EXCELENTÍSSIMO SENHOR DESEMBARGADOR PRESIDENTE DO EGRÉGIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

 

 

 

Protocolado n. 80.679/16

 

 

Constitucional. Administrativo. Ação direta de inconstitucionalidade. Lei nº 10.482, de 12 de novembro de 1991, e Decretos nº 87, de 06 de dezembro de 1996, e nº 56, de 27 de junho de 1997, todos do Município de São Carlos. Gratificação paga a servidores municipais que exercem funções em decorrência do convênio de municipalização da saúde (SUS). Violação aos princípios da separação de poderes, legalidade, moralidade, impessoalidade, razoabilidade e interesse público. 1. A concessão de vantagem pecuniária individual ou gratificação a servidores públicos, sem previsão legal estabelecendo critérios objetivos que a justifique ou que considera como critério objetivo atributo intrínseco ao exercício de qualquer função pública, viola os princípios da separação de poderes, legalidade, moralidade, impessoalidade, razoabilidade e interesse público. 2. A fixação de gratificação por meio de decreto viola a iniciativa legislativa reservada ao Chefe do Poder Executivo, bem como a separação de poderes. 3. Ofensa aos arts. 5º, §1º, 24, §2º, 1, 111, 128 e 144 da CE, e ao art. 37, X, da CF.

  O PROCURADOR-GERAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO, no exercício da atribuição prevista no art. 116, VI, da Lei Complementar Estadual n. 734, de 26 de novembro de 1993, em conformidade com o disposto nos arts. 125, § 2º, e 129, IV, da Constituição Federal, e nos arts. 74, VI, e 90, III, da Constituição do Estado de São Paulo, com amparo nas informações colhidas no incluso protocolado (PGJ nº 80.679/16), vem, respeitosamente, perante esse Egrégio Tribunal de Justiça, promover a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE em face da Lei nº 10.482, de 12 de novembro de 1991, do Município de São Carlos, e dos Decretos nº 87, de 06 de dezembro de 1996, e nº 56, de 27 de junho de 1997, ambos do Município de São Carlos, pelos fundamentos a seguir expostos.

 

I.          DOS ATOS NORMATIVOS IMPUGNADOS

Editada em 12 de novembro de 1991, a Lei nº 10.482 instituiu no Município de São Carlos a denominada “Gratificação à servidores municipais que exercem funções em decorrência do convênio de municipalização de saúde”, nos seguintes moldes:

“Artigo 1º - Fica instituída a gratificação – SUS – Serviço Único de Saúde, decorrente do convênio celebrado entre Município e a União, representada pelo Ministério da Saúde – MS e o Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social – INAMPS., firmado de acordo com a autorização prevista pela lei municipal nº 10.436, de 13/06/1991.

Artigo 2º - Serão beneficiados com a gratificação todos os servidores municipais que exercem suas funções na área de saúde em razão da implantação do sistema único de saúde federal.

Artigo 3º - A gratificação SUS terá o seu valor fixado por Decreto e não ultrapassará em qualquer caso, os valores correspondentes à remuneração da respectiva carreira.

Parágrafo único – O valor da gratificação será reajustado por ocasião, e na mesma proporção, dos aumentos verificados nos repasses financeiros a serem feitos ao Fundo Municipal de Saúde pela União – Ministério da Saúde – INAMPS.

Artigo 4º - A gratificação prevista por esta lei será paga em separado ao vencimento ou remuneração e não sofrerá nenhum desconto ou incidência de encargos patrimoniais e não incorporará aos vencimentos para nenhum efeito, podendo, inclusive, ser suprimida à critério do Poder Executivo.

Artigo 5º - As despesas com a execução da presente lei correrão à conta de verbas próprias do orçamento, suplementadas se necessário.

Artigo 6º - Esta lei entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.”

