Excelentíssimo
Senhor Doutor Desembargador Presidente do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado
de São Paulo
Protocolado nº 38.664/16
Constitucional. Administrativo. Ação
Direta Inconstitucionalidade. Arts. 10 a 34 do Decreto nº 4.882, de 20 de janeiro
de 2006, do Município de Atibaia, que dispõe sobre o Código de Conduta e
Disciplina dos Servidores Públicos Municipais do Poder Executivo de Atibaia,
alterado pelos Decretos 4.907/06, de 23 de fevereiro de 2006, 5.213, de 23 de
março de 2007 e 5.222, de 17 de abril de 2007, todos do Município de Atibaia. Ofensa
ao Princípio da reserva legal e à separação dos poderes. 1. A regulamentação de processo
disciplinar, bem como a imposição de sanções a servidores públicos e demais
responsabilidades, que se inserem dentro do regime jurídico de servidores
públicos, é matéria submetida à reserva legal (art. 24, § 2º, 4 e 111 da CE/89
e art. 5º, II, 37,
“caput” e 61, §
1º, II, letra “c” CF/88). 2. Decretos municipais que inovaram acerca dos temas, de forma autônoma,
genérica e abstrata, ao disporem sobre o Código de Conduta e Disciplina dos
servidores públicos municipais do Poder Executivo de Atibaia, em violação ao
princípio da separação dos poderes (art. 5º e 144 da CE/89).
O
Procurador-Geral
de Justiça do Estado de São Paulo, no exercício da atribuição
prevista no art. 116, VI, da Lei Complementar Estadual n. 734, de 26 de
novembro de 1993 (Lei Orgânica do Ministério Público do Estado de São Paulo),
em conformidade com o disposto no art. 125, § 2º, e no art. 129, IV, da
Constituição Federal, e, ainda, nos arts. 74, VI, e 90, III, da Constituição do
Estado de São Paulo, com amparo nas informações colhidas no incluso
protocolado, vem, respeitosamente, perante esse egrégio Tribunal de Justiça,
promover a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE
em face dos arts. 10 a
34 do Decreto nº 4.882, de 20 de janeiro de 2006,
alterados pelo Decreto
nº 4.907/06, de 23 de fevereiro de 2006; Decreto nº 5.213, de 23 de março de
2007 e Decreto nº 5.222, de 17 de abril de 2007, todos do Município de Atibaia pelos fundamentos a seguir expostos:
I – DOS AtoS NormativoS
ImpugnadoS
O Prefeito Municipal de Atibaia editou em 20 de janeiro de 2006 o Decreto nº 4.882, que “Dispõe sobre o Código de Conduta e Disciplina dos Servidores Públicos Municipais do Poder Executivo de Atibaia”, com o seguinte teor:
“(...)
Art. 1º - Fica instituído o Código
de Conduta e Disciplina dos Servidores Públicos do Poder Executivo de Atibaia.
Art. 2º - Este Decreto entra em vigor
na data de sua publicação.
Art. 3º - Revogam-se as disposições em contrário.
(...)
Código de Conduta e Disciplina dos Servidores Públicos Municipais do
Poder Executivo de Atibaia
(...)”
Posteriormente, foi editado o Decreto nº 4.907, de 23 de fevereiro de
2006, que acrescentou o inciso IV ao art. 29 do Decreto nº 4.882/06, com a
seguinte redação:
“Art.1º -
O art. 29 do
Código de Conduta e Disciplina dos Servidores Públicos Municipais do Poder
Executivo de Atibaia, instituído pelo Decreto nº
4.882, de 20 de janeiro de 2006, passa a vigorar acrescido do inciso
IV, com a seguinte redação:
“IV. Pelo Diretor
Superintendente, no caso das autarquias, ou conforme dispuser a regulamentação
interna das mesmas .”
(...)”.
