Excelentíssimo Senhor Doutor Desembargador Presidente do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

 

 

Protocolado n. 93.488/2016

 

 

 

Ementa:

1)     Ação direta de inconstitucionalidade. Lei nº 6.158, de 02 de maio de 2016, do Município de Assis, que “Dispõe sobre a comercialização de cerveja nas dependências de estádio de futebol, conjuntos poliesportivos e praças desportivas no Município de Assis e dá outras providências.

2)     O Município não detém competência para legislar sobre consumo e desporto, uma vez que esta é atribuída pela Constituição Federal à União, Estados e ao Distrito Federal (art. 24, V e IX, Constituição Federal).

3)     Existência de normas gerais editadas pelo legislador federal e estadual, com fundamento na competência concorrente prevista no art. 24, V e IX, da CR, vedando o porte de bebidas pelo torcedor em recinto esportivo, com o fim de evitar a prática de atos de violência (art. 13-A, Lei nº 10.671/03 e art. 3º e Anexo I, IV, 13 do Decreto nº 6.117/07), bem como a proibição de venda de bebidas alcoólicas em estádios de futebol e ginásios de esportes no Estado de São Paulo (art. 5º, I, da Lei nº 9.470/96). Produção normativa local não autorizada pela competência suplementar do Município, prevista no art. 30, II da CR. Violação do princípio federativo (art. 1º e art. 144, CE) decorrente da repartição constitucional de competências.

4)     Violação do princípio da proporcionalidade, derivado do postulado do devido processo legal, em sua dimensão substantiva, na ótica da proibição da proteção insuficiente aos direitos fundamentais à segurança e à proteção do consumidor (art. 144, CE).

 

 

 

 

            O Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, no exercício da atribuição prevista no art. 116, VI, da Lei Complementar Estadual n. 734, de 26 de novembro de 1993 (Lei Orgânica do Ministério Público de São Paulo), em conformidade com o disposto nos arts. 125, § 2º, e 129, IV, da Constituição Federal, e, ainda, nos arts. 74, VI, e 90, III, da Constituição do Estado de São Paulo, com amparo nas informações colhidas no incluso protocolado, vem, respeitosamente, perante esse Egrégio Tribunal de Justiça, promover a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE, com pedido liminar, em face da Lei nº 6.158, de 02 de maio de 2016, do Município de Assis, pelos fundamentos a seguir expostos:

I – OS ATOS NORMATIVOS IMPUGNADOS

         A Lei nº 6.158, de 02 de maio de 2016, do Município de Assis, que “Dispõe sobre a comercialização de cerveja nas dependências de estádio de futebol, conjuntos poliesportivos e praças desportivas no Município de Assis e dá outras providências”, assim prevê:

“(...)

Art. 1º - Esta Lei autoriza e regulamenta a venda de cervejas em estádios, conjuntos poliesportivos e praças desportivas públicos localizados no município de Assis.

Art. 2º - A comercialização e o consumo de cerveja são admitidos nos ambientes aludidos no artigo 1º exclusivamente em dias de eventos desportivos, espetáculos musicais e culturais.

§ 1º - Somente será permitida a comercialização de cerveja, ou mesmo bebidas sem teor alcoólico em copos descartáveis, ou recipientes que não ofereçam riscos à integridade física ou à saúde dos consumidores.

§ 2º - Não será permitida a entrega de recipientes de vidro ou a entrega de garrafas ou latas diretamente aos consumidores.

§ 3º - Os responsáveis pela comercialização de cerveja nos ambientes e os organizadores do evento realizados nos espaços aludidos no artigo 1º ficam obrigados a divulgar mensagens de consumo moderado e consciente de bebidas alcoólicas e a expressa proibição da venda a menores de idade.

Art. 3º - Fica vedada a comercialização e o consumo de quaisquer outras bebidas com teor alcoólico nos locais designados no artigo 1º que não seja cerveja.

Art. 4º - Essa lei entrará em vigor na data de sua publicação.

Art. 5º - Revogam-se as disposições em contrário.   

(...)”           

