Excelentíssimo
Senhor Doutor Desembargador Presidente do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado
de São Paulo
Protocolado n. 93.158/2016
Ementa: Constitucional.
Administrativo. Ação Direta de Inconstitucionalidade. Art. 27, caput, incisos I, II, III e seus §§1º e
2º da Lei nº 6.718, de 29 de julho de 2010, do Município de Guarulhos. Transposição
de cargos.
Transposição de
cargos ao viabilizar que o titular de um cargo se invista em outro, afrontando
a regra do concurso público (arts. 111 e 115, II, CE/89).
O
Procurador-Geral
de Justiça do Estado de São Paulo, no exercício da atribuição
prevista no art. 116, VI, da Lei Complementar Estadual n. 734, de 26 de
novembro de 1993 (Lei Orgânica do Ministério Público do Estado de São Paulo),
em conformidade com o disposto no art. 125, § 2º, e no art. 129, IV, da
Constituição Federal, e, ainda, nos arts. 74, VI, e 90, III, da Constituição do
Estado de São Paulo, com amparo nas informações colhidas no incluso
protocolado, vem, respeitosamente, perante esse egrégio Tribunal de Justiça,
promover a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE
em face do art. 27, caput, incisos I, II, III e seus §§1º e
2º da Lei nº 6.718, de 29 de julho de 2010, do Município de Guarulhos, pelos fundamentos a seguir expostos:
I – O Ato Normativo Impugnado
O protocolado que instrui esta
inicial de ação direta de inconstitucionalidade e a cujas folhas esta petição
se reportará, foi instaurado a partir de representação do Promotor de Justiça
da Comarca de Guarulhos postulando o ajuizamento de ação direta de
inconstitucionalidade do art. 27, caput,
incisos I, II, III e seus §§1º e 2º da Lei nº 6.718, de 29 de julho de 2010, do
Município de Guarulhos.
A Lei nº 6.718, de 29 de julho de
2010, do Município de Guarulhos, “Dispõe sobre o Quadro de Pessoal e respectivo
Plano de Cargos e Vencimentos do Serviço Autônomo de Água e Esgoto de Guarulhos
– SAEE (fls. 225/249).
No Título VI da Lei nº 6.718, de 29
de julho de 2010, do Município de Guarulhos, houve a disposição sobre
enquadramento, com destaque em negrito para o art. 27, caput, incisos I, II, III e, seus §§1º e 2º, com a seguinte redação
(fls. 225/249):
“(...)
Título VI
DO ENQUADRAMENTO
Art.
26 – O enquadramento constitui direito pessoal do servidor ocupante de cargo ou
emprego permanente do SAEE, que possua a habilitação necessária, respeitado
eventual direito adquirido decorrente de sua investidura.
Parágrafo
único – O enquadramento de que trata este Título não implicará, em hipótese
alguma, alteração no regime jurídico do servidor.
Art. 27 – O enquadramento de
que trata este Título será efetuado de acordo com os seguintes critérios:
I – ingresso nos quadros da
autarquia mediante concurso público ou processo seletivo a ele equiparado ou
admissão antes da Constituição de 1998;
II – possuir grau de
escolaridade mínimo exigido para a investidura no cargo;
III – compatibilidade de
atribuições entre as atividades do cargo ou emprego ocupado na data da
promulgação desta Lei, há pelo menos cinco anos ininterruptos, e de cargo ou
emprego objeto do enquadramento;
§1º - Tratando-se de
profissão regulamentada deve haver compatibilidade de atribuições entre as
atividades do cargo ou emprego originário e aquelas objeto do cargo no qual o
servidor será enquadrado.
§2º - O enquadramento de que
trata este Título será formalizado por apostila ao título de nomeação do
servidor.
Art.
28 – No enquadramento da remuneração dever-se-á estabelecer o posicionamento do
servidor por aproximação de valor, respeitando-se sempre o salário base, se
igual não houver.
Art.
29 – Não haverá, em hipótese alguma, redução da remuneração percebida pelos
servidores em face de enquadramento.
Art.
30 – O enquadramento na tabela salarial dos atuais ocupantes de funções
gratificadas será efetuado considerado o vencimento do cargo efetivo ou salário
do emprego originário.
Art.
31 – Os empregos existentes no Quadro de Pessoal do SAEE serão automaticamente
convertidos, quando da sua vacância, para cargos estatutários, a serem providos
mediante concurso público, nos termos da Lei, consoante as necessidades da
autarquia.
Art.
32 – Extinguem-se, com a entrada em vigor da Lei, os cargos e empregos
relacionados, respectivamente, nos anexos IX e X.
Art.
33 – Ficam criados os cargos relacionados no anexo XI.
(...)”
g.n
II – O parâmetro da fiscalização
abstrata de constitucionalidade
Os dispositivos
acima transcritos da lei impugnada contrariam frontalmente a Constituição do
Estado de São Paulo, a qual está subordinada a produção normativa municipal
ante a previsão dos arts. 1º, 18, 29 e 31 da Constituição Federal.
