a produção normativa municipal ante a previsão dos arts. 1º, 18, 29 e 31, da Constituição Federal.

         Os preceitos da Constituição do Estado são aplicáveis aos Municípios por força de seu art. 144, que assim estabelece:

“Artigo 144 - Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição”.

         As regras jurídicas contestadas são incompatíveis com os seguintes preceitos da Constituição Estadual:

“Artigo 111 – A administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes do Estado, obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, razoabilidade, finalidade, motivação, interesse público e eficiência.

(...)

Artigo 128 – As vantagens de qualquer natureza só poderão ser instituídas por lei e quando atendam efetivamente ao interesse público e às exigências do serviço.

(...)”.

 III - FUNDAMENTAÇÃO

a.   Do Adicional de Nível Universitário

         As vantagens pecuniárias são acréscimos permanentes ou efêmeros ao vencimento dos servidores públicos, compreendendo adicionais e gratificações.

Enquanto o adicional significa recompensa ao tempo de serviço (ex facto temporis) ou retribuição pelo desempenho de atribuições especiais ou condições inerentes ao cargo (ex facto officii), a gratificação constitui recompensa pelo desempenho de serviços comuns em condições anormais ou adversas (condições diferenciadas do desempenho da atividade – propter laborem) ou retribuição em face de condições pessoais ou situações onerosas do servidor (propter personam) [Hely Lopes Meirelles. Direito Administrativo Brasileiro, São Paulo: Malheiros, 2001, 26ª ed., p. 449; Diógenes Gasparini. Direito Administrativo, São Paulo: Saraiva, 2008, 13ª ed., p. 233; Marçal Justen Filho. Curso de Direito Administrativo, São Paulo: Saraiva, 2008, 3ª ed., p. 760].

         Se tradicional ensinança assinala que “o que caracteriza o adicional e o distingue da gratificação é o ser aquele uma recompensa ao tempo do serviço do servidor, ou uma retribuição pelo desempenho de funções especiais que refogem da rotina burocrática, e esta, uma compensação por serviços comuns executados em condições anormais para o servidor, ou uma ajuda pessoal em face de certas situações que agravam o orçamento do servidor” (Hely Lopes Meirelles. Direito Administrativo Brasileiro, São Paulo: Malheiros, 2001, 26ª ed., p. 452), agrega-se a partir de uma distinção mais aprofundada que “a gratificação é uma vantagem relacionada a circunstâncias subjetivas do servidor, enquanto o adicional se vincula a circunstâncias objetivas. (...) dois servidores que desempenhem um mesmo cargo farão jus a adicionais idênticos. Já as gratificações serão a eles concedidas em vista das características individuais de cada um. No entanto, é evidente que tais gratificações se sujeitam ao princípio da isonomia, de modo a que dois servidores que apresentem idênticas circunstâncias objetivas farão jus a benefícios iguais” (Marçal Justen Filho. Curso de Direito Administrativo, São Paulo: Saraiva, 2008, 3ª ed., p. 761).

         Ou seja, os adicionais são compensatórios dos encargos decorrentes de funções especiais apartadas da atividade administrativa ordinária e as gratificações dos riscos ou ônus de serviços comuns realizados em condições extraordinárias. Com efeito, “se o adicional de função (ex facto officii) tem em mira a retribuição de uma função especial exercida em condições comuns, a gratificação de serviço (propter laborem) colima a retribuição do serviço comum prestado em condições especiais” (Wallace Paiva Martins Junior. Remuneração dos agentes públicos, São Paulo: Saraiva, 2009, p. 85). 

         Ademais, oportuno pontuar que “as vantagens pecuniárias, sejam adicionais, sejam gratificações, não são meios para majorar a remuneração dos servidores, nem são meras liberalidades da Administração Pública. São acréscimos remuneratórios que se justificam nos fatos e situações de interesse da Administração Pública” (Diógenes Gasparini. Direito Administrativo, São Paulo: Saraiva, 2008, 13ª ed., p. 233).  

         Os adicionais são devidos em razão do tempo de serviço (adicionais de vencimento ou por tempo de serviço) ou do exercício de cargo (condições inerentes ao cargo) que exige conhecimentos especializados ou regime especial de trabalho (adicionais de função) como melhora de retribuição. O adicional de função (ex facto officii) repousa no trabalho que está sendo feito (pro labore faciendo), razão pela qual cessado seu motivo, elide-se o respectivo pagamento, e compreende as seguintes espécies: “de tempo integral (regime em que o servidor fica inteiramente à disposição da pessoa a que se liga e proibido de exercer qualquer outra atividade pública ou privada), de dedicação plena (regime em que o servidor desempenha suas atribuições exclusivamente à pessoa pública a que se vincula, sem estar impedido de desempenhar outras em entidade pública ou privada, diversas das que desempenha para a pessoa pública em regime de dedicação plena) e de nível universitário (desempenho de atribuições que exige um conhecimento especializado, só alcançado pelos detentores de títulos universitários)” (Diógenes Gasparini. Direito Administrativo, São Paulo: Saraiva, 2008, 13ª ed., pp. 230-231).