II – O PARÂMETRO DA FISCALIZAÇÃO ABSTRATA DE CONSTITUCIONALIDADE

O ato normativo ora impugnado viola o princípio federativo que se manifesta na repartição constitucional de competências (art. 1º, CE), de observância obrigatória por força do disposto no art. 144 da Constituição Paulista. A lei impugnada viola também o princípio da proporcionalidade, derivado do postulado do devido processo legal (art. 5º, LIV, CF), em sua dimensão substantiva, na ótica da proibição da proteção insuficiente aos direitos fundamentais à segurança e à proteção do consumidor, igualmente de observância necessária por força do art. 144 da Constituição Estadual.

A Lei nº 6.158/2016, dispõe sobre a comercialização de cerveja nas dependências de estádio de futebol, conjuntos poliesportivos e praças desportivas no Município de Assis. Estabelece que a comercialização e o consumo de cerveja são admitidos nos ambientes acima descritos, exclusivamente em dias de eventos desportivos, espetáculos musicais e culturais.

Porém, a lei local prevê que somente será permitida a comercialização de cerveja, ou mesmo bebidas sem teor alcoólico em copos descartáveis, ou recipientes que não ofereçam riscos à integridade física ou à saúde dos consumidores. E que não será permitida a entrega de recipientes de vidro ou a entrega de garrafas ou latas diretamente aos consumidores.

A lei municipal dispõe, ainda, que os responsáveis pela comercialização de cerveja nos ambientes aludidos ficam obrigados a divulgar mensagens de consumo moderado e consciente de bebidas alcoólicas. Por fim, veda a comercialização e o consumo de quaisquer outras bebidas alcoólicas nos locais mencionados que não seja cerveja.

Disciplina, portanto, matéria relacionada a consumo e a desporto.

Nos termos do que determina o artigo 217 da Constituição Federal, “é dever do Estado fomentar práticas desportivas formais e não-formais, como direito de cada um”.

Da norma constitucional é possível extrair que o esporte é direito de todos, ficando a cargo do Poder Público a fixação de políticas e o estabelecimentos de regras voltados a fomentar o desporto e o consumo dentro de locais destinados a práticas esportivas, a fim de dar cumprimento ao comando constitucional.

Nos termos do art. 24, incisos V e IX, da Constituição Federal compete à União, aos Estados, e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre consumo e desporto.

Para exercício legítimo dessa competência, cabe à União editar normas gerais, e aos Estados e ao Distrito Federal complementá-las ou, na ausência daquelas, exercer competência legislativa plena para atender suas peculiaridades (art. 24, §§ 1º e 3º, CF).

No uso da prerrogativa que lhe foi conferida, a União editou a Lei nº 10.671, de 15 de maio de 2003, conhecida como Estatuto do Torcedor, por meio da qual dispôs sobre normas gerais de proteção e defesa do consumidor torcedor no desporto profissional.

O Estatuto do Torcedor foi posteriormente alterado pela Lei federal nº 12.299, de 27 de julho de 2010, que dispõe sobre medidas de prevenção e repressão a fenômenos de violência por ocasião de competências esportivas, acrescendo-lhe o art. 13-A, por meio do qual proibiu o porte de bebidas alcoólicas em recintos esportivos. A lei federal estabeleceu comando proibitivo, condicionando o acesso do torcedor a recinto esportivo, a não portar bebidas que possam incitar a prática de atos de violência:

“(...)

Art. 13-A.  São condições de acesso e permanência do torcedor no recinto esportivo, sem prejuízo de outras condições previstas em lei: (Incluído pela Lei nº 12.299, de 2010).

(...)

II - não portar objetos, bebidas ou substâncias proibidas ou suscetíveis de gerar ou possibilitar a prática de atos de violência(Incluído pela Lei nº 12.299, de 2010).

(...)

Parágrafo único.  O não cumprimento das condições estabelecidas neste artigo implicará a impossibilidade de ingresso do torcedor ao recinto esportivo, ou, se for o caso, o seu afastamento imediato do recinto, sem prejuízo de outras sanções administrativas, civis ou penais eventualmente cabíveis. (Incluído pela Lei nº 12.299, de 2010).

(...)

