EXCELENTÍSSIMO SENHOR DESEMBARGADOR PRESIDENTE DO E. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

 

 

 

 

Protocolado nº 101.520/2016

 

 

 

Ementa: Ação direta de inconstitucionalidade. Inconstitucionalidade dos artigos 89 e 174 da Lei n° 16.402, de 22 de março de 2016, do Município de São Paulo, que disciplina o parcelamento, o uso e a ocupação do solo no Município de São Paulo. 1) Artigos 89 e 174 da Lei n° 16.402, de 22 de março de 2016, do Município de São Paulo. A adoção de normas municipais alheadas ao plano diretor configura indevido fracionamento, permitindo soluções tópicas, isoladas e pontuais, desvinculadas do planejamento urbano integral, vulnerando sua compatibilidade com o plano diretor e sua integralidade, e sua conformidade com as normas urbanísticas (arts. 180, V, e 181, caput, CE/89). 2) Artigo 89 da Lei n° 16.402, de 22 de março de 2016, do Município de São Paulo. Possibilidade de majoração dos parâmetros urbanísticos de altura para as torres das edificações destinadas aos locais de culto. Violação aos princípios da impessoalidade e da razoabilidade. Atividade legislativa teve por escopo beneficiar determinada atividade plenamente identificável. Tratamento diferenciado em detrimento do interesse público. Ausência de fundamentação técnica. Violação aos artigos 111 e 144, da Constituição Paulista.

 

 

 

 

 

 

 

O Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, no exercício da atribuição prevista no art. 116, inciso VI, da Lei Complementar Estadual nº 734, de 26 de novembro de 1993, e em conformidade com o disposto no art. 125, § 2º, e no art. 129, inciso IV, da Constituição da República, e ainda no art. 74, inciso VI, e no art. 90, inciso III, da Constituição do Estado de São Paulo, com amparo nas informações colhidas no incluso protocolado (PGJ nº 101.520/2016, que segue anexo), vem perante esse Egrégio Tribunal de Justiça promover a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE em face dos artigos 89 e 174 da Lei n° 16.402, de 22 de março de 2016, que “disciplina o parcelamento, o uso e a ocupação do solo no Município de São Paulo, de acordo com a Lei n° 16.050, de 31 de julho de 2014 – Plano Diretor Estratégico (PDE)”, pelos fundamentos expostos a seguir.

1.     DO ATO NORMATIVO IMPUGNADO

         A Lei nº 16.402, de 22 de março de 2016, do Município de São Paulo, que “disciplina o parcelamento, o uso e a ocupação do solo no Município de São Paulo, de acordo com a Lei n° 16.050, de 31 de julho de 2014 – Plano Diretor Estratégico (PDE)” possui, no que interessa, a seguinte redação:

“(...)

Art. 89. No caso das torres das edificações destinadas aos locais de culto, o gabarito de altura máxima poderá ser majorado em 50% (cinquenta por cento) em relação ao estabelecido no Quadro 3, anexo desta lei.

(...)

Art. 174. Durante o período de 3 (três) anos após a entrada em vigor desta lei, aplicam-se os seguintes incentivos na zona ZEU:

I-                   a cota parte máxima de terreno por unidade residencial será igual a 30 m²/un (trinta metros quadrados por unidade residencial);

II-                 no disposto na alínea “a” do inciso I do art. 62 desta lei, fica admitida 1 (uma) vaga a cada 60 m² (sessenta metros quadrados) de área construída computável na unidade.

Parágrafo único. A vigência dos incentivos previstos neste artigo será improrrogável.

 (...)”.

2.     O parâmetro da fiscalização abstrata de constitucionalidade

Os dispositivos acima transcritos da Lei que dispõe sobre o Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo do Município de São Paulo (LPUOS/2016), ao irem de encontro aos parâmetros urbanísticos adotados pelo Plano Diretor Municipal (Lei n° 16.050, de 31 de julho de 2014, do Município de São Paulo), como será demonstrado a seguir, contrariam frontalmente os artigos 180, V, e 181, caput, da Constituição do Estado de São Paulo.

Ademais, o artigo 89 da LPUOS/2016, ao flexibilizar os parâmetros urbanísticos de altura em benefício das edificações destinadas aos cultos religiosos, sem fundamentação técnica e em dissonância com as diretrizes estabelecidas no Plano Diretor Municipal (PDE/2014) violou os princípios da isonomia e da razoabilidade, em afronta aos artigos 111 e 144, da Constituição Paulista.

