Excelentíssimo
Senhor Doutor Desembargador Presidente do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado
de São Paulo
Protocolado n. 121.756/2016
Ementa: Constitucional. Administrativo. Ação Direta
Inconstitucionalidade. lei n° 3.213, de 18 de novembro de 2015, do Município de
Santos, que “Dispõe sobre a proibição do uso de carros particulares cadastrados
em aplicativos para o transporte remunerado individual de pessoas no Município
de Santos, e dá outras providências”. 1. Lei municipal que, ao proibir a prestação de serviço
de transporte privado individual de passageiros, contratado por meio de
aplicativos, acabou por invadir a esfera de competência legislativa privativa
da União. 2. Restrição ao serviço de transporte privado de passageiros e
à disponibilização de aplicativos para tais serviços que implica ofensa à livre
iniciativa e concorrência, além de contrariar interesse dos consumidores. 3.
Ofensa ao artigo 144 da CE/89 (artigos 1º, IV, 22, IX e 170, IX e V, da CF/88).
O Procurador-Geral de Justiça do Estado de São
Paulo, no exercício da atribuição prevista no art. 116, VI, da Lei
Complementar Estadual n. 734, de 26 de novembro de 1993 (Lei Orgânica do
Ministério Público do Estado de São Paulo), em conformidade com o disposto no
art. 125, § 2º, e no art. 129, IV, da Constituição Federal, e, ainda, nos arts.
74, VI, e 90, III, da Constituição do Estado de São Paulo, com amparo nas
informações colhidas no incluso protocolado (Pt. n. 121.756/16), vem,
respeitosamente, perante esse Egrégio Tribunal de Justiça, promover a presente AÇÃO
DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE em face da Lei n° 3.213, de 18 de
novembro de 2015, do Município de Santos, pelos fundamentos a seguir expostos:
I – O Ato Normativo Impugnado
A Lei n° 3.213, de 18 de novembro de 2015, do Município de Santos, ora impugnada, possui a seguinte redação, verbis:
“(...)
Art. 1º. Fica proibido no âmbito
da Cidade de Santos o transporte remunerado de pessoas em veículos particulares
cadastrados através de aplicativos para locais pré-estabelecidos.
Art. 2º. Para efeitos desta lei,
fica também proibida a associação entre empresas administradoras desses
aplicativos e estabelecimentos comerciais para o transporte remunerado de
passageiros em veículos não autorizados pelo Poder Público Municipal.
Art. 3º. A infração ao disposto
nesta lei acarretará ao condutor e aos estabelecimentos multa no valor de R$
1.500,00 (um mil e quinhentos reais), apreensão do veículo e demais sanções
cabíveis.
Parágrafo único – O valor da multa de que trata o caput deste artigo
será atualizado anualmente pela variação do Índice de Preços ao Consumidor
Amplo – IPCA, apurado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística –
IBGE.
Art. 4º. Esta lei entra em vigor
na data da publicação.
(...)”
II – O parâmetro da fiscalização abstrata de constitucionalidade
A Lei n° 3.213, de 18 de novembro de 2015,
do Município de Santos, ao proibir o uso de carros particulares cadastrados em
aplicativos para o transporte remunerado individual de pessoas no Município de
Santos, fere a Constituição do Estado
de São Paulo, à qual está subordinada a produção normativa municipal ante a
previsão dos arts. 1º, 18, 29 e 31 da Constituição Federal.
Com efeito,
referido ato normativo municipal é incompatível com o artigo 144 da
Constituição Paulista, o qual dispõe que, verbis:
“Artigo 144 – Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto- organizarão por Lei Orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição”.
Ao condicionar a autonomia dos
Municípios à observância dos princípios previstos em seu bojo e na Constituição
Federal de 1.988 (CF/88), o artigo 144 da Constituição Estadual possui caráter
de norma remissiva, reproduzindo, aliás, o caput
do art. 29 da Carta Magna.
Assim, a incompatibilidade vertical
arguida se dá em face de norma remissiva da Constituição Estadual, não havendo
espaço para se cogitar de contraste direto da lei municipal com a Constituição
Federal.