É despiciendo destacar que a palavra “bebidas”, constante da redação do art. 13-A, II não foi incluída com o fim de criar regra inútil, referindo-se obviamente a bebidas alcoólicas. É princípio básico de hermenêutica que a lei não deve ser interpretada como se contivesse termos inúteis (verba cum effectu sunt accipienda).

A vedação estabelecida pelo Estatuto do Torcedor adveio das consequências desastrosas que envolvem o consumo de bebidas alcoólicas em estádios de futebol, sendo certo que a associação de violência e consumo de álcool também acabou por resultar na edição do Decreto nº 6.117/07, que aprovou a Política Nacional sobre Álcool, dispondo sobre medidas para redução do uso indevido e de sua associação com violência e criminalidade.

O Decreto nº 6.117/07 tem como diretriz o estímulo a medidas de restrição, espacial e temporal, do consumo de bebidas alcoólicas em locais de maior vulnerabilidade a situações de violência, como é o caso de locais destinados a competições esportivas de massa:

“(...)

Art. 3º Os órgãos e entidades da administração pública federal deverão considerar em seus planejamentos as ações de governo para reduzir e prevenir os danos à saúde e à vida, bem como as situações de violência e criminalidade associadas ao uso prejudicial de bebidas alcoólicas na população brasileira.

(...)

ANEXO I – POLÍTICA NACIONAL SOBRE O ÁLCOOL

(...)

IV – DIRETRIZES

(...)

13 – estimular e fomentar medidas que restrinjam, espacial e temporalmente, os pontos de venda e consumo de bebidas alcoólicas, observando os contextos de maior vulnerabilidade às situações de violência e danos sociais;

(...).”

A validade das disposições do Estatuto do Torcedor foi reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADI nº 2.937/DF, no qual se pronunciou sobre a compatibilidade do caráter geral e principiológico da norma com seus efeitos práticos e concretos:

“(...)

INCONSTITUCIONALIDADE. Ação direta. Arts. 8º, I, 9º, § 5º, incs. I e II, e § 4º, 11, caput e §§ 1º, 2º, 3º, 4º, 5º e 6º, 12, 19, 30, § único, 32, caput e §§ 1º e 2º, 33, § único, incs. II e III, e 37, caput, incs. I e II, § 1º e inc. II, e § 3º, da Lei federal nº 10.671/2003. Estatuto de Defesa do Torcedor. Esporte. Alegação de incompetência legislativa da União, ofensa à autonomia das entidades desportivas, e de lesão a direitos e garantias individuais. Vulneração dos arts. 5º, incs. X, XVII, XVIII, LIV, LV e LVII, e § 2º, 18, caput, 24, inc. IX e § 1º, e 217, inc. I, da CF. Não ocorrência. Normas de caráter geral, que impõem limitações válidas à autonomia relativa das entidades de desporto, sem lesionar direitos e garantias individuais. Ação julgada improcedente. São constitucionais as normas constantes dos arts. 8º, I, 9º, § 5º, incs. I e II, e § 4º, 11, caput e §§ 1º, 2º, 3º, 4º, 5º e 6º, 12, 19, 30, § único, 32, caput e §§ 1º e 2º, 33, § único, incs. II e III, e 37, caput, incs. I e II, § 1º e inc. II, e § 3º, da Lei federal nº 10.671/2003, denominada Estatuto de Defesa do Torcedor

(...)”

No âmbito estadual, o Estado de São Paulo editou a Lei nº 9.470/96, que seguindo o regramento estabelecido pela União, proíbe a venda, distribuição ou consumo de bebidas alcoólicas nos estádios de futebol e ginásios de esportes:

“(...)

Art. 5.º - Nos estádios de futebol e ginásios de esportes mencionados no Artigo 1.° ficam proibidas a venda, a distribuição ou utilização de: 

I - bebidas alcoólicas; 

II - fogos de artifício de qualquer natureza; 

III - hastes ou suportes de bandeiras; e

IV - copos e garrafas de vidro e bebidas acondicionadas em lata. 

Artigo 6.º - A proibição aludida no inciso I do artigo anterior estende-se, nos dias de jogos, a um raio de 200 metros de distância das entradas dos estádios e ginásios de esporte.

(...)”.