Na sequência, o Decreto nº 5.213, de 23 de março de 2007, alterou
dispositivos do Código de Conduta e Disciplina dos Servidores Públicos
Municipais do Poder Executivo, instituído pelo Decreto nº 4.882/06, nos
seguintes termos:
“Art.1º - Os
dispositivos a seguir enumerados do Código de Conduta e Disciplina dos Servidores Públicos Municipais do
Poder Executivo de Atibaia, instituído pelo Decreto nº
4.882, de 20 de janeiro de 2006, passam a vigorar com a seguinte
redação:
“Art. 27 - Entende-se por
inassiduidade habitual a falta ao serviço, sem causa justificada, por 06 (seis)
dias consecutivos ou alternadamente, durante o período de 12 (doze) meses”.
...
“Art. 31 - A
chefia imediata que tiver conhecimento de infração funcional ao presente Código
de Conduta e Disciplina passível de punição com pena de advertência, conforme
previsão do art. 19 deste Decreto, deverá comunicar por escrito à Secretaria de
Recursos Humanos, a fim de que seja instaurado o competente processo
administrativo, a qual deverá notificar também por escrito o servidor da
infração a ele imputada, com prazo de 05 (cinco) dias para oferecimento de
defesa apresentando todas as provas que entender cabíveis.
§ 1º -
A defesa deverá ser feita por escrito e entregue contra recibo, juntando-se ao
procedimento administrativo próprio, o qual será objeto de análise e decisão
pela chefia que determinou a instauração.
§ 2º -
O não acolhimento da defesa ou sua não apresentação no prazo legal acarretará o
reconhecimento da conduta infracional funcional do servidor, com a aplicação de
advertência escrita, mediante ato fundamentado, observando-se a competência
prevista no inciso III, do art. 29 deste Código, devendo ser providenciada a
anotação no prontuário do servidor, da penalidade aplicada.
§ 3º-Do não acolhimento da defesa, caberá recurso, ao Prefeito
Municipal, ou ao Diretor-Superintendente no caso de Autarquias, no prazo de 05
(cinco) dias. (Redação dada
pela Decreto nº 5.222, de 17 de Abril de 2007)
Art. 32 – As
demais infrações ao presente Código de Conduta e Disciplina, bem como as
irregularidades no serviço público, salvo o disposto no artigo 31, serão
apuradas e punidas através de sindicância administrativa e processo
administrativo disciplinar, assegurada ao acusado ampla defesa.
Art. 33 - A
sindicância e o processo disciplinar serão conduzidos por Comissões Permanentes
compostas de 03 (três) Servidores Públicos estáveis e não ocupantes de cargos
de provimento em comissão, designados pelo Prefeito Municipal, para servir por
02 (dois) anos, permitida uma recondução que indicará entre eles o seu
presidente, o qual deverá ser bacharel em Direito e 01 (um) Servidor Público
como membro suplente.
§ 1º - Da
sindicância poderá resultar:
I -
Arquivamento do processo
II -
Instauração de processo disciplinar
§ 2º - O
processo disciplinar é o instrumento destinado a apurar responsabilidade de
Servidor Público por infração praticada no exercício de suas atribuições, ou
que tenha relação com as atribuições do cargo em que se encontre investido.
§ 3º-
Em se tratando de Autarquias, as comissões de sindicância e de processo
disciplinar obedecerão a regulamentação própria, inclusive quanto à designação,
composição e funcionamento. (Redação dada
pela Decreto nº 5.222, de 17 de Abril de 2007)
Art. 34 - Os
procedimentos de Sindicância e Processos Administrativos Disciplinares serão
regulamentados por Decreto do Executivo”.
(...)”
Por fim, o Decreto nº 5.222, de 17 de abril de 2007, mais uma vez alterou
a redação do mencionado Código de Conduta estabelecido pelo Decreto nº 4.882/06,
com a seguinte redação:
“Art.1º - Os
dispositivos a seguir enumerados do Código de Conduta e Disciplina dos
Servidores Públicos Municipais do Poder Executivo de Atibaia, instituído pelo Decreto nº
4.882, de 20 de janeiro de 2006 e
alterado pelos Decretos nº
4.907, de 23 de fevereiro de 2006 e nº 5.213, de
23 de março de 2007, passam
a vigorar com a seguinte redação:
“Art. 31 - ...