         As gratificações são precária e contingentemente instituídas para o desempenho de serviços comuns em condições anormais de segurança, salubridade ou onerosidade (gratificações de serviço) ou a título de ajuda em face de certos encargos pessoais (gratificações pessoais). A gratificação de serviço é propter laborem e “é outorgada ao servidor a título de recompensa pelos ônus decorrentes do desempenho de serviços comuns em condições incomuns de segurança ou salubridade, ou concedida para compensar despesas extraordinárias realizadas no desempenho de serviços normais prestados em condições anormais” (Diógenes Gasparini. Direito Administrativo, São Paulo: Saraiva, 2008, 13ª ed., p. 232), albergando, por exemplo, situações como risco de vida ou saúde, serviços extraordinários (prestação fora da jornada de trabalho), local de exercício ou da prestação do serviço, razão do trabalho (bancas, comissões).

         É assaz relevante destacar que “o que caracteriza essa modalidade de gratificação é sua vinculação a um serviço comum, executado em condições excepcionais para o funcionário, ou a uma situação normal do serviço mas que acarreta despesas extraordinárias para o servidor”, razão pela qual “essas gratificações só devem ser percebidas enquanto o servidor está prestando o serviço que as enseja, porque são retribuições pecuniárias pro labore faciendo e propter laborem. Cessado o trabalho que lhes dá causa ou desaparecidos os motivos excepcionais e transitórios que as justificam, extingue-se a razão de seu pagamento” (Hely Lopes Meirelles. Direito Administrativo Brasileiro, São Paulo: Malheiros, 2001, 26ª ed., pp. 457-458).

         No tocante ao “adicional de nível universitário”, considera-se um acréscimo pecuniário ex facto officci pelo desempenho de funções especiais. A respeito do assunto, assim se posiciona a doutrina:

“é de se observar que não basta seja o servidor titular de diploma de curso superior para o auferimento da vantagem de nível universitário; é necessário que esteja desempenhando função ou exercendo cargo para o qual se exige o diploma de que é portador. O que a Administração remunera não é a habilitação universitária em si mesma; é o trabalho profissional realizado em decorrência dessa habilitação, e da qual se presume maior perfeição técnica e melhor rendimento administrativo” (Hely Lopes Meirelles. Direito Administrativo Brasileiro, São Paulo: Malheiros, 2009, 35ª ed., pp. 499-500).

         Feitas estas considerações, evidencia-se que o denominado “adicional de nível universitário”, instituído para servidores do Município de São José do Rio Preto, mostra-se contrário aos ditames constitucionais.

         O art. 101 da Lei Complementar nº 05, de 28 de dezembro de 1990, do Município de São José do Rio Preto, confere o direito ao adicional de nível universitário de maneira genérica aos servidores públicos que possuam respectivo diploma, inclusive criando uma duplicidade, porque há a percepção por servidores que ocupam cargos cujo acesso e provimento reclama formação superior como requisito de habilitação.

         Além disso, não foram estabelecidos mínimos critérios para sua concessão a quem titulariza cargo cujo provimento não exigiu grau superior.

         Isto equivale, na prática, à fixação de benefício sem indicação de fundamento, e contraria, ademais, o disposto no art. 128 da Constituição do Estado, pelo qual “as vantagens de qualquer natureza só poderão ser instituídas por lei e quando atendam efetivamente ao interesse público e às exigências do serviço”, bem como os princípios da igualdade, da razoabilidade e da moralidade, previstos no art. 111 da Constituição Paulista.

         Com efeito, a vantagem pecuniária deve ser orientada única e exclusivamente à valorização do profissional cujo grau universitário tenha aderência ou relação lógica e direta com o plexo de funções elementares ao cargo.

         Por derradeiro, nem se alegue que a supressão do “adicional de nível universitário” ora impugnado violaria o princípio da irredutibilidade dos vencimentos dos servidores públicos, previsto no artigo 115, XVII, da Constituição Estadual, pois esta irredutibilidade pressupõe a legalidade, moralidade e razoabilidade da gratificação, não podendo, portanto, ser invocada para amparar pagamentos flagrantemente contrários aos princípios constitucionais da Administração Pública.