Desta forma, a União, exercendo sua competência concorrente para disciplinar consumo e desporto (art. 24, V e XII, da Constituição Federal) proibiu o acesso e a permanência de qualquer torcedor que porte bebidas alcoólicas em qualquer recinto esportivo.

O Estado, do mesmo modo, proibiu expressamente a venda, distribuição e utilização de qualquer tipo de bebida alcoólica em estádios de futebol e ginásios esportivos.

Porém, a Lei nº 6.158/16, do Município de Assis, ora impugnada, contrariando as disposições mencionadas, permite a comercialização de cerveja nas dependências de estádio de futebol, conjuntos poliesportivos e praças desportivas.

Sabe-se que a competência legislativa do Município é suplementar à da União e dos Estados, consoante dispõe o art. 30, I e II, da Carta Federal.

Sobre o tema, Alexandre de Moraes afirma que “a Constituição Federal prevê a chamada competência suplementar dos municípios consistente na autorização de regulamentar as normas legislativas federais ou estaduais, para ajustar sua execução a peculiaridades locais, sempre em concordância com aquelas e desde que presente o requisito primordial de fixação de competência desse ente federativo: interesse local”. (Constituição do Brasil Interpretada, São Paulo, Atlas, 2002, p. 743)

Porém, a pretexto de exercer competência suplementar com fundamento no art. 30, II, da Constituição Federal, não há espaço para o legislador municipal excepcionar as regras federais e estaduais, sob pena de converter a competência suplementar do Município em competência concorrente, da qual a comuna não dispõe.

A competência suplementar do Município aplica-se, nos assuntos que são da competência legislativa da União ou dos Estados, àquilo que seja secundário ou subsidiário relativamente à temática essencial tratada na norma superior.

Logo, na hipótese em análise, seria admissível, por exemplo, que o Município legislasse de modo suplementar a respeito do horário de funcionamento dos estabelecimentos comerciais que vendam bebidas alcoólicas no entorno, por tratar-se de assunto de interesse local, sendo pacífico o entendimento do Col. STF nesse particular: AI 622.405-AgR, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 22-5-2007, Segunda Turma, DJ de 15-6-2007; AI 729.307-ED, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgamento em 27-10-2009, Primeira Turma, DJE de 4-12-2009; RE 189.170, Rel. p/ o ac. Min. Maurício Corrêa, julgamento em 1º-2-2001, Plenário, DJ de 8-8-2003; RE 321.796-AgR, Rel. Min. Sydney Sanches, julgamento em 8-10-2002, Primeira Turma, DJ de 29-11-2002; RE 237.965-AgR, Rel. Min. Moreira Alves, julgamento em 10-2-2000, Plenário, DJ de 31-3-2000; RE 182.976, Rel. Min. Carlos Velloso, julgamento em 12-12-1997, Segunda Turma, DJ de 27-2-1998; ADI 3.731-MC, Rel. Min. Cezar Peluso, julgamento em 29-8-2007, Plenário, DJ de 11-10-2007.

Não pode o legislador municipal, contudo, a pretexto de legislar sobre assuntos de interesse local ou suplementar a legislação Federal ou Estadual de ordem geral, invadir a competência legislativa destes entes federativos superiores (RE 313.060, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em 29-11-2005, Segunda Turma, DJ de 24-2-2006).

Pela técnica de repartição de competências adotada na Lei Maior, aos Municípios somente cumpre regular tais matérias de modo específico, atendendo às suas particularidades locais (competência suplementar).

Quando definiu as competências dos entes municipais, o constituinte houve por deferir-lhes de modo suplementar relativamente à legislação federal e estadual, sempre para a disciplina de assuntos de interesse meramente local, ou seja, que se circunscrevam aos limites do território da Comuna.

A União e o Estado de São Paulo, exercendo sua competência concorrente para legislar sobre consumo e desporto (CF, art. 24, V e IX) proibiram a comercialização de bebidas alcoólicas em locais destinados a eventos esportivos de massa.

Desse modo, pode-se afirmar que a lei municipal objurgada, ao tratar de matéria cuja competência é do legislador federal ou estadual, desrespeitou a repartição constitucional de competências, violando o princípio federativo.