Com efeito, as normas contestadas são incompatíveis com os seguintes preceitos da Constituição Paulista, in verbis:

Artigo 111 – A administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes do Estado, obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, razoabilidade, finalidade, motivação, interesse público e eficiência.

(...)

Artigo 144- Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto organizarão por Lei Orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.

(...)

Artigo 180- No estabelecimento de diretrizes e normas relativas ao desenvolvimento urbano, o Estado e os Municípios assegurarão:

(...)

V- a observância das normas urbanísticas, de segurança, higiene e qualidade de vida;

(...)

Artigo 181- Lei municipal estabelecerá, em conformidade com as diretrizes do plano diretor, normas sobre zoneamento, loteamento, parcelamento, uso e ocupação do solo, índices urbanísticos, proteção ambiental e demais limitações administrativas pertinentes. ”

 

3.     DA ALTERAÇÃO TÓPICA DE NORMAS DE USO E OCUPAÇÃO DO SOLO: NORMAS URBANÍSTICAS ALHEADAS AO PLANO DIRETOR

Antes de analisar especificamente os dispositivos legais impugnados da Lei n° 16.402/2016, do Município de São Paulo, que dispõe sobre o Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo, cumpre fazer uma breve digressão sobre a centralidade do Plano Diretor Municipal no planejamento urbanístico, nos termos do art. 181, caput, da Constituição Paulista, e 182, § 1°, da Constituição Federal, e, assim, a inconstitucionalidade de normas supervenientes que vão de encontro às suas diretrizes, desfigurando-o.

De efeito, não se pode confundir a alteração das regras urbanísticas de forma compatível ao Plano Diretor, com a alteração tópica do Plano Diretor, a fim de ajustar e impor as mudanças desejadas.

Ora, se é necessário fatiar o Plano Diretor para se impor a alteração desejada, indubitável sua incompatibilidade com o planejamento integral urbano, consubstanciado no Plano Diretor, aprovado nos termos dos artigos 40 e seguintes do Estatuto da Cidade, verbis:

“Art. 40. O plano diretor, aprovado por lei municipal, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e expansão urbana.

§ 1º O plano diretor é parte integrante do processo de planejamento municipal, devendo o plano plurianual, as diretrizes orçamentárias e o orçamento anual incorporar as diretrizes e as prioridades nele contidas.

§ 2º O plano diretor deverá englobar o território do Município como um todo.

§ 3º A lei que instituir o plano diretor deverá ser revista, pelo menos, a cada dez anos.

§ 4º No processo de elaboração do plano diretor e na fiscalização de sua implementação, os Poderes Legislativo e Executivo municipais garantirão:

I – a promoção de audiências públicas e debates com a participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade;

II – a publicidade quanto aos documentos e informações produzidos;

III – o acesso de qualquer interessado aos documentos e informações produzidos.”

(...)

Art. 42. O plano diretor deverá conter no mínimo:

I – a delimitação das áreas urbanas onde poderá ser aplicado o parcelamento, edificação ou utilização compulsórios, considerando a existência de infra-estrutura e de demanda para utilização, na forma do art. 5º desta Lei;

II – disposições requeridas pelos arts. 25, 28, 29, 32 e 35 desta Lei;

III – sistema de acompanhamento e controle.

(...)

Art. 42-A.  Além do conteúdo previsto no art. 42, o plano diretor dos Municípios incluídos no cadastro nacional de municípios com áreas suscetíveis à ocorrência de deslizamentos de grande impacto, inundações bruscas ou processos geológicos ou hidrológicos correlatos deverá conter:       

 I - parâmetros de parcelamento, uso e ocupação do solo, de modo a promover a diversidade de usos e a contribuir para a geração de emprego e renda;        

 II - mapeamento contendo as áreas suscetíveis à ocorrência de deslizamentos de grande impacto, inundações bruscas ou processos geológicos ou hidrológicos correlatos;       

 III - planejamento de ações de intervenção preventiva e realocação de população de áreas de risco de desastre;       

 IV - medidas de drenagem urbana necessárias à prevenção e à mitigação de impactos de desastres;

V - diretrizes para a regularização fundiária de assentamentos urbanos irregulares, se houver, observadas a Lei no 11.977, de 7 de julho de 2009, e demais normas federais e estaduais pertinentes, e previsão de áreas para habitação de interesse social por meio da demarcação de zonas especiais de interesse social e de outros instrumentos de política urbana, onde o uso habitacional for permitido.       

VI - identificação e diretrizes para a preservação e ocupação das áreas verdes municipais, quando for o caso, com vistas à redução da impermeabilização das cidades.