Vale ressaltar que a parametricidade
das normas constitucionais estaduais de caráter remissivo, para fins de
controle concentrado de constitucionalidade de leis ou atos normativos
estaduais ou municipais perante o Tribunal de Justiça local (art. 125, § 2°,
CF/88), constitui questão amplamente discutida e pacificada no E. Supremo
Tribunal Federal, conforme decisões abaixo colacionadas:
“RECLAMAÇÃO - FUNÇÃO CONSTITUCIONAL DO INSTRUMENTO RECLAMATÓRIO (RTJ 134/1033 - RTJ 166/785) - COMPETÊNCIA DOS TRIBUNAIS DE JUSTIÇA PARA EXERCER O CONTROLE ABSTRATO DE CONSTITUCIONALIDADE DE LEIS E ATOS NORMATIVOS ESTADUAIS E/OU MUNICIPAIS CONTESTADOS EM FACE DA CONSTITUIÇÃO ESTADUAL - A “REPRESENTAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE” NO ÂMBITO DOS ESTADOS-MEMBROS (CF, ART. 125, § 2º) - A QUESTÃO DA PARAMETRICIDADE DAS CLÁUSULAS CONSTITUCIONAIS ESTADUAIS, DE CARÁTER REMISSIVO, PARA FINS DE CONTROLE CONCENTRADO DE LEIS E ATOS NORMATIVOS ESTADUAIS E/OU MUNICIPAIS CONTESTADOS, PERANTE O TRIBUNAL DE JUSTIÇA LOCAL, EM FACE DA CONSTITUIÇÃO ESTADUAL - DOUTRINA - PRECEDENTES - RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO. - O único instrumento jurídico revestido de parametricidade, para efeito de fiscalização concentrada de constitucionalidade de lei ou de atos normativos estaduais e/ou municipais, é, tão-somente, a Constituição do próprio Estado-membro (CF, art. 125, § 2º), que se qualifica, para esse fim, como pauta de referência ou paradigma de confronto, mesmo nos casos em que a Carta Estadual haja formalmente incorporado, ao seu texto, normas constitucionais federais que se impõem à observância compulsória das unidades federadas. Doutrina. Precedentes. - Revela-se legítimo invocar, como referência paradigmática, para efeito de controle abstrato de constitucionalidade de leis ou atos normativos estaduais e/ou municipais, cláusula de caráter remissivo, que, inscrita na Constituição Estadual, remete, diretamente, às regras normativas constantes da própria Constituição Federal, assim incorporando-as, formalmente, mediante referida técnica de remissão, ao plano do ordenamento constitucional do Estado-membro. - Com a técnica de remissão normativa, o Estado-membro confere parametricidade às normas, que, embora constantes da Constituição Federal, passam a compor, formalmente, em razão da expressa referência a elas feita, o “corpus” constitucional dessa unidade política da Federação, o que torna possível erigir-se, como parâmetro de confronto, para os fins a que se refere o art. 125, § 2º da Constituição da República, a própria norma constitucional estadual de conteúdo remissivo. Doutrina. Precedentes.” (STF; Pleno; AgR Recl. 10.500/SP; Min. Rel. Celso de Mello; D.J. 26/10/2010). g.n.
“Agravo regimental em reclamação constitucional. 2. Competência dos tribunais de justiça estaduais para exercer controle abstrato de constitucionalidade de leis ou atos normativos estaduais ou municipais contestados em face de constituição estadual. 3. Legitimidade da invocação, como referência paradigmática para controle concentrado de constitucionalidade de leis ou atos normativos municipais/estaduais, de cláusula de caráter remissivo que, inscrita na Constituição estadual, remete a norma constante da própria Constituição Federal, incorporando-a, formalmente, ao ordenamento constitucional do Estado-membro. 4. Invocação de paradigma. Reclamação 7.396. Processo de caráter subjetivo. Efeitos restritos às partes. 5. Agravo regimental a que se nega provimento.” (STF; 2ª Turma; AgR Recl. 10406/GO; Min. Rel. Gilmar Mendes; D.J. 26/08/2014). g.n.
Dessa maneira,
conforme entendimento esposado pelo E. STF, não há usurpação da competência da
Corte Constitucional Federal quando os Tribunais de Justiça locais, no
exercício de sua competência prevista no art. 125, §2° da CF/88, verificam a
compatibilidade de leis municipais com normas constitucionais estaduais que
fazem remissão às disposições da Carta Magna de 1988.