O princípio federativo está assentado nos arts. 1º e 18 da Constituição da República, bem como no art. 1º da Constituição Paulista.

Referindo-se aos princípios fundamentais da Constituição, que revelam as opções políticas essenciais do Estado, José Afonso da Silva aponta que entre eles podem ser inseridos, entre outros, “os princípios relativos à existência, forma, estrutura e tipo de Estado: República Federativa do Brasil, soberania, Estado Democrático de Direito (art. 1º)” (Curso de direito constitucional positivo, 13. ed., São Paulo, Malheiros, 1997, p. 96, g.n.).

Um dos aspectos de maior relevo, que representa a dimensão e alcance do princípio do pacto federativo adotado pelo Constituinte em 1988, é justamente o que se assenta nos critérios adotados pela Constituição Federal para a repartição de competências entre os entes federativos, bem como a fixação da autonomia e dos respectivos limites, dos Estados, Distrito Federal e Municípios, em relação à União.

Anota a propósito Fernanda Dias Menezes de Almeida que “avulta, portanto, sob esse ângulo, a importância da repartição de competências, já que a decisão tomada a respeito é que condiciona a feição do Estado Federal, determinando maior ou menor grau de descentralização.” Daí a afirmação de doutrinadores no sentido de que a repartição de competências é “’a chave da estrutura do poder federal’, ‘o elemento essencial da construção federal’, ‘a grande questão do federalismo’, ‘o problema típico do Estado Federal’” (Competências na Constituição Federal de 1988, 4. ed., São Paulo, Atlas, 2007, p. 19/20).

Desse modo, a autonomia das entidades federativas pressupõe repartição de competências legislativas, administrativas e tributárias. Trata-se de um dos pontos caracterizadores e asseguradores da existência e de harmonia do Estado Federal.

A base do conceito do Estado Federal reside exatamente na repartição de poderes autônomos, que, na concepção tridimensional do Estado Federal Brasileiro, se dá entre União, Estado e Município. É através desta distribuição de competências que a Constituição Federal garante o princípio federativo. O respeito à autonomia dos entes federativos é imprescindível para a manutenção do Estado Federal.

A preservação do princípio federativo tem contado com a anuência do C. Supremo Tribunal Federal, pois como destacado em julgado relatado pelo Min. Celso de Mello:

"(...)

a idéia de Federação — que tem, na autonomia dos Estados-membros, um de seus cornerstones — revela-se elemento cujo sentido de fundamentalidade a torna imune, em sede de revisão constitucional, à própria ação reformadora do Congresso Nacional, por representar categoria política inalcançável, até mesmo, pelo exercício do poder constituinte derivado (CF, art. 60, § 4º, I). (HC 80.511, voto do Min. Celso de Mello, julgamento em 21-8-01, DJ de 14-9-01).

(...)”

Por essa linha de raciocínio, pode-se afirmar que a lei municipal que trate de matéria cuja competência é do legislador federal ou estadual, ao desrespeitar a repartição constitucional de competências, a viola o princípio federativo.

A prescrição de que os Municípios devem observar os princípios constitucionais estabelecidos não se encontra apenas no art. 144 da Constituição Paulista. O art. 29, caput, da CR/88, prevê que os Municípios, ao editarem suas leis orgânicas deverão respeitar os “princípios estabelecidos nesta Constituição, na Constituição do respectivo Estado”.

Dessa forma, no conflito normativo aqui analisado, conclui-se que a Lei nº 6.158, de 02 de maio de 2016, do Município de Assis, violou a repartição constitucional de competências, que é a manifestação mais contundente do princípio federativo, operando, por consequência, desrespeito a princípio constitucional estabelecido.

Essa é a razão pela qual restou configurada, no caso, a ofensa ao disposto no art. 1º e no art. 144, da Constituição do Estado de São Paulo.

Mas não é só.

O ato normativo impugnado violou o princípio da proporcionalidade, derivado do postulado do devido processo legal, em sua dimensão substantiva (art. 5º, LIV, CF, aplicável por força dos arts. 4º e 144 da CE).