 § 1º A identificação e o mapeamento de áreas de risco levarão em conta as cartas geotécnicas.       

§ 2º O conteúdo do plano diretor deverá ser compatível com as disposições insertas nos planos de recursos hídricos, formulados consoante a Lei nº 9.433, de 8 de janeiro de 1997.       

§ 3º Os Municípios adequarão o plano diretor às disposições deste artigo, por ocasião de sua revisão, observados os prazos legais.

§ 4º Os Municípios enquadrados no inciso VI do art. 41 desta Lei e que não tenham plano diretor aprovado terão o prazo de 5 (cinco) anos para o seu encaminhamento para aprovação pela Câmara Municipal.    

Art. 42-B.  Os Municípios que pretendam ampliar o seu perímetro urbano após a data de publicação desta Lei deverão elaborar projeto específico que contenha, no mínimo:       

I - demarcação do novo perímetro urbano;       

II - delimitação dos trechos com restrições à urbanização e dos trechos sujeitos a controle especial em função de ameaça de desastres naturais;      

III - definição de diretrizes específicas e de áreas que serão utilizadas para infraestrutura, sistema viário, equipamentos e instalações públicas, urbanas e sociais;       

IV - definição de parâmetros de parcelamento, uso e ocupação do solo, de modo a promover a diversidade de usos e contribuir para a geração de emprego e renda;       

V - a previsão de áreas para habitação de interesse social por meio da demarcação de zonas especiais de interesse social e de outros instrumentos de política urbana, quando o uso habitacional for permitido;       

VI - definição de diretrizes e instrumentos específicos para proteção ambiental e do patrimônio histórico e cultural; e       

VII - definição de mecanismos para garantir a justa distribuição dos ônus e benefícios decorrentes do processo de urbanização do território de expansão urbana e a recuperação para a coletividade da valorização imobiliária resultante da ação do poder público.

§ 1o O projeto específico de que trata o caput deste artigo deverá ser instituído por lei municipal e atender às diretrizes do plano diretor, quando houver.

§ 2o Quando o plano diretor contemplar as exigências estabelecidas no caput, o Município ficará dispensado da elaboração do projeto específico de que trata o caput deste artigo.      

§ 3o A aprovação de projetos de parcelamento do solo no novo perímetro urbano ficará condicionada à existência do projeto específico e deverá obedecer às suas disposições.”     

A transcrição dos citados dispositivos não foi feita com a intenção de se confrontar a Lei Municipal com a Lei Federal, expediente vedado em sede de controle concentrado de constitucionalidade, mas apenas para se apontar a importância do planejamento integral urbano consubstanciado pelo Plano Diretor.

O Plano Diretor a que nos referimos é aquele original, aprovado em obediência aos requisitos elencados na Lei Federal n. 10.257/2001, e não aquele fatiado, como o fez os dispositivos objurgados da LPUOS, os quais excepcionaram parâmetros urbanísticos instituídos pelo Plano Diretor, como será demonstrado nos próximos tópicos.

Das normas municipais de desenvolvimento urbano se impõe compatibilidade com as normas urbanísticas (art. 180, V, da Constituição Estadual) e com as diretrizes do Plano Diretor, que deve possuir caráter integral (art. 181, caput, e § 1º, da Constituição Paulista).

Neste ponto, o Supremo Tribunal Federal entende possível o contencioso de constitucionalidade sem que se configure contraste entre a lei impugnada e o plano diretor, estimando desafio direto e frontal à Constituição, in verbis:

“(...) Plausibilidade da alegação de que a Lei Complementar distrital 710/05, ao permitir a criação de projetos urbanísticos ‘de forma isolada e desvinculada’ do plano diretor, violou diretamente a Constituição Republicana. (...)” (STF, QO-MC-AC 2.383-DF, 2ª Turma, Rel. Min. Ayres Britto, 27-03-2012, v.u., 28-06-2012).

Neste contexto, os atos normativos impugnados desrespeitaram a necessidade de planejamento, princípio que deve ser observado na edição de leis relacionadas ao uso do solo.

Nos termos dos arts. 180, II e 181, § 1º, da Constituição Estadual, pode-se extrair que planejamento é indispensável à validade e legitimidade constitucional da legislação relacionada ao uso do solo.

Todo e qualquer regramento relativo ao uso e ocupação do solo, seja ele geral ou individualizado (autorização para construção em determinado imóvel, regularização de construção, alteração do uso do solo para determinada via, área ou bairro, etc.), deve levar em consideração a cidade em sua dimensão integral, dentro de um sistema de ordenamento urbanístico.