         Cumpre mencionar que a referida legislação foi posteriormente regulamentada pelos Decretos nº 87, de 06 de dezembro de 1996, e nº 56, de 27 de junho de 1997, ambos do Município de São Carlos, que trataram da matéria nos seguintes termos:

Decreto nº 87/96:

Artigo 1º - A gratificação SUS, criada através da lei nº 10.482/91, destinada aos servidores que exercem suas funções junto ao Departamento Municipal de Saúde, passa a vigorar conforme tabela abaixo:

Nível, Cargos ou Empregos:

I – Presidente – valor: R$ 417,00 (quatrocentos e dezessete reais)

II – Coordenador, Médicos, Cirurgiões-Dentistas, Biólogos e Enfermeiros-Padrão – valor: R$ 350,00 (trezentos e cinquenta reais)

III – Tesoureiro, Chefes, Coordenador Técnico, Programador, Analista de Sistemas – valor: R$ 150,00 (cento e cinquenta reais)

IV – Técnico em Manutenção – valor: 132,00 (cento e trinta e dois reais)

V – Digitador – valor: R$ 120,00 (cento e vinte reais)

VI – Agente Administrativo I e II, Encarregado, Auxiliar Administrativo, Almoxarife, Auxiliar de Enfermagem, Auxiliar de Odontologia, Motorista, Telefonista, Servente, Vigia e Braçal – valor: R$ 100,00 (cem reais)

Artigo 2º - As despesas com a execução deste Decreto correrão à conta de verbas próprias do orçamento, especialmente daqueles oriundos do Convênio firmado com o Ministério da Saúde/INAMPS, Secretaria Estadual da Saúde, Prefeitura Municipal e o Departamento Municipal de Saúde.

Artigo 3º - Este Decreto entra em vigor na data de sua publicação, produzindo seus efeitos financeiros a partir de 1º dezembro de 1996, ficando consequentemente revogado o Decreto nº 011, de 26 de janeiro de 1995 e demais disposições em contrário.”

Decreto nº 56/97:

Artigo 1º - O inciso II da Tabela inserida no Decreto nº 087, de dezembro de 1996, passa a ter a seguinte redação:

“II – Coordenador, Médicos, Cirurgiões-Dentistas, Biólogos, Biomédicos, Enfermeiras-Padrão, Assistente Social, Psicólogos, Fisioterapeutas e demais ocupantes de função, cargo ou emprego, cujo provimento exija a formação de universitário – valor: R$ 350,00”

Artigo 2º - As despesas com a execução deste Decreto correrão por conta de verbas próprias do orçamento vigente.

Artigo 3º - Este Decreto entra em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.”

II.    DO PARÂMETRO DE INCONSTITUCIONALIDADE

Os dispositivos impugnados, do Município de São Carlos, contrariam frontalmente a Constituição do Estado de São Paulo, à qual está subordinada a produção normativa municipal ante a previsão dos arts. 1º, 18, 29 e 31 da Constituição Federal.

Outrossim, os referidos atos normativos são incompatíveis com os seguintes preceitos da Constituição Estadual, aplicáveis aos Municípios por força de seu art. 144, e que assim estabelecem:

Artigo 5º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

§ 1º - É vedado a qualquer dos Poderes delegar atribuições.

(...)

Artigo 24 - A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou Comissão da Assembléia Legislativa, ao Governador do Estado, ao Tribunal de Justiça, ao Procurador-Geral de Justiça e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos nesta Constituição

(...)

§ 2º - Compete, exclusivamente, ao Governador do Estado a iniciativa das leis que disponham sobre:

1 - criação e extinção de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica, bem como a fixação da respectiva remuneração;

(...)

Art. 111. A administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes do Estado, obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, razoabilidade, finalidade, motivação, interesse público e eficiência.

(...)

Art. 128 – As vantagens de qualquer natureza só poderão ser instituídas por lei e quando atendam efetivamente ao interesse público e às exigências do serviço.

(...)

Art. 144 – Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição”.

Ademais, há evidente afronta dos dispositivos impugnados ao art. 37, X, da Constituição Federal, cujos preceitos são aplicados aos Municípios por força de seus arts. 18 e 29. In verbis:

Art. 18. A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.

(...)

Art. 29. O Município reger-se-á por lei orgânica, votada em dois turnos, com o interstício mínimo de dez dias, e aprovada por dois terços dos membros da Câmara Municipal, que a promulgará, atendidos os princípios estabelecidos nesta Constituição, na Constituição do respectivo Estado e os seguintes preceitos:

(...)

Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)

(...)

X - a remuneração dos servidores públicos e o subsídio de que trata o § 4º do art. 39 somente poderão ser fixados ou alterados por lei específica, observada a iniciativa privativa em cada caso, assegurada revisão geral anual, sempre na mesma data e sem distinção de índices;   (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)  (Regulamento)

III.   DA INCONSTITUCIONALIDADE DA LEI 10.482/91 DO MUNICÍPIO DE SÃO CARLOS

As vantagens pecuniárias são acréscimos permanentes ou efêmeros ao vencimento dos servidores públicos, compreendendo adicionais e gratificações.

Enquanto o adicional significa recompensa ao tempo de serviço (ex facto temporis) ou retribuição pelo desempenho de atribuições especiais ou condições inerentes ao cargo (ex facto officii), a gratificação constitui recompensa pelo desempenho de serviços comuns em condições anormais ou adversas (condições diferenciadas do desempenho da atividade – propter laborem) ou retribuição em face de condições pessoais ou situações onerosas do servidor (propter personam) [Hely Lopes Meirelles. Direito Administrativo Brasileiro, São Paulo: Malheiros, 2001, 26ª ed., p. 449; Diógenes Gasparini. Direito Administrativo, São Paulo: Saraiva, 2008, 13ª ed., p. 233; Marçal Justen Filho. Curso de Direito Administrativo, São Paulo: Saraiva, 2008, 3ª ed., p. 760].

 Se tradicional ensinança assinala que “o que caracteriza o adicional e o distingue da gratificação é o ser aquele uma recompensa ao tempo do serviço do servidor, ou uma retribuição pelo desempenho de funções especiais que refogem da rotina burocrática, e esta, uma compensação por serviços comuns executados em condições anormais para o servidor, ou uma ajuda pessoal em face de certas situações que agravam o orçamento do servidor” (Hely Lopes Meirelles. Direito Administrativo Brasileiro, São Paulo: Malheiros, 2001, 26ª ed., p. 452), agrega-se a partir de uma distinção mais aprofundada que “a gratificação é uma vantagem relacionada a circunstâncias subjetivas do servidor, enquanto o adicional se vincula a circunstâncias objetivas. (...) dois servidores que desempenhem um mesmo cargo farão jus a adicionais idênticos. Já as gratificações serão a eles concedidas em vista das características individuais de cada um. No entanto, é evidente que tais gratificações se sujeitam ao princípio da isonomia, de modo a que dois servidores que apresentem idênticas circunstâncias objetivas farão jus a benefícios iguais” (Marçal Justen Filho. Curso de Direito Administrativo, São Paulo: Saraiva, 2008, 3ª ed., p. 761).

Ou seja, os adicionais são compensatórios dos encargos decorrentes de funções especiais apartadas da atividade administrativa ordinária e as gratificações dos riscos ou ônus de serviços comuns realizados em condições extraordinárias. Com efeito, “se o adicional de função (ex facto officii) tem em mira a retribuição de uma função especial exercida em condições comuns, a gratificação de serviço (propter laborem) colima a retribuição do serviço comum prestado em condições especiais” (Wallace Paiva Martins Junior. Remuneração dos agentes públicos, São Paulo: Saraiva, 2009, p. 85). 

Ademais, oportuno admoestar que “as vantagens pecuniárias, sejam adicionais, sejam gratificações, não são meios para majorar a remuneração dos servidores, nem são meras liberalidades da Administração Pública. São acréscimos remuneratórios que se justificam nos fatos e situações de interesse da Administração Pública” (Diógenes Gasparini. Direito Administrativo, São Paulo: Saraiva, 2008, 13ª ed., p. 233).  