De fato, as normas federais e estaduais de restrição à comercialização e ao consumo de bebidas alcoólicas em recintos esportivos (Estatuto do Torcedor, art. 13-A; Decreto federal nº 6.117/07, art. 3º e Anexo I, IV e Lei Estadual nº 9.470/96, art. 5º, I) encerram medidas voltadas a ampliar a segurança de torcedores em eventos e competições esportivas, bem como assegurar a promoção de sua defesa como consumidores (art. 5º, caput, XXXII, CF).

Referidas normas protegem não apenas os torcedores, mas todo um conjunto indeterminado e amplo de pessoas direta ou indiretamente envolvidas na realização de competições esportivas.

Os atos normativos expedidos pela União e pelo Estado de São Paulo se mostraram fundamentais para viabilizar a efetividade das normas constitucionais, sob pena de se incorrer em violação ao princípio da proibição de proteção insuficiente de direitos constitucionalmente tutelados, que representa uma das facetas do princípio da proporcionalidade (art. 5º, LIV, CF).

Por força do princípio da proibição de proteção insuficiente, nem a lei nem o Estado pode apresentar insuficiência em relação à tutela dos direitos fundamentais. O postulado cria um dever de proteção para o Estado (isto é, para o legislador e para o juiz), que não pode simplesmente ignorar ou se desfazer de mecanismos de tutela para o fim de garantir a proteção a direitos fundamentais.

O princípio em questão já foi considerado pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do Recurso Extraordinário nº 418.376, em que se afastou a extinção da punibilidade de réu acusado de estupro, pela celebração posterior de união estável com a vítima menor.

O Ministro Gilmar Mendes, em seu voto-vista, discorreu a respeito da proibição à proteção insuficiente, consignando:

"Quanto à proibição de proteção deficiente, a doutrina vem apontando para uma espécie de garantismo positivo, ao contrário do garantismo negativo (que se consubstancia na proteção contra os excessos do Estado) já consagrado pelo princípio da proporcionalidade. A proibição de proteção deficiente adquire importância na aplicação dos direitos fundamentais de proteção, ou seja, na perspectiva do dever de proteção, que se consubstancia naqueles casos em que o Estado não pode abrir mão da proteção do direito penal para garantir a proteção de um direito fundamental. Nesse sentido, ensina o Professor Lênio Streck:

"Trata-se de entender, assim, que a proporcionalidade possui uma dupla face: de proteção positiva e de proteção de omissões estatais. Ou seja, a inconstitucionalidade pode ser decorrente de excesso do Estado, caso em que determinado ato é desarrazoado, resultando desproporcional o resultado do sopesamento (Abwägung) entre fins e meios; de outro, a inconstitucionalidade pode advir de proteção insuficiente de um direito fundamental-social, como ocorre quando o Estado abre mão do uso de determinadas sanções penais ou administrativas para proteger determinados bens jurídicos. Este duplo viés do princípio da proporcionalidade decorre da necessária vinculação de todos os atos estatais à materialidade da Constituição, e que tem como conseqüência a sensível diminuição da discricionariedade (liberdade de conformação) do legislador."(Streck, Lênio Luiz. A dupla face do princípio da proporcionalidade: da proibição de excesso (Übermassverbot) à proibição de proteção deficiente (Untermassverbot) ou de como não há blindagem contra normas penais inconstitucionais. Revista da Ajuris, Ano XXXII, nº 97, marco/2005, p.180).

No mesmo sentido, o Professor Ingo Sarlet:

"A noção de proporcionalidade não se esgota na categoria da proibição de excesso, já que abrange, (...), um dever de proteção por parte do Estado, inclusive quanto a agressões contra direitos fundamentais provenientes de terceiros, de tal sorte que se está diante de dimensões que reclamam maior densificação, notadamente no que diz com os desdobramentos da assim chamada proibição de insuficiência no campo jurídico-penal e, por conseguinte, na esfera da política criminal, onde encontramos um elenco significativo de exemplos a serem explorados." (Sarlet, Ingo Wolfgang. Constituição e proporcionalidade: o direito penal e os direitos fundamentais entre a proibição de excesso e de insuficiência. Revista da Ajuris, ano XXXII, nº 98, junho/2005, p. 107.)