§ 1º -
...
§ 2º -
...
§ 3º -
Do não acolhimento da defesa, caberá recurso, ao Prefeito Municipal, ou ao
Diretor-Superintendente no caso de Autarquias, no prazo de 05 (cinco) dias.”
...
“Art. 33 - ...
§ 1º - ...
I -
...
II -
...
§ 2º - ..
§ 3º -
Em se tratando de Autarquias, as comissões de sindicância e de processo
disciplinar obedecerão a regulamentação própria, inclusive quanto à designação,
composição e funcionamento.”
(...)”
II – O parâmetro da
fiscalização abstrata de constitucionalidade
Os arts. 10 a 34 do Decreto nº 4.882, de 20 de janeiro de 2006, alterado pelo Decreto nº 4.907/06,
de 23 de fevereiro de 2006; Decreto nº 5.213, de 23 de março de 2007 e Decreto
nº 5.222, de 17 de abril de 2007, todos do Município de Atibaia, atentam
contra a Constituição do Estado de São
Paulo, à qual está subordinada a produção normativa municipal ante a previsão
dos arts. 1º, 18, 29 e 31 da Constituição Federal.
Os dispositivos legais ora impugnados são incompatíveis com os seguintes preceitos da Constituição Estadual, aplicáveis aos Municípios por força de seu art. 144:
“Artigo 5º - São Poderes do Estado, independentes e
harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.
(...)
Artigo 24 - A iniciativa das leis complementares e ordinárias
cabe a qualquer membro ou comissão da Assembléia Legislativa, ao Governador do
Estado, ao Tribunal de Justiça, ao Procurador-Geral de Justiça e aos cidadãos,
na forma e nos casos previstos nesta Constituição.
(...)
§2º - Compete, exclusivamente, ao Governador do Estado a
iniciativa das leis que disponham sobre:
(...)
4 - servidores públicos do Estado, seu regime jurídico,
provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria;
(...)
Artigo 111 - A administração pública direta, indireta ou
fundacional, de qualquer dos Poderes do Estado, obedecerá aos princípios de
legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, razoabilidade, finalidade,
motivação, interesse público e eficiência.
(...)”
Com efeito, as disposições impugnadas violam a reserva legal imposta constitucionalmente para veiculação de matéria que envolva regime jurídico de servidores públicos.
III – DA NATUREZA DOS DISPOSITIVOS NORMATIVOS IMPUGNADOS – VEICULAÇÃO
MEDIANTE DECRETOS AUTÔNOMOS
Antes de adentrar a análise das violações constitucionais promovidas pelos atos normativos impugnados, é necessária breve análise de sua natureza jurídica, a ensejar a instauração do contencioso direto de inconstitucionalidade.
Os dispositivos objurgados ostentam evidente autonomia, generalidade e abstração, com introdução de novidade normativa no ordenamento jurídico municipal, não sendo o caso de mera crise de legalidade, na qual o decreto, editado com o fim de regulamentar determinada lei, ultrapassa os limites estabelecidos no diploma anterior.
No caso em apreço, os atos normativos constituem verdadeiros decretos autônomos, que desafiam o controle concentrado por meio de Ação Direta de Inconstitucionalidade. Neste sentido:
“EMENTA – Ação direta de inconstitucionalidade. Pedido de
limiar. Decreto nº 409, de 30.12.91.
- Esta Corte, excepcionalmente, tem admitido ação direta de
inconstitucionalidade cujo objeto seja decreto, quando este, no todo ou em
parte, manifestamente não regulamenta lei, apresentando-se, assim, como decreto
autônomo, o que dá margem a que seja ele examinado em face diretamente da
Constituição, no que diz respeito ao princípio da reserva legal (...)” (STF,
ADI nº 708-4, Rel. Sydney Sanches, j. 22.05.1992);
“EMENTA: 1. INCONSTITUCIONALIDADE. Ação direta. Objeto.