Os
dispositivos violam os seguintes preceitos da Constituição Estadual, aplicáveis
aos Municípios por força de seu art. 144:
“(...)
Artigo
111 – A administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos
Poderes do Estado, obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade,
moralidade, publicidade, razoabilidade, finalidade, motivação, interesse
público e eficiência.
(...)
Artigo
115 – Para a organização da administração pública direta ou indireta, inclusive
as fundações instituídas ou mantidas por qualquer dos Poderes do Estado, é
obrigatório o cumprimento das seguintes normas:
(...)
II -
a investidura em cargo ou emprego
público depende de aprovação prévia, em concurso público de provas ou de provas
e títulos, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão, declarado
em lei, de livre nomeação e exoneração.
(...)”
A regra jurídica constante do art. 27, caput, incisos I, II, III e seus §§ 1º e
2º da Lei nº 6.718, de 29 de julho de 2010, do Município de Guarulhos, autoriza
a transposição de cargo, pois viabiliza a investidura de servidores em cargo
diverso, sem submissão a prévio concurso público, bastando para tanto que
exerçam atribuições compatíveis entre as atividades do cargo ou emprego ocupados
na data da promulgação da Lei nº
6.718/2010, há pelo menos cinco anos ininterruptos, e do cargo ou emprego
objeto do enquadramento e possuir grau de escolaridade mínimo exigido para a
investidura no cargo. Por exemplo, o servidor em desvio de função poderá ser
aquinhoado com cargo diverso.
A lei dispensou indevidamente a realização de
concurso mediante o simples aproveitamento de servidores em cargos isolados ou
integrantes de carreira distinta, com funções diversas, o que ensejou a burla à
regra do concurso. Do mesmo modo, criou óbice à acessibilidade de todos os
cidadãos aos cargos públicos previstos em lei, e, por conseguinte, violou o
princípio da isonomia.
O concurso
público resguarda a igualdade e colima a eficiência. Acrescente-se, ademais,
que a existência de formas de provimento derivado “de modo algum significa
abertura para costear-se o sentido próprio do concurso público. Como este é
sempre específico para dado cargo, encartado em carreira certa, quem nele se
investiu não pode depois, sem novo concurso público, ser trasladado para cargo
de natureza diversa ou de outra carreira melhor retribuída ou de encargos mais
nobres e elevados. O nefando expediente a que se alude foi algumas vezes
adotado, no passado, sob a escusa de corrigir desvio de funções ou com arrimo
na nomenclatura esdrúxula de ‘transposição de cargos’. Corresponde a uma
burla manifesta do concurso público. É que permite a candidatos que
ultrapassaram apenas concursos singelos, destinados a cargos de modesta
expressão – e que se qualificaram tão somente para eles – venham a aceder,
depois de aí investidos, a cargos outros, para cujo ingresso se demandaria
sucesso em concursos de dificuldades muito maiores, disputados por concorrentes
de qualificação bem mais elevada” (Celso Antônio Bandeira de Mello. Regime Constitucional dos Servidores da
Administração Direta e Indireta, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p.
55).
Não se nega a possibilidade de aprimoramento na
organização administrativa de determinado ente federativo, e tampouco a reestruturação
do respectivo quadro de cargos, empregos e funções. Tal possibilidade é ínsita
à própria autonomia de cada ente federativo, e em especial dos Municípios. Também
não se refuta a possibilidade de enquadramento de servidores, já integrantes da
Administração, nos casos de extinção ou transformação de cargos, empregos e
funções, desde que idênticas as atribuições do novo cargo, e idênticos os
requisitos ou condições exigidos dos candidatos ao seu provimento. Pois, se a
transformação implicar alteração do título e das atribuições do cargo,
configura novo provimento, que exige concurso público.
A
hipótese em análise cuida da transposição de servidores públicos lato sensu admitidos para um
determinado cargo público, isolado, para outro de natureza, regime e requisitos
de investidura diversos, bem como de carreira distinta, sem submissão à prévia
aprovação em concurso público de provas e títulos em igualdade de condições.
Trata-se, portanto, de transposição vedada. Neste sentido, pronunciou-se o
Supremo Tribunal Federal na ADI 3.857–CE:
“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI DO ESTADO DO CEARÁ. PROVIMENTO DERIVADO DECARGOS. INCONSTITUCIONALIDADE. OFENSA AO DISPOSTO NO ART. 37, II, DA CF. AÇÃO JULGADA PROCEDENTE. I - São inconstitucionais os artigos da Lei 13.778/2006, do Estado do Ceará que, a pretexto de reorganizar as carreiras de Auditor Adjunto do Tesouro Nacional, Técnico do Tesouro Estadual e Fiscal do Tesouro Estadual, ensejaram o provimento derivado de cargos. II - Dispositivos legais impugnados que afrontam o comando do art. 37, II, da Constituição Federal, o qual exige a realização de concurso público para provimento de cargos na Administração estatal. III - Embora sob o rótulo de reestruturação da carreira na Secretaria da Fazenda, procedeu-se, na realidade, à instituição de cargos públicos, cujo provimento deve obedecer aos ditames constitucionais. IV - Ação julgada procedente” (DJ 27.02.2009).