O art. 182, caput, da Constituição Federal disciplina que “a política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes”.

O inciso VIII do art. 30 da Constituição Federal prevê ainda a competência dos Municípios para “promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento, e da ocupação do solo urbano”.

Em decorrência dos dispositivos acima apontados, pode-se concluir que: (a) a adequada política de ocupação e uso do solo é valor que conta com assento constitucional (federal e estadual); (b) a política de ocupação e uso adequado do solo se faz mediante planejamento e estabelecimento de diretrizes através de lei; (c) as diretrizes para o planejamento, ocupação e uso do solo devem constar do respectivo plano diretor, cuja elaboração depende de avaliação concreta das peculiaridades de cada Município; (d) a legislação específica sobre uso e ocupação do solo deve pautar-se por adequado planejamento e participação popular; (e) não se admite a alteração tópica e fatiada do Plano Diretor, dissociada de uma revisão geral e integral deste instrumento.

A norma urbanística é, por sua natureza, uma disciplina, um modo, um método de transformação da realidade, de superposição daquilo que será a realidade do futuro àquilo que é a realidade atual.

Para que a norma urbanística tenha legitimidade e validade deve decorrer de um planejamento que é um processo técnico instrumentalizado para transformar a realidade existente no sentido de objetivos previamente estabelecidos. Não pode decorrer da simples vontade do administrador, mas de estudos técnicos que visem assegurar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade (habitar, trabalhar, circular e recrear) e garantir o bem-estar de seus habitantes.

O planejamento não é mais um processo discricionário e dependente da mera vontade dos administradores. É uma previsão e exigência constitucional (art. 48, IV, 182, da CF e art. 180, II, da CE). Tornou-se imposição jurídica, mediante a obrigação de elaborar planos, estudos quando se trate da elaboração normativa relativa ao estabelecimento de diretrizes e normas relativas ao desenvolvimento urbano.

O planejamento urbanístico integral não é um simples fenômeno técnico, mas um verdadeiro processo de criação de normas jurídicas, que ocorre em duas fases: uma preparatória, que se manifesta em planos gerais normativos, e outra vinculante, que se realiza mediante planos de atuação concreta, de natureza executiva.

Discorrendo a respeito do tema, Joseff Woff consigna que “o plano urbanístico não constitui simples conjunto de relatórios, mapas e plantas técnicas, configurando um acontecer unicamente técnico. Compenetrando-se da realidade a ser transformada e das operações de transformação que consubstanciam o processo de planejamento, sob pena de ser mera abstração sem sentido, o plano urbanístico adquire, ele próprio, por contaminação necessariamente dialética, as características de um procedimento jurídico dinâmico, ao mesmo tempo normativo e ativo, no sentido de que os anteprojetos elaborados por técnicos e especialistas adquirem a categoria de diretrizes para a política do solo e sua edificação, ao mesmo temo que, em seus desdobramentos, se manifesta como conjunto de atos e fundamentos para a produção de atos de atuação urbanística concreta. (El Planeamiento Urbanístico del Território y lãs Normas que Garantizan su Efectividad, conforme a la Ley Federal de Ordenación Urbana, em La Ley Federal Alemana de Ordenación Urbanística y los Municípios, p. 28, apud José Afonso da Silva, Direito Urbanístico Brasileiro, 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 83).

A propósito do tema, José Afonso da Silva chega a observar que:

“Muitos fatores contribuem para dificultar a implantação desse processo, tais como carência de meios técnicos de sustentação, de recursos financeiros e de recursos humanos, bem assim certo temor do Prefeito e da Câmara de que o processo de planejamento substitua sua capacidade de decisão política e de comando administrativo.” (Direito Urbanístico Brasileiro, 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 83).

A ordenação do uso e ocupação do solo é um dos aspectos substanciais do planejamento urbanístico. Preconiza uma estrutura orgânica para a cidade, mediante aplicação de instrumentos legais como o do zoneamento e de outras restrições urbanísticas que, como manifestação concreta do planejamento urbanístico, tem por objetivo regular o uso da propriedade do solo e dos edifícios em áreas homogêneas no interesse do bem-estar da população, conformando-os ao princípio da função social.

Para que o ordenamento urbanístico seja legítimo, há de ter objetivos públicos, voltados para a realização da qualidade de vida dos habitantes da cidade e de quem por ela circule.