Admissibilidade. Impugnação de decreto autônomo, que institui benefícios
fiscais. Caráter não meramente
regulamentar. Introdução de novidade normativa. Preliminar repelida.
Precedentes. Decreto que, não se
limitando a regulamentar lei, institua benefício fiscal ou introduza outra
novidade normativa, reputa-se autônomo e, como tal, é suscetível de controle
concentrado de constitucionalidade. 2. INCONSTITUCIONALIDADE. Ação direta.
Decreto nº 27.427/00, do Estado do Rio de Janeiro. Tributo. Imposto sobre
Circulação de Mercadorias e Serviços – ICMS. Benefícios fiscais. Redução de
alíquota e concessão de crédito presumido, por Estado-membro, mediante decreto.
Inexistência de suporte em convênio celebrado no âmbito do CONFAZ, nos termos
da LC 24/75. Expressão da chamada “guerra fiscal”. Inadmissibilidade. Ofensa
aos arts. 150, § 6º, 152 e 155, § 2º, inc. XII, letra “g”, da CF. Ação julgada
procedente. Precedentes. Não pode o Estado-membro conceder isenção, incentivo
ou benefício fiscal, relativos ao Imposto sobre Circulação de Mercadorias e
Serviços – ICMS, de modo unilateral, mediante decreto ou outro ato normativo,
sem prévia celebração de convênio intergovernamental no âmbito do CONFAZ” (ADI
n. 3664-RJ, Rel. Min. Cézar Peluso, Tribunal Pleno, Dje 21.09.2011)
Neste contexto, os atos normativos vergastados, ao inovarem na disciplina concernente a processamento, penalidades e responsabilidades de servidores públicos municipais, assumem caráter autônomo, passíveis de objeto de controle concentrado de constitucionalidade, por ofensa à reserva legal.
Sobre a temática, assevera VICENTE RÁO que “Ao exercer a função de regulamentar, não deve pois, o Executivo criar direitos ou obrigações novas, que a lei não criou; ampliar, restringir ou modificar direitos ou obrigações constantes da lei; ordenar ou proibir o que a lei não ordena ou não proíbe, facultar ou vedar de modo diverso do estabelecido em lei, extinguir ou anular direitos ou obrigações que a lei conferiu, criar princípios novos, diversos, alterar a forma que, segundo a lei, deve revestir um ato, atingir, atingindo por qualquer modo, o espírito da lei” (‘O Direito e a Vida dos Direitos’, v. 1, RT, 3ª edição, p.273).
No esteio da lição perfilada pelo ilustre jurista pátrio escreve MARCELLO CAETANO, para quem “(...) em sentido material o regulamento tem afinidades com a lei, em virtude de sua generalidade, pois os regulamentos possuem sempre caráter genérico. Mas distingue-se dela por faltar novidade, visto suas normas serem, pelo que toca a limitação de direitos individuais, simples desenvolvimento ou aplicação de outras normas, essas inovadoras” (Manual de Direito Administrativo, Almedina, Coimbra, vol.1, p.97, 1990).
Outra não é a lição de J.J. GOMES CANOTILHO (Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p.809 e ss, Almedina, 4ª ed.), verbis: “(...) para restringir o amplo grau de liberdade de conformação normativa da administração, pouco compatível com um Estado de direito democrático, a CRP utilizou três instrumentos: (l) a reserva de lei (= reserva constitucional de lei = reserva horizontal de lei = reserva formal de lei) através da qual a Constituição reserva à lei a regulamentação de certas matérias; (2) congelamento do grau hierárquico, dado que, de acordo com este princípio, regulada por lei uma determinada matéria, o grau hierárquico da mesma fica congelado e só uma outra lei poderá incidir sobre o mesmo objecto (cfr. art. 112.°/6); (3) precedência da lei ou primariedade da lei (= reserva vertical de lei), pois não existe exercício de poder regulamentar sem fundamento numa lei prévia anterior (art. 112.°/8)”.