Os adicionais são devidos em razão do tempo de serviço (adicionais de vencimento ou por tempo de serviço) ou do exercício de cargo (condições inerentes ao cargo) que exige conhecimentos especializados ou regime especial de trabalho (adicionais de função) como melhora de retribuição. O adicional de função (ex facto officii) repousa no trabalho que está sendo feito (pro labore faciendo), razão pela qual cessado seu motivo, elide-se o respectivo pagamento, e compreende as seguintes espécies: “de tempo integral (regime em que o servidor fica inteiramente à disposição da pessoa a que se liga e proibido de exercer qualquer outra atividade pública ou privada), de dedicação plena (regime em que o servidor desempenha suas atribuições exclusivamente à pessoa pública a que se vincula, sem estar impedido de desempenhar outras em entidade pública ou privada, diversas das que desempenha para a pessoa pública em regime de dedicação plena) e de nível universitário (desempenho de atribuições que exige um conhecimento especializado, só alcançado pelos detentores de títulos universitários)” (Diógenes Gasparini. Direito Administrativo, São Paulo: Saraiva, 2008, 13ª ed., pp. 230-231).

As gratificações são precária e contingentemente instituídas para o desempenho de serviços comuns em condições anormais de segurança, salubridade ou onerosidade (gratificações de serviço) ou a título de ajuda em face de certos encargos pessoais (gratificações pessoais). A gratificação de serviço é propter laborem e “é outorgada ao servidor a título de recompensa pelos ônus decorrentes do desempenho de serviços comuns em condições incomuns de segurança ou salubridade, ou concedida para compensar despesas extraordinárias realizadas no desempenho de serviços normais prestados em condições anormais” (Diógenes Gasparini. Direito Administrativo, São Paulo: Saraiva, 2008, 13ª ed., p. 232), albergando, por exemplo, situações como risco de vida ou saúde, serviços extraordinários (prestação fora da jornada de trabalho), local de exercício ou da prestação do serviço, razão do trabalho (bancas, comissões).

É assaz relevante destacar que “o que caracteriza essa modalidade de gratificação é sua vinculação a um serviço comum, executado em condições excepcionais para o funcionário, ou a uma situação normal do serviço mas que acarreta despesas extraordinárias para o servidor”, razão pela qual “essas gratificações só devem ser percebidas enquanto o servidor está prestando o serviço que as enseja, porque são retribuições pecuniárias pro labore faciendo e propter laborem. Cessado o trabalho que lhes dá causa ou desaparecidos os motivos excepcionais e transitórios que as justificam, extingue-se a razão de seu pagamento” (Hely Lopes Meirelles. Direito Administrativo Brasileiro, São Paulo: Malheiros, 2001, 26ª ed., pp. 457-458).

Feita essa digressão, resta patente a inconstitucionalidade da Lei nº 10.482, de 12 de novembro de 1991, do Município de São Carlos, que instituiu a denominada “Gratificação à servidores municipais que exercem funções em decorrência do convênio de municipalização de saúde”, bem como de seus decretos regulamentadores editados posteriormente, no caso, os Decretos nº 87, de 06 de dezembro de 1996, e nº 56, de 27 de junho de 1997, ambos do Município de São Carlos.

Isso porque o diploma objurgado, ao não fixar os valores da gratificação em seu texto legal, deixando a cargo do Poder Executivo tal detalhamento via Decreto (art. 3º), ofende o art. 37, X, da Constituição Federal, além de viola a separação de poderes prevista no art. 5º, §1º, da Constituição Estadual.

Se a remuneração de servidores públicos, exceto daqueles que por imposição constitucional recebem via subsídio (art. 39, §4º, CF), é composta de vencimento mais vantagens pecuniárias, nas quais se incluem as gratificações, não haveria razão para se afastar a regra do art. 37, X, da CF, quando da fixação de regras concernentes à gratificação, pois esta compõe a remuneração, a qual reclama lei em sentido estrito para qualquer alteração de sua estrutura.