Qualquer atividade urbanística busca a transformação e orientação da realidade das cidades, dando uma sistematização senão a ideal, pelo menos, a possível e mais adequada. A sistemática constitucional - relativa à necessidade de planejamento, diretrizes, e ordenação global da ocupação e uso do solo - evidencia que o casuísmo, nessa matéria, não é em hipótese alguma admissível.

O ato normativo que altera sensivelmente as condições, limites e possibilidades do uso do solo urbano, alterando topicamente o plano diretor, viola diretamente a sistemática constitucional na matéria.

Não se admite, nesse quadro, modificações individualizadas, pontuais, casuísticas e dissociadas da estrutura sistêmica da utilização de todo o solo urbano estampadas nas leis de uso e ocupação do solo urbano. Caso contrário, tornaria inócuo e sem qualquer validade todo o planejamento e estudos realizados pelo Poder Executivo, por ocasião da propositura e aprovação da lei complementar que instituiu o Plano Diretor Participativo e o Sistema de Planejamento Integrado e Gestão Participativa do Município.

Acerca da importância do planejamento urbanístico que deve preceder a toda e qualquer legislação elaborada nesta matéria, discorre Toshio Mukai que:

“(...) a ocupação e o desenvolvimento dos espaços habitáveis, sejam eles no campo ou na cidade, não podem ocorrer de forma meramente acidental, sob as forças dos interesses privados e da coletividade. Ao contrário, são necessários profundos estudos acerca da natureza da ocupação, sua finalidade, avaliação da geografia local, da capacidade de comportar essa utilização sem danos para o meio ambiente, de forma a permitir boas condições de vida para as pessoas, permitindo o desenvolvimento econômico social, harmonizando os interesses particulares e os da coletividade” (Temas atuais de direito urbanístico e ambiental. Belo Horizonte: Fórum, 2004, p. 29).

Anote-se que o Supremo Tribunal Federal reconheceu Repercussão Geral em relação à matéria, sob o tema n. 348, e em recente decisão assentou a seguinte tese:

“Os municípios com mais de vinte mil habitantes e o Distrito Federal podem legislar sobre programas e projetos específicos de ordenamento do espaço urbano por meio de leis que sejam compatíveis com as diretrizes fixadas no plano diretor.” – grifo nosso.

Ficou, portanto, assentada a possibilidade de legislar acerca de programas e projetos específicos de ordenamento do espaço urbano, desde de que por meio de leis “compatíveis com as diretrizes fixadas no plano diretor”.

Ora, na hipótese em comento, conforme será explanado a seguir, os dispositivos impugnados da LPUOS do Município de São Paulo contrariam as diretrizes instituídas pelo Plano Diretor, violando frontalmente o disposto nos artigos 180, V e 181, caput, da Constituição Estadual, bem como, por força do artigo 144 da Constituição Estadual, os princípios constitucionais estabelecidos nos artigos 182, caput e § 1º, e 30, inciso VIII, da Constituição Federal, nos termos do entendimento esposado pelo E. STF.

3.1.         DO ARTIGO 174 DA LEI N° 16.402/16 DO MUNICÍPIO DE SÃO PAULO

          O Plano Diretor Estratégico do Município de São Paulo - PDE (Lei n° 16.050, de 31 de julho de 2014), em linha com o entendimento defendido por renomados urbanistas, instituiu Eixos de Estruturação da Transformação Urbana no Município de São Paulo, que equivalem na Lei de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo - LPUOS (Lei n° 16.402, de 22 de março de 2016) às Zonas de Estruturação Urbana (ZEU), e correspondem às “porções do território onde é necessário um processo de transformação do solo, com o adensamento populacional e construtivo articulado a uma qualificação urbanística dos espaços públicos, mudanças dos padrões construtivos e ampliação da oferta de serviços e equipamentos públicos” (art. 22, § 2°, PDE).

         O adensamento construtivo e populacional nessas áreas, definidas segundo a rede estrutural de transportes coletivos existente, compreendida como sistema de infraestrutura que propicia a implantação dos eixos de estruturação da transformação urbana (arts. 9°, II, b, e 22, §§ 1° e 2°, PDE), foi fixada em lei com objetivos urbanísticos estratégicos, especialmente “o aumento da densidade construtiva, demográfica, habitacional e de atividades urbanas”, a ampliação da “oferta de habitações de interesse social na proximidade do sistema estrutural de transporte coletivo”, e o desestímulo ao “uso do transporte individual e motorizado, articulando o transporte coletivo com modos não motorizados de transporte” (art. 23, I, IV e VII, PDE).