A transposição é estimada
ilícita e inconstitucional pelo ordenamento jurídico vigente, tanto que o
Supremo Tribunal Federal já editou, a propósito, a Súmula Vinculante 43, cujo teor expressa que:
“É inconstitucional toda
modalidade de provimento que propicie ao servidor investir-se, sem prévia
aprovação em concurso público destinado ao seu provimento, em cargo que não
integra a carreira na qual anteriormente investido”.
Neste
sentido, o colendo Órgão Especial do egrégio Tribunal de Justiça do Estado de
São Paulo já declarou a inconstitucionalidade de norma similar, como se
constata da ementa do venerando acórdão adiante transcrita:
“Ação direta de inconstitucionalidade. Intervenção de terceiros interessados. Impossibilidade. Art. 7º, caput, da Lei 9.868/90. Inciso I, do art. 18, da Lei 2.116, de 04 de março de 2008, e Portaria 7.050, de 04 de março de 2008, do Município de Tambaú. Transposição de cargos. Ocorrência. Inobservância dos arts. 111 e 115, inciso II, da Constituição do Estado de São Paulo. Súmula 685 do STF. Precedentes do Órgão Especial. Inconstitucionalidade, por arrastamento, da Portaria 7.104, de 01 de abril de 2008, do Município de Tambaú, de conteúdo idêntico à portaria impugnada. Ação procedente. Modulação dos efeitos da declaração” (ADI 2028164-53.2014.8.26.0000, Rel. Des. Márcio Bartoli, v.u., 02-07-2014).
A
espécie exibe ofensa ao princípio de moralidade administrativa que preordena a
exigência constitucional de provimento originário de cargos ou empregos
públicos isolados ou de carreira mediante prévia aprovação em concurso público
e que, de outra parte, recebe o influxo do princípio da impessoalidade
administrativa ao interditar toda a sorte de favorecimentos e privilégios na
investidura no serviço público e nas funções públicas correlatas. Portanto,
caracterizada a incompatibilidade vertical com os arts. 111 e 115, II, da Constituição
Estadual.
À saciedade
demonstrado o fumus boni iuris, pela
ponderabilidade do direito alegado, soma-se a ele o periculum in mora. A atual tessitura do preceito normativo
municipal apontado como violador de princípios e regras da Constituição do
Estado de São Paulo é sinal, de per si,
para suspensão de sua eficácia até final julgamento desta ação, evitando-se
atuação desconforme com o ordenamento jurídico, criadora de lesão irreparável
ou de difícil reparação, consistente na admissão ilegítima de servidores
públicos e correlata percepção de remuneração à custa do erário bem como na
oneração excessiva das finanças públicas pelo pagamento de subsídios e
remunerações além do limite municipal.
À luz desta
contextura, requer a concessão de liminar para suspensão da eficácia, até final
e definitivo julgamento desta ação, do art. 27, caput,
incisos I, II, III e, seus §§1º e 2º da Lei nº 6.718, de 29 de julho de 2010,
do Município de Guarulhos.
IV – Pedido
Face ao
exposto, requerendo o recebimento e o processamento da presente ação para que,
ao final, seja julgada procedente para declarar a inconstitucionalidade do art. 27, caput, incisos I, II, III e, seus §§1º e 2º da Lei nº 6.718, de 29
de julho de 2010, do Município de Guarulhos.
Requer-se ainda
sejam requisitadas informações à Câmara Municipal e ao Prefeito Municipal de Guarulhos,
bem como posteriormente citado o Procurador-Geral do Estado para se manifestar
sobre os atos normativos impugnados, protestando por nova vista, posteriormente,
para manifestação final.
Termos em que,
pede deferimento.
São
Paulo, 25 de outubro de 2016.
Gianpaolo Poggio
Smanio
Procurador-Geral
de Justiça
ef/mi
Protocolado n. 93.158/2016
Interessado: Dr. Nadim Mazloum – Promotor de Justiça da Comarca de Guarulhos
Objeto: representação para controle de constitucionalidade da transposição do art. 27, caput, incisos I, II, III e, seus §§1º e 2º da Lei nº 6.718, de 29 de julho de 2010, do Município de Guarulhos
Promova-se
a distribuição no egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo da ação
direta de inconstitucionalidade impugnando o art. 27, caput, incisos I, II, III e, seus §§1º e 2º da Lei nº 6.718, de 29
de julho de 2010, do Município de Guarulhos, instruída com o protocolado em epígrafe referido.
Oficie-se
ao interessado, informando-lhe a propositura da ação, com cópia da petição
inicial.
São Paulo, 25 de outubro de 2016.
Gianpaolo Poggio
Smanio
Procurador-Geral
de Justiça
ef/mi