Ademais, como decorrência, prossegue o autor lusitano lembrando o “(...) princípio da complementaridade ou acessoriedade dos regulamentos. O regulamento é sempre um acto normativo da administração sujeito a lei, complementar da lei. O sentido da complementaridade dos regulamentos não é o de a CRP (cfr. art. 199) legitimar apenas os regulamentos de execução (regulamentos necessários para as leis serem convenientemente executadas e que a administração deve editar por iniciativa própria). Abrangem-se também os regulamentos complementares (...) Ademais, existe também no ordenamento o princípio do congelamento do grau hierárquico. Quando uma matéria tiver sido regulada por acto legislativo, o grau jurídico desta regulamentação fica congelado, e só um outro acto legislativo poderá incidir sobre a mesma matéria, interpretando, alterando, revogando ou integrando a lei anterior. Os princípios da tipicidade e da preeminência da lei justificam logicamente o princípio do congelamento do grau hierárquico: uma norma legislativa nova, substitutiva, modificativa ou revogatória de outra, deve uma hierarquia normativa pelo menos igual à da norma que se pretende alterar, revogar, modificar ou substituir.”
KONRAD HESSE, de modo escorreito ('Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha', Sergio Antonio Fabris ed., p. 386, 1998, Porto Alegre), possui lição idêntica. Vejamos:
"O conhecimento da função da legislação no quadro da
ordem democrática e estatal-jurídica da Lei Fundamental deixa, mesmo tempo,
aparecer mais claramente as bases e o significado dos institutos da primazia e
da reserva da lei. A lei tem, segundo o artigo 20 da Lei Fundamental, primazia
sobre todos os atos estatais restantes, porque ela se realizou sobre a base da
legitimação democrática direta e em formas democráticas de formação de vontade
política e porque sua primazia é pressuposto de seu efeito racionalizador
assegurador da liberdade. A reserva (geral) da lei é uma reserva da decisão de
questões fundamentais acessíveis a uma normalização no procedimento legislativo
pelo legislador."
Não por acaso, PAOLO BARILE chama os regulamentos de normação sub-primária, sendo a lei a norma primária por excelência ('Istituzioni Di Diritto Pubblico', p. 402, 1998, 8.ª ed., CEDAM). E classifica de 'maior' o indirizzo político advindo da lei e de 'menor' o indirizzo político advindo da função administrativa.
Neste mesmo sentido a lição de CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO para quem se exige “lei para que o Poder Público possa impor obrigações aos administrados. É que a Constituição brasileira, seguindo tradição já antiga, firmada por suas antecedentes republicanas, não quis tolerar o Executivo, valendo-se de regulamento, pudesse, por si mesmo, interferir com a liberdade ou a propriedade das pessoas. (...) Nisto se revela a função regulamentar, no Brasil, cinge-se exclusivamente à produção destes atos normativos que sejam requeridos para “fiel execução” da lei. Ou seja: entre nós, então, como se disse, não há lugar senão para os regulamentos que a doutrina estrangeira designa como “executivos” (Curso de Direito Administrativo, p. 338/339, 25 ed., Malheiros, 2007).
Neste sentido, aliás, enuncia a jurisprudência que:
“o princípio da reserva de lei atua como expressiva limitação
constitucional ao poder do Estado, cuja competência regulamentar, por tal
razão, não se reveste de suficiente idoneidade jurídica que lhe permita
restringir direitos ou criar obrigações. Nenhum ato regulamentar pode criar
obrigações ou restringir direitos, sob pena de incidir em domínio
constitucionalmente reservado ao âmbito de atuação material da lei em sentido
formal” (STF, AgR-QO-AC 1.033-DF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello,
25-05-2006, v.u., DJ 16-06-2006, p. 04).
Colocadas essas premissas, passemos à análise das
violações aos dispositivos da Constituição Bandeirante.