         Os propósitos de aumento do adensamento construtivo e populacional nos Eixos de forma a aproveitar a rede estrutural de transporte coletivo e desestimular o transporte individual e motorizado, inclusive por restrição do número de vagas, foram instrumentalizados no PDE 2014, por meio de parâmetros de uso e ocupação do solo, dentre eles uma cota parte máxima de terreno (número mínimo de unidades habitacionais que deverão ser construídas em função da área do terreno) e uma cota de garagem máxima (limite de vagas de estacionamento não computáveis, ou seja, número de vagas por área construída que não exige outorga onerosa, pagamento para construir mais), com o escopo de estimular a construção de imóveis menores e desestimular o uso do automóvel.

         Ocorre que a Lei de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo, em seu artigo 174, ora impugnado, definiu que os parâmetros definidos para o Eixo de Estruturação Urbana pelo PDE/2014 não precisam ser seguidos durante o período de 3 (três) anos após a sua entrada em vigor. Para esse período, a LPUOS/2016 previu uma maior cota parte máxima de terreno por unidade residencial e uma maior cota de garagem máxima, afrontando diretamente os objetivos do PDE/2014 de adensamento construtivo e populacional em unidades habitacionais de menor dimensão e desestímulo ao uso do automóvel.

         Enquanto o PDE/2014 definiu a cota parte máxima de terreno por unidade em 20 m²/un, nas áreas de influência dos Eixos de Transformação Urbana (art. 79, PDE), a LPUOS 2016 elevou esse parâmetro para 30 m²/un, durante os seus três primeiros anos de vigência.

         Trata-se de um contrassenso se o objetivo é estimular unidades habitacionais menores potencialmente destinadas à população de poder aquisitivo mais restrito.

         Conforme demonstrado na tabela a seguir, o aumento da cota máxima de terreno significará a diminuição do número mínimo de unidades habitacionais e o acréscimo da área máxima por unidade habitacional, nos Eixos de Transformação Urbana:

Tabela 1

 

PDE 2014

Eixos de Estruturação da Transformação Urbana

     LPUOS 2016

Zona de Estruturação Urbana

Parâmetro

Fixado nas

Leis

Cota parte máxima de terreno

20 m²/un

30 m²/un

Coeficiente de aproveitamento máximo

4

4

Simulação

Para

Terreno

Hipotético

 

Área do terreno

1.000 m²

1.000 m²

Número mínimo de unidades habitacionais (para o caso hipotético)

50

33

Área máxima aproximada das unidades habitacionais

80 m² (=1000*4/50)

121 m² (=1000*4/33)

Fonte: CAEx (Centro de Apoio Operacional à Execução) – MP/SP

         Segundo o estimado, a cota de 20 m² por unidade habitacional em um terreno de 1.000 m², de acordo com o PDE/2014, indica a obrigatoriedade de ao menos 50 unidades habitacionais construídas com aproximadamente 80 m². Já a nova cota de construção da LPUOS/2016 permite que o número mínimo de unidades habitacionais seja 33, com uma área construída bem maior, cerca de 121 m², em evidente afronta ao Plano Diretor Estratégico (art. 79) e à Constituição do Estado de São Paulo (art. 181, caput).

         Destarte, aumentar o valor da cota parte máxima de terreno, ainda que por três anos, abre a possibilidade de ocupação dos eixos de transporte mediante um inadequado adensamento construtivo, com afronta direta ao Plano Diretor Estratégico no que se refere à pretensão de maior adensamento populacional, já que, em um terreno de mesma metragem, poderá ser construído um edifício com menos unidades habitacionais de maiores proporções.

         Não bastasse, a LPUOS/2016, em seu artigo 174, inciso II, também elevou o número de vagas de garagem permitidas nos Eixos de Estruturação Urbana, nos seus três primeiros anos de vigência. Enquanto o PDE/2014 previu que, nas áreas de influência dos eixos, somente pode ser considerada área não computável uma vaga de garagem por unidade habitacional para o uso residencial (art. 80, I, “a”), a LPUOS/2016 admitiu uma vaga a cada 60 m² de área construída computável na unidade (art. 174, II).

         Assim, no exemplo hipotético da Tabela 1, seriam admitidas duas vagas de garagem por unidade habitacional como área não computável, levando-se em conta a metragem da unidade, e não, uma vaga por unidade, como previsto no PDE/2014.