No sentido da inconstitucionalidade de atos normativos desse jaez, confira-se a jurisprudência deste Colendo Órgão Especial:

“Ação Direta de Inconstitucionalidade. Impugnação dos §§ 1º e 5º, do artigo 63, bem como do parágrafo único do artigo 64, da Lei Complementar nº 55, de 17 de junho de 2010, do Município de Ubarana, na parte em que (i) instituem Gratificação de Regime Especial de Trabalho para servidores ocupantes de cargos de provimento em comissão (§ 5º do art. 63) e que (ii) delegam à autoridade concedente o critério para fixação dessa verba (§ 1º do art. 63 e parágrafo único do art. 64). 2 - Alegação de ofensa às disposições do art. 5º, art. 24, § 2º, l, art. 111, art. 128 e art. 144, todos da Constituição do Estado de São Paulo. Reconhecimento. 3 – Primeiro aspecto. Extensão da Gratificação aos ocupantes de cargos em comissão (art. 63, § 5º). Inadmissibilidade. Vantagem pecuniária (instituída para recompensar o servidor que for designado para ficar à disposição da Administração 24 horas por dia) que não poderia contemplar os ocupantes de cargos comissionados, porque eles já trabalham em regime especial que pressupõe dedicação integral, como decorrência da relação de confiança com a autoridade nomeante. Inconstitucionalidade manifesta, não só por esse fundamento (incompatibilidade da gratificação com a natureza do cargo), mas também por ofensa aos princípios da razoabilidade e moralidade administrativa. 4 – Segundo aspecto. Critério para fixação da verba. Delegação à autoridade concedente. Impossibilidade. Ofensa ao princípio da legalidade. Embora seja do Prefeito Municipal a iniciativa da proposta (dispondo sobre remuneração de servidores) toda questão (inclusive a regulamentação) envolvendo fixação do valor da gratificação deve ser tratada por meio de lei (em sentido estrito), sob pena de ofensa ao princípio da separação dos poderes, pois, conforme orientação do Supremo Tribunal Federal, "traduz situação configuradora de ilícito constitucional a outorga parlamentar ao Poder Executivo de prerrogativa jurídica cuja 'sedes materiae' – tendo em vista o sistema constitucional de poderes limitados vigentes no Brasil – só pode residir em atos estatais primários editados pelo Poder Legislativo" (ADI 1.296-MC, Rel. Min. Celso de Mello, j. 14/06/1995, Plenário). 5 – Ação julgada procedente, com modulação.” (g.n.) (ADI 2038631-23.2016.8.26.0000, Órgão Especial, Rel. Des. Salles Rossi, julgado em 27/07/2016)

Ademais, a lei atacada, assim como seus respectivos decretos, ainda reveste-se de inconstitucionalidade por possibilitar a concessão de vantagem pecuniária individual a ocupantes de cargos públicos sem transparecer, contudo, a excepcionalidade que a justificaria.

              De fato, a norma confere indiscriminado aumento indireto e dissimulado à remuneração, estando alheias aos parâmetros de razoabilidade, interesse público e necessidade do serviço que devem presidir a concessão de vantagens pecuniárias aos servidores públicos, conforme alude o artigo 128 da Constituição Bandeirante.

Da forma como concebida pelo diploma normativo impugnado, pois sua concessão fora outorgada a todos os servidores municipais pertencentes ao Sistema Único de Saúde municipal, independentemente da função exercida por eles, a vantagem pecuniária individual criada não se justifica por não trazer nenhum benefício à atividade administrativa.

Cabe ressaltar que a moralidade administrativa está intimamente ligada ao conceito do “bom administrador”. Quando se trata da gestão do patrimônio público, todas as condutas devem concorrer para a criação do bem comum, e, para tanto, devem observar não somente o que é lícito ou ilícito, o justo ou injusto, mas atender a critérios morais que hoje dão valor jurídico à vontade psicológica do administrador. A gestão do dinheiro público exige do administrador prudência muito maior do que aquela que empregamos na gestão dos nossos bens.

Hoje a moralidade administrativa foi erigida em fator de legalidade não só do ato administrativo, mas também da produção normativa.

Assim, não basta a conformação do emprego e disponibilidade do dinheiro público à lei, mas também à moral administrativa e ao interesse coletivo.

A instituição da vantagem pecuniária individual pelo simples fato de serem servidores públicos da área de saúde não se conforma com a moral administrativa e com o interesse público.