         Posto isso, mostra-se inconstitucional o art. 101 da Lei Complementar nº 05, de 28 de dezembro de 1990, do Município de São José do Rio Preto.

b.    Da Gratificação por Assiduidade

Como é cediço, a instituição de vantagens pecuniárias para servidores públicos só se mostra legítima se realizada em conformidade com o interesse público e com as exigências do serviço, nos termos do art. 128 da Constituição do Estado, aplicável aos Municípios por força do art. 144 da mesma Carta.

         A gratificação ora impugnada concedida aos servidores de São José do Rio Preto não atende a nenhum interesse público e, tampouco, às exigências do serviço, porquanto os requisitos para o seu recebimento representam meros deveres funcionais inerentes ao exercício de qualquer função pública.

Retrata simplesmente dispêndio público sem causa, o que desperta preocupação, como observa Wellington Pacheco Barros, verbis:

“Comungo com o pensamento político moderno de que uma das causas do inchaço da despesa pública é a remuneração com pessoal, que não raramente inviabiliza a tomada de decisões do agente político sobre investimentos de obras públicas de caráter benéfico à população. E uma das causas da despesa pública com pessoal é a atribuição indiscriminada pelo legislador de vantagens pecuniárias a servidor público sem que haja uma contraprestação de serviço e, o que é pior, com o rótulo de permanente e de efeito incorporador ao vencimento, elitizando a administração de existência de remunerações desproporcionais entre o maior e o menor vencimento de um cargo público” (O município e seus agentes, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p. 128).

         Vale lembrar, ainda, o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, criticando a excessiva liberalidade da Administração Pública na concessão de vantagens pecuniárias “anômalas”, sem qualquer razão de interesse público:

“Além dessas vantagens, que encontram justificativa em fatos ou situações de interesse administrativo, por relacionadas direta ou indiretamente com a prestação do serviço ou com a situação do servidor, as Administrações têm concedido vantagens anômalas, que refogem completamente dos princípios jurídicos e da orientação técnica que devem nortear a retribuição do servidor. Essas vantagens anômalas não se enquadram quer como adicionais, quer como gratificações, pois não têm natureza administrativa de nenhum destes acréscimos estipendiários, apresentando-se como liberalidades ilegítimas que o legislador faz à custa do erário, com o só propósito de cortejar o servidor público” (Direito Administrativo Brasileiro, São Paulo: Malheiros, 2008, 34ª ed., p. 495).

         Não se deve olvidar, ademais, clássica admoestação no sentido de que, verbis:

“a imoralidade salta aos olhos quando a Administração Pública é pródiga em despesas legais, porém inúteis, como propaganda ou mordomia, quando a população precisa de assistência médica, alimentação, moradia, segurança, educação” (Maria Sylvia Zanella Di Pietro. Discricionariedade administrativa na Constituição de 1988, São Paulo: Atlas, 1991, p. 111).

         Não se vislumbra interesse público, nem atendimento às exigências do serviço a título de remuneração ou indenização, a outorga de vantagem pecuniária que não tem qualquer causa jurídica hígida, significando autêntica liberalidade com o dinheiro público.

O art. 128, da Constituição Estadual, norma que descende diretamente dos princípios de seu art. 111, condiciona a concessão de vantagens aos servidores aos motivos nele indicados (interesse público e exigências do serviço).

         Não há, na vantagem outorgada pela lei impugnada, qualquer causa razoável a justificar sua instituição, implantando tratamento desigualitário em detrimento dos trabalhadores em geral.

         Ademais, a lei municipal, além de vulnerar os princípios de moralidade, interesse público e finalidade, também ofende o princípio da razoabilidade, que deve nortear a Administração Pública e a atividade legislativa e que, como aqueles, têm assento no art. 111, da Constituição do Estado, aplicável aos Municípios por força do art. 144, da mesma Carta.

         Por força desse princípio é necessário que a norma passe pelo denominado “teste” de razoabilidade, ou seja, que ela seja: (a) necessária (a partir da perspectiva dos anseios da Administração Pública); (b) adequada (considerando os fins públicos que com a norma se pretende alcançar); e (c) proporcional em sentido estrito (que as restrições, imposições ou ônus dela decorrentes não sejam excessivos ou incompatíveis com os resultados a alcançar).

         A gratificação ora impugnada não passa por nenhum dos critérios do teste de razoabilidade: (a) não atende a nenhuma necessidade da Administração Pública, vindo em benefício exclusivamente da conveniência dos servidores públicos beneficiados por essa vantagem pecuniária; (b) é, por consequência, inadequada na perspectiva do interesse público; (c) é desproporcional em sentido estrito, pois cria ônus financeiros que naturalmente se mostram excessivos e inadmissíveis, tendo em vista que não acarretarão benefício algum para a Administração Pública.