         Resta evidente que a possibilidade de aumento do número de vagas de garagem por unidade habitacional de uso residencial nos eixos de estruturação urbana, sem a obtenção de outorga onerosa, viola as diretrizes de ordenação do território nas zonas de estruturação urbana, por meio das quais o PDE/2014 pretende estimular o transporte público e desencorajar os empreendedores que, se quiserem construir mais vagas por unidade habitacional, terão que computá-las como área construída e pagar pelo direito de construir quando ultrapassado o coeficiente de aproveitamento máximo.

         Dessa forma, tanto em relação à cota parte máxima de terreno, quanto ao limite do número de vagas de garagem por unidade habitacional, o art. 174, incisos I e II, da Lei de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo violou frontalmente os parâmetros urbanísticos estabelecidos pelo Plano Diretor Estratégico de 2014 (arts. 79 e 80, III, “a”), em ofensa ao art. 181, caput, da Constituição Paulista.

3.2.         DO ARTIGO 89 DA LEI N° 16.402/16 DO MUNICÍPIO DE SÃO PAULO

O PDE/2014 direcionou a verticalização do Município, por meio de parâmetros de coeficiente de aproveitamento máximo (básico e máximo) e gabarito de altura máximo, definidos nos Quadros 2 e 2A da Lei.

Conforme previsto no artigo 374, § 2°, do PDE/2014, “a revisão da LPUOS poderá definir limites de gabarito, de número de pavimentos diferentes ao estabelecido nesta lei”.

Nesse sentido, o artigo 89, da LPUOS do Município de São Paulo, previu que, no caso das torres de edificações destinadas aos locais de culto, o gabarito de altura máxima poderá ser majorado em 50% (cinquenta por cento).

Ocorre que, referida flexibilização dos parâmetros urbanísticos previstos pelo Plano Diretor e pela LPUOS, com a majoração do gabarito de altura máxima, pautou-se unicamente no uso dado ao imóvel, qual seja a prática de cultos religiosos, independentemente de sua localização, o que não se mostra consentâneo com as diretrizes estabelecidas pelo PDE/2014, o qual define o gabarito de altura segundo o tipo de zona e seus objetivos e não pelo tipo de uso das edificações (art. 31, PDE).

Resta, assim, patente a violação ao artigo 181, caput, da Constituição do Estado de São Paulo.

Não bastasse a contrariedade à sistemática do PDE/2014, a ausência de fundamentação técnica para criação da malfadada exceção pelo art. 89 da LPUOS/2016 demostra que o legislador local visou beneficiar atividade plenamente identificável em detrimento do interesse público, em violação ao princípio da impessoalidade (art. 111, CE/89).

De efeito, olvidou-se o legislador que a lei não deve ser fonte de privilégios ou perseguições, mas instrumento regulador da vida social que necessita tratar equitativamente todos os cidadãos (Cf. Celso Antônio Bandeira de Mello, “Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade”, Malheiros, São Paulo, 1995, 3.ª ed., p. 10).

Em artigo sobre o princípio da igualdade, Fábio Konder Comparato anota que “a força desse princípio impõe-se não só ao aplicador da lei, na esfera administrativa ou judiciária, mas também ao próprio legislador. Em outras palavras, quando a Constituição consagra a igualdade, ela está proibindo implicitamente, quer a interpretação inigualitária das normas legais, quer a edição de leis que consagrem, de alguma forma, a desigualdade vedada. Ao lado, pois, de uma desigualdade perante a lei, pode haver uma desigualdade da própria lei, o que é muito mais grave.” (Cf. “Precisões sobre os conceitos de lei e de igualdade jurídica”, Editora Revista dos Tribunais, ano 87, v. 750, abril de 1998, pp. 11/19).

Esclarece o indigitado jurista que esse vício de inconstitucional desigualdade da própria lei pode ocorrer de duas formas. Haverá, de modo absoluto, uma infração ao princípio de igualdade, quando a lei for editada, explícita ou implicitamente, para regular um só caso individual. Diversamente, a desigualdade será relativa, quando a lei determinar, de modo arbitrário, a diferenciação ou a identificação de situações jurídicas, vale dizer, quando tratar desigualmente os iguais ou igualmente os desiguais (ob. e loc. cits.).

A propósito, recorda Celso Antônio Bandeira de Mello, que “a Administração tem que tratar todos os administrados sem discriminações, benéficas ou detrimentosas. Nem favoritismo nem perseguições são toleráveis (...) O princípio em causa não é senão o próprio princípio da igualdade ou isonomia” (Curso de direito administrativo, 12ª ed., 2ª tir., São Paulo, Malheiros, 2000, p.84).