A necessidade de verificar se a vantagem pecuniária atende efetivamente ao interesse público e às exigências do serviço está motivada pela sobriedade e prudência que os Municípios devem ter em relação à gestão do dinheiro público. Não se desconsidera a importância e necessidade de bem remunerar os servidores públicos. No entanto, devem ser observados os princípios constitucionalmente previstos que orientam a Administração Pública na consecução de suas atividades.

Bem observa Wellington Pacheco Barros, destacado Professor e Desembargador:

“Comungo com o pensamento político moderno de que uma das causas do inchaço da despesa pública é a remuneração com pessoal, que não raramente inviabiliza a tomada de decisões do agente político sobre investimentos de obras públicas de caráter benéfico à população. E uma das causas da despesa pública com pessoal é a atribuição indiscriminada pelo legislador de vantagens pecuniárias a servidor público sem que haja uma contraprestação de serviço e, o que é pior, com o rótulo de permanente e de efeito incorporador ao vencimento, elitizando a administração de existência de remunerações desproporcionais entre o maior e o menor vencimento de um cargo público” (O município e seus agentes, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p. 128).

No caso em tela, não há qualquer contraprestação especial ou extraordinária para que haja incidência e justificativa para a concessão da vantagem pecuniária individual. Pelo contrário, se outorga uma gratificação pelo simples fato de pertencer a determinado órgão, o que é vedado pelo ordenamento jurídico pátrio, na medida em que a instituição de vantagens pecuniárias para servidores públicos só se mostra legítima se realizada em conformidade com o interesse público e com as exigências do serviço, nos termos do art. 128 da Constituição do Estado, aplicável aos municípios por força do art. 144 da mesma Carta.

A vantagem pecuniária individual criada pela legislação vergastada não atende a nenhum interesse público, e tampouco às exigências do serviço, servindo apenas como mecanismo destinado a beneficiar interesses exclusivamente privados daqueles agentes públicos.

A inconstitucionalidade, portanto, decorre da contrariedade ao art. 128 da Constituição do Estado, aplicável aos Municípios em razão do art. 144 da mesma Carta.

Além disso, o ato normativo contraria o princípio da razoabilidade, que deve nortear a Administração Pública e a atividade legislativa, e cujo assento constitucional reside no art. 111 da Carta Estadual, aplicável aos Municípios por força do art. 144 do mesmo diploma magno.

Por força desse princípio é necessário que a norma passe pelo denominado “teste” de razoabilidade, vale dizer, que ela seja: (a) necessária (a partir da perspectiva dos anseios da Administração Pública); (b) adequada (considerando os fins públicos que com a norma se pretende alcançar); e (c) proporcional em sentido estrito (que as restrições, imposições ou ônus dela decorrentes não sejam excessivos ou incompatíveis com os resultados a alcançar).

Manifesta-se claramente o desrespeito ao princípio da razoabilidade, pela inadequação do ponto de vista do Poder Público, bem ainda pela falta de proporcionalidade em sentido estrito, ao criar gratificação que não se justifica.

Outrossim, a ausência de critério que pudesse nortear e justificar o pagamento da vantagem pecuniária individual, viola, assim, os princípios da moralidade, impessoalidade, razoabilidade (art. 111 da CE/89), não atendendo ao interesse público e exigências do serviço (art. 128 da CE/89).    

A propósito da matéria em análise, esse colendo Órgão Especial já se pronunciou. Senão vejamos:

“I. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI COMPLEMENTAR MUNICIPAL QUE DISPÔS SOBRE A INSTITUIÇÃO DE GRATIFICAÇÃO DE PRODUTIVIDADE FUNDADA EM CRITÉRIOS DE “ASSIDUIDADE, COMPETÊNCIA, DESEMPENHO, FLEXIBILIDADE, COMPROMETIMENTO E ÉTICA PROFISSIONAL, RESPONSABILIDADE FUNCIONAL, ATENDIMENTO, INICIATIVA, APROVEITAMENTO E COOPERAÇÃO”. CRITÉRIOS CUJA AVALIAÇÃO SERIA DE ELEVADA SUBJETIVIDADE E QUE, ADEMAIS, SÃO INERENTES AO PRÓPRIO DESEMPENHO DA FUNÇÃO PÚBLICA. AUSÊNCIA DE METAS DE DESEMPENHO OU CRITÉRIOS OBJETIVOS DE PRODUTIVIDADE QUE ENSEJEM A INSTITUIÇÃO DA REFERIDA GRATIFICAÇÃO. INCONSTITUCIONALIDADE, POR CARÊNCIA DE INTERESSE PÚBLICO, EM OFENSA AO QUE DISPOSTO PELO ARTIGO 128 DA CONSTITUIÇÃO DO ESTADO.