         Não é ocioso obtemperar que a razoabilidade é critério de aferição da constitucionalidade de leis e atos normativos, conforme entendimento jurisprudencial:

“(...) TODOS OS ATOS EMANADOS DO PODER PÚBLICO ESTÃO NECESSARIAMENTE SUJEITOS, PARA EFEITO DE SUA VALIDADE MATERIAL, À INDECLINÁVEL OBSERVÂNCIA DE PADRÕES MÍNIMOS DE RAZOABILIDADE. - As normas legais devem observar, no processo de sua formulação, critérios de razoabilidade que guardem estrita consonância com os padrões fundados no princípio da proporcionalidade, pois todos os atos emanados do Poder Público devem ajustar-se à cláusula que consagra, em sua dimensão material, o princípio do ‘substantive due process of law’. Lei Distrital que, no caso, não observa padrões mínimos de razoabilidade. A EXIGÊNCIA DE RAZOABILIDADE QUALIFICA-SE COMO PARÂMETRO DE AFERIÇÃO DA CONSTITUCIONALIDADE MATERIAL DOS ATOS ESTATAIS. - A exigência de razoabilidade - que visa a inibir e a neutralizar eventuais abusos do Poder Público, notadamente no desempenho de suas funções normativas - atua, enquanto categoria fundamental de limitação dos excessos emanados do Estado, como verdadeiro parâmetro de aferição da constitucionalidade material dos atos estatais. (...)” (STF, ADI-MC 2.667-DF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, 19-06-2002, v.u., DJ 12-03-2004, p. 36).

“(...) SUBSTANTIVE DUE PROCESS OF LAW E FUNÇÃO LEGISLATIVA: A cláusula do devido processo legal - objeto de expressa proclamação pelo art. 5º, LIV, da Constituição - deve ser entendida, na abrangência de sua noção conceitual, não só sob o aspecto meramente formal, que impõe restrições de caráter ritual à atuação do Poder Público, mas, sobretudo, em sua dimensão material, que atua como decisivo obstáculo à edição de atos legislativos de conteúdo arbitrário. A essência do substantive due process of law reside na necessidade de proteger os direitos e as liberdades das pessoas contra qualquer modalidade de legislação que se revele opressiva ou destituída do necessário coeficiente de razoabilidade. Isso significa, dentro da perspectiva da extensão da teoria do desvio de poder ao plano das atividades legislativas do Estado, que este não dispõe da competência para legislar ilimitadamente, de forma imoderada e irresponsável, gerando, com o seu comportamento institucional, situações normativas de absoluta distorção e, até mesmo, de subversão dos fins que regem o desempenho da função estatal. O magistério doutrinário de CAIO TÁCITO. Observância, pelas normas legais impugnadas, da cláusula constitucional do substantive due processo of law. (...)” (RTJ 178/22).

         Nem se alegue que a gratificação em comento visa à premiação da assiduidade dos servidores, porquanto esta é dever inerente ao exercício da função pública, cujo descumprimento deve ensejar, inclusive, a instauração de processo administrativo disciplinar pelo órgão competente, nos termos do estatuto funcional respectivo.

         Ora, a assiduidade, adotada como parâmetro para a concessão do bônus ora impugnado, é dever funcional geral, elementar ao exercício de qualquer função pública, não podendo, assim, ser considerada como critério para concessão da vantagem em comento. Ao se consignar ao servidor público municipal prêmio pecuniário pela assiduidade se está remunerando duplamente por cumprir nada mais do que seu dever.

         Se não há razão peculiar para além do assíduo exercício da própria função inerente ao cargo, não se justifica a instituição, por lei, de vantagem pessoal na forma de bônus, gratificação ou de qualquer outro nomen iuris que se lhe atribua. Na prática, tal corresponde à fixação de benefício sem indicação de fundamento lógico e racional, o que contraria o art. 128 da Constituição do Estado e os princípios da razoabilidade e da moralidade, previstos no art. 111 da Constituição Paulista.

         Neste sentido, este colendo Órgão Especial julgou inconstitucional lei que instituiu adicional de assiduidade:

“Ação direta de inconstitucionalidade. Adicional de assiduidade. Município de Chavantes. Artigos 43, 44 e 45 da Lei Complementar 127/2012 (Dispõe sobre o Plano de Cargos, Vencimentos e Evolução Funcional dos Profissionais do Magistério Público e dá outras providências). Inconstitucionalidade. Ausência de critério, pois não se foi além da assiduidade, dever e obrigação do servidor. Dispositivos que em nada asseguram valorização dos profissionais do magistério. Ação procedente” (ADI 2140689-75.2014.8.26.0000, Rel. Des. Borelli Thomaz, v.u., 28-01-2015 – g.n.).