Como salienta Hely Lopes Meirelles, tratando do zoneamento urbano, “normas edilícias devem evitar o quanto possível essas súbitas e freqüentes modificações de uso, que afetam instantaneamente a propriedade e as atividades particulares, gerando instabilidade no mercado imobiliário urbano e intranqüilidade na população citadina (...) O Município só deve impor ou alterar zoneamento quando essa medida for exigida pelo interesse público, com real vantagem para a cidade e seus habitantes” (Direito Municipal Brasileiro, cit., p.407).

No que se refere ao abrandamento das restrições urbanísticas de altura em relação às edificações destinadas às atividades religiosas previsto no artigo 89 da LPUOS/2016, a discriminação operada não possui justificação ponderável ou razoável.

A liberdade religiosa (CR., art. 5.º, VI) está assegurada constitucionalmente, na forma da lei, ou seja, na forma da legislação em vigor. Dessa maneira, devem sujeitar-se como qualquer outra atividade às restrições urbanísticas relativas às construções de edificações.

E a Constituição do Estado dispõe de modo expresso que “no estabelecimento de diretrizes e normas relativas ao desenvolvimento urbano, o Estado e os Municípios assegurarão, dentre outras coisas, a observância das normas urbanísticas, de segurança, higiene e qualidade de vida” (art. 180, inciso V). Afigura-se evidente que o dispositivo legal em discussão afronta também a referida norma constitucional (art. 180, V, da CE), a qual serve de parâmetro para a aferição de inconstitucionalidade.

Está patente, na situação em exame, que o dispositivo normativo impugnado foi acrescentado para satisfazer o interesse de grupos religiosos que desejam construir acima dos limites legais permitidos.

Também sob a ótica da razoabilidade o aludido dispositivo legal não subsiste.  A razoabilidade pressupõe a congruência lógica entre os motivos (pressupostos fáticos) e o ato emanado, tendo em vista a finalidade pública a cumprir. A bem da verdade, não existe nenhuma pertinência lógica entre a situação apresentada e a atuação concreta do Legislativo local, que impôs à Administração uma regra que visa apenas a satisfazer interesses de grupos religiosos. 

Dessa forma, o art. 89 da Lei de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo além de violar frontalmente os parâmetros urbanísticos estabelecidos pelo Plano Diretor Estratégico de 2014, afrontou os princípios da impessoalidade e razoabilidade, em ofensa aos artigos 111, 144, 180, V, e 181, caput, da Constituição Paulista.

4.     DO Pedido liminar

À saciedade demonstrado o fumus boni iuris, pela ponderabilidade do direito alegado, soma-se a ele o periculum in mora. A atual tessitura dos preceitos legais do Município de São Paulo apontados como violadores de princípios e regras da Constituição do Estado de São Paulo é sinal, de per si, para suspensão de sua eficácia até o julgamento final desta ação, de maneira a evitar a restrição inconstitucional de liberdades constitucionais.

Dessa forma, requer-se a concessão de medida liminar para suspensão da eficácia, até final e definitivo julgamento desta ação, dos artigos 89 e 174 presentes na Lei n° 16.402, de 22 de março de 2016, do Município de São Paulo.

5.     DO Pedido

Posto isso, requer-se o recebimento e o processamento da presente ação para que, ao final, seja julgada procedente para declarar a inconstitucionalidade dos artigos 89 e 174 presentes na Lei n° 16.402, de 22 de março de 2016, do Município de São Paulo.

Requer-se, ainda, sejam requisitadas informações à Câmara Municipal e ao Prefeito Municipal de São Paulo, bem como citado o Procurador-Geral do Estado, para se manifestar sobre os atos normativos impugnados, protestando por nova vista, posteriormente, para manifestação final.

Termos em que,

Aguarda-se deferimento.

 

São Paulo, 30 de novembro de 2016.

 

Gianpaolo Poggio Smanio

Procurador-Geral de Justiça

 

efsj/ts

 


Protocolado nº 101.520/2016

Assunto: Inconstitucionalidade dos artigos 89 e 174 da Lei n° 16.402, de 22 de março de 2016, do Município de São Paulo.

 

1.     Distribua-se a inicial da ação direta de inconstitucionalidade junto ao E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

2.     Oficie-se ao interessado, informando-lhe a propositura da ação, com cópia da petição inicial.

 

São Paulo, 30 de novembro de 2016.

 

 

 

Gianpaolo Poggio Smanio

Procurador-Geral de Justiça

 

efsj