E continua o Professor Ingo Sarlet:

"A violação da proibição de insuficiência, portanto, encontra-se habitualmente representada por uma omissão (ainda que parcial) do poder público, no que diz com o cumprimento de um imperativo constitucional, no caso, um imperativo de tutela ou dever de proteção, mas não se esgota nesta dimensão (o que bem demonstra o exemplo da descriminalização de condutas já tipificadas pela legislação penal e onde não se trata, propriamente, duma omissão no sentido pelo menos habitual do termo)." (Sarlet, Ingo Wolfgang. Constituição e proporcionalidade: o direito penal e os direitos fundamentais entre a proibição de excesso e de insuficiência. Revista da Ajuris, ano XXXII, nº 98, junho/2005, p. 132)

Desse modo, além da compreensão sedimentada do princípio da proporcionalidade sob o viés da proibição de excesso, amplamente acolhida pela doutrina e jurisprudência, pelo qual o Estado tem o dever de não violar bens jurídicos de índole constitucionais, tem igual importância a outra faceta do princípio da proporcionalidade, pelo qual o Estado tem o dever de protegê-los e promovê-los.

Com base nesse postulado, a doutrina vem firmando o entendimento de que a violação à proporcionalidade ocorre não apenas no excesso da ação estatal, mas também na ação estatal que se mostre gravemente insuficiente.

Desse modo, a Lei nº 6.158, de 02 de maio de 2016, do Município de Assis, ora impugnada, ofende o princípio da proporcionalidade, conferindo proteção insuficiente aos torcedores-consumidores, ao permitir a comercialização de cerveja nas dependências de estádio de futebol, conjuntos poliesportivos e praças desportivas.

A permissão conferida pelo ato normativo impugnado expõe a riscos a integridade, assim como a segurança dos torcedores e dos consumidores, obstaculizando a prevenção de episódios de violência e sua consequente repressão.

O ato normativo põe em risco, da mesma forma, os familiares dos torcedores, que rotineiramente os acompanham em eventos esportivos, assim como as pessoas que neles prestam serviços.

Logo, a Lei nº 6.158, de 02 de maio de 2016, do Município de Assis viola o princípio da proporcionalidade, sob a ótica da proibição da proteção insuficiente aos direitos fundamentais à segurança e à proteção do consumidor.

III – Pedido liminar

         À saciedade demonstrado o fumus boni iuris, pela ponderabilidade do direito alegado, soma-se a ele o periculum in mora. A atual tessitura dos preceitos legais do Município de Assis apontados como violadores de princípios e regras da Constituição do Estado de São Paulo é sinal, de per si, para suspensão de sua eficácia até final julgamento desta ação, de maneira a evitar oneração do erário irreparável ou de difícil reparação.

         À luz deste perfil, requer a concessão de liminar para suspensão da eficácia, até final e definitivo julgamento desta ação da Lei nº 6.158, de 02 de maio de 2016, do Município de Assis.

IV – Pedido

         Face ao exposto, requerendo o recebimento e o processamento da presente ação para que, ao final, seja julgada procedente para declarar a inconstitucionalidade da Lei nº 6.158, de 02 de maio de 2016, do Município de Assis.

         Requer-se ainda sejam requisitadas informações à Câmara Municipal e ao Prefeito Municipal de Assis, bem como citado o Procurador-Geral do Estado para se manifestar sobre os atos normativos impugnados, protestando por nova vista, posteriormente, para manifestação final.

 

Termos em que, pede deferimento.

 

São Paulo, 21 de setembro de 2016.

 

 

 

 

Gianpaolo Poggio Smanio

Procurador-Geral de Justiça

 

ms/dcm

 

 

 

 

 

 

 

Protocolado n. 93.488/2016

Assunto: Análise de constitucionalidade da Lei nº 6.158/16, do Município de Assis

 

 

 

 

1.                Distribua-se a petição inicial da ação direta de inconstitucionalidade da Lei nº 6.158, de 02 de maio de 2016, do Município de Assis junto ao Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

2.                Oficie-se ao interessado, informando-lhe a propositura da ação, com cópia da petição inicial.

 

São Paulo, 21 de setembro de 2016.

 

 

Gianpaolo Poggio Smanio

Procurador-Geral de Justiça

 

ms/dcm