         A criação de gratificação, valendo-se de deveres intrínsecos ao desempenho de função pública, expõe a Administração Pública a tratamentos desigualitários, imorais, desarrazoados, e, sobretudo, distantes do interesse público primário. Trata-se, na realidade, de indiscriminado aumento indireto e dissimulado da remuneração, alheio aos parâmetros de razoabilidade, interesse público e necessidade do serviço que devem presidir a concessão de vantagens pecuniárias aos servidores públicos.

A necessidade de verificar se a vantagem pecuniária atende efetivamente ao interesse público e às exigências do serviço, está motivada pela parcimônia, sobriedade e prudência que os Municípios devem ter em relação à gestão do dinheiro público. Não se desconsidera a importância e necessidade de bem remunerar os servidores públicos. No entanto, devem ser observados os princípios orientadores da Administração Pública, constitucionalmente previstos.

         No caso em tela, não há qualquer motivo juridicamente válido para justificativa da vantagem pecuniária instituída, pois, como dito, a assiduidade não pode se converter em parâmetro para o acréscimo.

         Nem se alegue que a vantagem em foco é válida se cotejada com o instituto comum e tradicional às normas estatutárias da licença prêmio, simplesmente porque esta não substancia prêmio pecuniário à assiduidade, mas, benefício que confere o licenciamento do servidor durante certo período e cujo indeferimento de gozo pela necessidade do serviço gera direito à indenização com base na responsabilidade civil do Estado por ato lícito, assim como o de férias.

         Tampouco possível associar-se a vantagem em cena ao § 7º, do art. 39, da Constituição Federal, verbis:

“Lei da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios disciplinará a aplicação de recursos orçamentários provenientes da economia com despesas correntes em cada órgão, autarquia e fundação, para aplicação no desenvolvimento de programas de qualidade e produtividade, treinamento e desenvolvimento, modernização, reaparelhamento e racionalização do serviço público, inclusive sob a forma de adicional ou prêmio de produtividade”.

         A vantagem ventilada no preceito constitucional está atrelada aos “recursos orçamentários provenientes da economia com despesas corrente” e contempla bônus por critérios como qualidade e produtividade, treinamento e desenvolvimento, modernização, reaparelhamento e racionalização do serviço público, excluindo dessa relação a assiduidade, tida na lei municipal em foco como mero recurso do taylorismo que não se afina à deontologia estrutural do serviço público.

         Posto isso, é inconstitucional o art. 107 da Lei Complementar nº 05, de 28 de dezembro de 1990, na redação dada pela Lei Complementar n. 54, de 16 de maio de 1996, ambas do Município de São José do Rio Preto.

                II.            DO PEDIDO

         Diante de todo o exposto, aguarda-se o recebimento e processamento da presente ação declaratória, para que ao final seja ela julgada procedente, reconhecendo-se a inconstitucionalidade dos arts. 101 e 107 da Lei Complementar nº 05, de 28 de dezembro de 1990, na redação dada pela Lei Complementar n. 54, de 16 de maio de 1996, ambas do Município de São José do Rio Preto.

         Requer-se, ainda, sejam requisitadas informações ao Prefeito e à Câmara Municipal de São José do Rio Preto, bem como posteriormente citado o Procurador-Geral do Estado para se manifestar sobre os atos normativos impugnados, protestando por nova vista, posteriormente, para manifestação final.

Termos em que, pede deferimento.

São Paulo, 26 de agosto de 2016.

 

         Gianpaolo Poggio Smanio

         Procurador-Geral de Justiça

 

blo/mam

 

 

 

 

 

Protocolado n. 109.563/16

 

 

 

1.      Distribua-se a petição inicial da ação direta de inconstitucionalidade, em face dos arts. 101 e 107 da Lei Complementar nº 05, de 28 de dezembro de 1990, na redação dada pela Lei Complementar n. 54, de 16 de maio de 1996, ambas do Município de São José do Rio Preto, junto ao Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

2.     Oficie-se à douta Promotoria de Justiça de São José do Rio Preto, informando-lhe a propositura da ação, com cópia da petição inicial.

 

São Paulo, 26 de agosto de 2016.

 

         Gianpaolo Poggio Smanio

         Procurador-Geral de Justiça

 

blo/mam