II. INSTITUIÇÃO, DA MESMA FORMA, DE GRATIFICAÇÃO FUNDADA EM DESEMPENHO DE ATIVIDADE EXTRAORDINÁRIA, E POR NOMEAÇÃO PARA INTEGRAR COMISSÕES INTERNAS. OFENSA AOS PRINCÍPIOS DA ISONOMIA E DA IMPESSOALIDADE, INSCULPIDOS NO ARTIGO 111 DA CONSTITUIÇÃO ESTADUAL, EIS QUE ABSOLUTAMENTE DESPROVIDA DE REQUISITOS MÍNIMOS OU DE CRITÉRIOS OBJETIVOS A INDICAÇÃO DE SERVIDORES PARA DESEMPENHO DE TAIS FUNÇÕES.

III. TENTATIVA DE CONVALIDAR, NO TEXTO LEGAL IMPUGNADO, GRATIFICAÇÕES PAGAS COM FUNDAMENTO EM REDAÇÃO ANTERIOR DA NORMA, IGUALMENTE INCONSTITUCIONAL. IMPOSSIBILIDADE.

IV. NECESSIDADE, POR FIM, PARA EVITAR A REPRISTINAÇÃO DO TEXTO ANTERIOR, DE DECLARAÇÃO TAMBÉM DE SUA INCONSTITUCIONALIDADE, SOB OS MESMOS FUNDAMENTOS.

V. AÇÃO DIRETA PROCEDENTE.” (TJ/SP, ADI Nº 2133804-45.2014.8.26.0000, Rel. Des. Márcio Bartoli, j. 21/01/2015).

        Por fim, não se olvide que os decretos atacados também padecem de inconstitucionalidade por atentarem contra os arts. 5º, caput, e 24, §2º, 1, da Carta Bandeirante, na medida em que violam a iniciativa legislativa reservada do Chefe do Poder Executivo para tratar de assuntos dessa natureza, ou seja, remuneração de servidores públicos, representando consequente afronta ao princípio da separação de poderes.

 

IV.   DO PEDIDO

Face ao exposto, requer o recebimento e processamento da presente ação que deverá ser julgada procedente para declaração da inconstitucionalidade da Lei nº 10.482, de 12 de novembro de 1991, do Município de São Carlos, e dos Decretos nº 87, de 06 de dezembro de 1996, e nº 56, de 27 de junho de 1997, ambos do Município de São Carlos.

Requer, ainda, sejam requisitadas informações à Câmara Municipal e ao Prefeito Municipal de São Carlos, bem como a citação do douto Procurador-Geral do Estado para se manifestar sobre o ato normativo impugnado, e, posteriormente, vista para fins de manifestação final.

 

São Paulo, 18 de outubro de 2016.

 

Gianpaolo Poggio Smanio

Procurador-Geral de Justiça

 

efrco

 

 

 

 

 

 

 

 

Protocolado nº 80.679/16

Interessado: Promotoria de Justiça de São Carlos

 

 

 

 

1.     Distribua-se a petição inicial da ação direta de inconstitucionalidade, em face da Lei nº 10.482, de 12 de novembro de 1991, do Município de São Carlos, e dos Decretos nº 87, de 06 de dezembro de 1996, e nº 56, de 27 de junho de 1997, ambos do Município de São Carlos, junto ao Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

 

2.     Oficie-se ao interessado, informando-lhe a propositura da ação, com cópia da petição inicial.

 

 

São Paulo, 18 de outubro de 2016.

 

Gianpaolo Poggio Smanio

Procurador-Geral de Justiça

 

 

efrco