IV – DA OFENSA AO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE ESTRITA –
NECESSIDADE DE LEI EM SENTIDO FORMAL PARA A DISCIPLINA DE REGIME JURÍDICO DE
SERVIDORES
Os preceitos da Constituição do Estado são aplicáveis aos Municípios por força de seu art. 144, que assim estabelece:
“Artigo 144 - Os Municípios, com autonomia política,
legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica,
atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta
Constituição”.
O art. 144 da Constituição Estadual, que determina a observância na esfera municipal, além das regras da Constituição Estadual, dos princípios da Constituição Federal, é denominado “norma estadual de caráter remissivo, na medida em que, para a disciplina dos limites da autonomia municipal, remete para as disposições constantes da Constituição Federal”, como averbou o Supremo Tribunal Federal ao credenciar o controle concentrado de constitucionalidade de lei municipal por esse ângulo” (STF, Rcl 10.406-GO, Rel. Min. Gilmar Mendes, 31-08-2010, DJe 06-09-2010; STF, Rcl 10.500-SP, Rel. Min. Celso de Mello, 18-10-2010, DJe 26-10-2010).
Daí decorre a possibilidade de contraste dos atos normativos impugnados com o art. 144 da Constituição Estadual, por sua remissão à Constituição Federal, se a tanto não bastasse como parâmetro, nesta ação, os arts. arts. 5º, 24, § 2º, 4 e 111 da Constituição Estadual.
A autonomia municipal é condicionada pelo art. 29 da Constituição da República. O preceito estabelece que a Lei Orgânica Municipal e sua legislação devem observância ao disposto na Constituição Federal e na respectiva Constituição Estadual, sendo reproduzido pelo art. 144 da Constituição do Estado.
Eventual ressalva à
aplicabilidade das Constituições Federal e Estadual só teria, ad argumentandum tantum, espaço naquilo
que a própria Constituição da República reservou como privativo do Município,
não podendo alcançar matéria não inserida nessa reserva nem em assunto sujeito
aos parâmetros limitadores da auto-organização municipal ou aqueles que contém
remissão expressa ao direito estadual.
Pois bem.
Os dispositivos contidos nos decretos executivos ora
impugnados mantêm incompatibilidade vertical com o princípio da legalidade –
porque a reserva legal exige lei em sentido formal para a disciplina de regime
jurídico (art. 24, § 2º, 4, CE/89 e art. 61, § 1º, II, “c”, CF/88) – e o seu
tratamento por decreto implica de per si
invasão e delegação do espaço reservado à lei e, em ultima ratio, violação contundente à cláusula da separação de
poderes (art. 5º, CE/89).
Ponto elementar relacionado à disciplina de regras
relativas a regime jurídico de servidores é a necessidade de a lei específica –
no sentido de reserva legal ou de lei em sentido formal, ou, ainda, de
princípio da legalidade absoluta ou restrita, como ato normativo produzido no
Poder Legislativo mediante o competente e respectivo processo – estabelecer
regras relativas a responsabilidades, penalidades, sindicâncias e
processo disciplinar.
Nem se alegue que ao Chefe do Poder Executivo remanesce
competência para organizar a administração, sob pena de convalidar a invasão de
matéria sujeita exclusivamente à reserva legal.
A possibilidade de regulamento autônomo para
disciplina da organização administrativa não significa a outorga de competência
para o Chefe do Poder Executivo fixar regras relativas a responsabilidades,
penalidades, sindicâncias e processo disciplinar.
A alegação cede à vista do art. 61, § 1°, II, c, da
Constituição Federal, e do art. 24, § 2º, 4, que, em coro, exigem lei em
sentido formal.
Regulamento administrativo (ou de organização) contém
normas sobre a organização administrativa, isto é, a disciplina do modo de
prestação do serviço e das relações intercorrentes entre órgãos, entidades e
agentes, e de seu funcionamento, sendo-lhe vedado criar cargos públicos,
somente extingui-los desde que vagos (arts. 48, X, 61, § 1°, II, a, 84, VI, b,
Constituição Federal; art. 47, XIX, a, Constituição Estadual) ou para os fins
de contenção de despesas (art. 169, § 4°, Constituição). Bem explica Celso
Antonio Bandeira de Mello que o regulamento previsto no art. 84, VI, a, da
Constituição, é:
“(...) mera competência para um arranjo intestino dos órgãos e
competências já criadas por lei’, como a transferência de departamentos e
divisões, por exemplo (Celso Antonio Bandeira de Mello. Curso de Direito Administrativo, São Paulo: Malheiros, 2006, 21ª
ed., pp. 324-325).
Neste sentido, pronuncia o Supremo Tribunal Federal:
“RECURSO
EXTRAORDINÁRIO. PODER EXECUTIVO. COMPETÊNCIA LEGISLATIVA. ORGANIZAÇÃO DA ADMINISTRAÇÃO
PÚBLICA. DECRETOS 26.118/05 E 25.975/05. REESTRUTURAÇÃO DE AUTARQUIA E CRIAÇÃO
DE CARGOS. REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA. INOCORRENTE OFENSA À CONSTITUIÇÃO
FEDERAL. RECURSO DESPROVIDO. I - A Constituição da República não oferece
guarida à possibilidade de o Governador do Distrito Federal criar cargos e
reestruturar órgãos públicos por meio de simples decreto. II - Mantida a
decisão do Tribunal a quo, que, fundado em dispositivos da Lei Orgânica do DF,
entendeu violado, na espécie, o princípio da reserva legal. III - Recurso
Extraordinário desprovido” (STF, RE 577.025-DF, Tribunal Pleno, Rel. Min.
Ricardo Lewandowski, 11-12-2008, v.u., DJe 0-03-2009).
“1. AÇÃO DIRETA DE
INCONSTITUCIONALIDADE. Condição. Objeto. Decreto que cria cargos públicos
remunerados e estabelece as respectivas denominações, competências e
remunerações. Execução de lei inconstitucional. Caráter residual de decreto
autônomo. Possibilidade jurídica do pedido. Precedentes. É admissível controle
concentrado de constitucionalidade de decreto que, dando execução a lei
inconstitucional, crie cargos públicos remunerados e estabeleça as respectivas
denominações, competências, atribuições e remunerações. 2.
INCONSTITUCIONALIDADE. Ação direta. Art. 5° da Lei n° 1.124/2000, do Estado do
Tocantins. Administração pública. Criação de cargos e funções. Fixação de
atribuições e remuneração dos servidores. Efeitos jurídicos delegados a
decretos do Chefe do Executivo. Aumento de despesas. Inadmissibilidade.
Necessidade de lei em sentido formal, de iniciativa privativa daquele. Ofensa
aos arts. 61, § 1°, inc. II, ‘a’, e 84, inc. VI, ‘a’, da CF. Precedentes. Ações
julgadas procedentes. São inconstitucionais a lei que autorize o Chefe do Poder
Executivo a dispor, mediante decreto, sobre criação de cargos públicos
remunerados, bem como os decretos que lhe dêem execução” (STF, ADI 3.232-TO,
Tribunal Pleno, Rel. Min. Cezar Peluso, 14-08-2008, v.u., DJe 02-10-2008).
Desse modo, os decretos
impugnados ignoraram a reserva legal estabelecida no art. art. 24, § 2º, 4 da
Carta Bandeirante, aplicáveis aos Municípios por força de seu art. 144.
Ao estabelecerem regras relativas a processamento, aplicação de penalidades e responsabilidades a servidor público municipal, sem que houvesse, para tanto, lei municipal anterior lhe conferindo respaldo, os dispositivos impugnados cuidaram do regime jurídico dos servidores públicos, matéria que é da iniciativa legislativa reservada ao Chefe do Poder Executivo (arts. 5º e 24, § 2º, 4, Constituição Estadual), sendo interditado seu tratamento por decreto.
Ainda que a iniciativa seja privativa do chefe do Poder Executivo, é indispensável lei formal, a ser votada, portanto, pela Câmara Municipal.
O que se constata é que se substituiu a lei exigida pelo art. 24, § 2º, 4 da Constituição Estadual por simples decretos. Em última análise, desprezou-se a atuação do poder competente para disciplinar a matéria, ou seja, o Legislativo, com sanção do Chefe do Poder Executivo, em manifesta afronta ao princípio da separação dos poderes.
Repita-se, mais uma vez, que
não há previsão de competência do Prefeito Municipal para, em decreto autônomo,
fixar normas sobre regime jurídico de servidor público, o que também acaba por violar
o princípio da legalidade contido nos arts. 5º, II, e 37 da Constituição
Federal, reproduzidos na Carta Bandeirante em seu art. 111.
IV - PEDIDO LIMINAR
Presentes os pressupostos do fumus boni iuris e do periculum in mora, bastantes para autorizar a suspensão liminar da vigência e eficácia dos preceitos normativos impugnados.
A aparência do bom direito se mostra inquestionável pela apreciação de todos os motivos acima elencados, a demonstrar a inconstitucionalidade dos arts. 10 a 34 do decreto municipal examinado.
O perigo da demora decorre da periclitação à segurança jurídica, pois, o resultado das atividades dos órgãos incumbidos de sua efetivação gera efeito a servidores públicos da municipalidade, que podem sofrer sanções drásticas, inclusive com a pena demissão, e tem a perspectiva de sua anulação por conta da inconstitucionalidade apontada, gerando estado de incerteza e instabilidade acerca dos efeitos decorrentes.
Diante do exposto, requer-se a concessão da liminar,
para fins de suspensão imediata da eficácia dos arts. 10 a 34 do Decreto nº
4.882, de 20 de janeiro de 2006, alterado
pelo Decreto nº 4.907/06, de 23 de fevereiro de 2006; Decreto nº 5.213,
de 23 de março de 2007 e Decreto nº 5.222, de 17 de abril de 2007, todos do
Município de Atibaia.
IV – PEDIDO
Diante do exposto, requer-se o
recebimento e processamento da presente ação, para que ao final seja julgada
procedente, declarando a inconstitucionalidade dos arts. 10 a 34 do Decreto nº 4.882, de 20 de
janeiro de 2006, alterado pelo Decreto
nº 4.907/06, de 23 de fevereiro de 2006; Decreto nº 5.213, de 23 de março de
2007 e Decreto nº 5.222, de 17 de abril de 2007, todos do Município de Atibaia.
Requer-se, ainda, sejam requisitadas informações ao Prefeito Municipal de Atibaia, bem como, em seguida, citado o Procurador-Geral do Estado para manifestar-se sobre os atos normativos impugnados, aguardando-se, posteriormente, vista para fins de manifestação final.
Termos em que, pede deferimento.
São Paulo, 09 de dezembro de 2016.
Gianpaolo
Poggio Smanio
Procurador-Geral
de Justiça
blo
Protocolado
n. 38.664/16
Assunto: análise da inconstitucionalidade do Decreto nº 4.882, de 20 de janeiro de 2006, do Município de Atibaia.
Interessado: Associação dos Advogados de Atibaia
1.
Distribua-se a petição inicial da ação direta de
inconstitucionalidade, em face dos arts. 10 a 34 do Decreto nº 4.882, de 20 de
janeiro de 2006, do Município de Atibaia,
alterados pelo Decreto nº 4.907/06, de 23 de fevereiro de 2006; Decreto
nº 5.213, de 23 de março de 2007 e Decreto nº 5.222, de 17 de abril de 2007,
todos do Município de Atibaia, junto ao Egrégio Tribunal de Justiça do Estado
de São Paulo.
2.
Oficie-se ao interessado, informando-lhe a propositura da
ação, com cópia da petição inicial.
São Paulo, 09 de dezembro de 2016.
Gianpaolo
Poggio Smanio
Procurador-Geral
de Justiça
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