III- DA
INVASÃO DA COMPETÊNCIA LEGISLATIVA PRIVATIVA DA UNIÃO
Em relação à
competência para legislar acerca de transporte e mobilidade urbana a
Constituição Federal assim prevê:
(...)
XX - instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano, inclusive habitação, saneamento básico e transportes urbanos;
(...)
Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:
IX - diretrizes da política nacional de transportes;
(...)
Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.”
A fim de
regulamentar os citados dispositivos constitucionais foi editada a Lei Federal
n. 12.587/2012, a qual instituiu a Política Nacional de Mobilidade Urbana:
“Art. 1o A Política Nacional de Mobilidade Urbana é instrumento da política de desenvolvimento urbano de que tratam o inciso XX do art. 21 e o art. 182 da Constituição Federal, objetivando a integração entre os diferentes modos de transporte e a melhoria da acessibilidade e mobilidade das pessoas e cargas no território do Município.
Parágrafo único. A Política Nacional a que se refere o caput deve atender ao previsto no inciso VII do art. 2o e no § 2o do art. 40 da Lei no 10.257, de 10 de julho de 2001 (Estatuto da Cidade).
Art. 2o A Política Nacional de Mobilidade Urbana tem por objetivo contribuir para o acesso universal à cidade, o fomento e a concretização das condições que contribuam para a efetivação dos princípios, objetivos e diretrizes da política de desenvolvimento urbano, por meio do planejamento e da gestão democrática do Sistema Nacional de Mobilidade Urbana.
Art. 3o O Sistema Nacional de Mobilidade Urbana é o conjunto organizado e coordenado dos modos de transporte, de serviços e de infraestruturas que garante os deslocamentos de pessoas e cargas no território do Município.
§ 1o São modos de transporte urbano:
I - motorizados; e
II - não motorizados.
§ 2o Os serviços de transporte urbano são classificados:
I - quanto ao objeto:
a) de passageiros;
b) de cargas;
II - quanto à característica do serviço:
a) coletivo;
b) individual;
III - quanto à natureza do serviço:
a) público;
b) privado.
(...)
Seção I
Das Definições
Art. 4o Para os fins desta Lei, considera-se:
I - transporte urbano: conjunto dos modos e serviços de transporte público e privado utilizados para o deslocamento de pessoas e cargas nas cidades integrantes da Política Nacional de Mobilidade Urbana;
II - mobilidade urbana: condição em que se realizam os deslocamentos de pessoas e cargas no espaço urbano;
III - acessibilidade: facilidade disponibilizada às pessoas que possibilite a todos autonomia nos deslocamentos desejados, respeitando-se a legislação em vigor;
IV - modos de transporte motorizado: modalidades que se utilizam de veículos automotores;
V - modos de transporte não motorizado: modalidades que se utilizam do esforço humano ou tração animal;
VI - transporte público coletivo: serviço público de transporte de passageiros acessível a toda a população mediante pagamento individualizado, com itinerários e preços fixados pelo poder público;
VII - transporte privado coletivo: serviço de transporte de passageiros não aberto ao público para a realização de viagens com características operacionais exclusivas para cada linha e demanda;
VIII - transporte público individual: serviço remunerado de transporte de passageiros aberto ao público, por intermédio de veículos de aluguel, para a realização de viagens individualizadas;
IX - transporte urbano de cargas: serviço de transporte de bens, animais ou mercadorias;
X - transporte motorizado privado: meio motorizado de transporte de passageiros utilizado para a realização de viagens individualizadas por intermédio de veículos particulares;
XI - transporte público coletivo intermunicipal de caráter urbano: serviço de transporte público coletivo entre Municípios que tenham contiguidade nos seus perímetros urbanos;
XII - transporte público coletivo interestadual de caráter urbano: serviço de transporte público coletivo entre Municípios de diferentes Estados que mantenham contiguidade nos seus perímetros urbanos; e
XIII - transporte público coletivo internacional de caráter urbano: serviço de transporte coletivo entre Municípios localizados em regiões de fronteira cujas cidades são definidas como cidades gêmeas.
(...)
Art. 12. Os serviços de utilidade pública de transporte individual de passageiros deverão ser organizados, disciplinados e fiscalizados pelo poder público municipal, com base nos requisitos mínimos de segurança, de conforto, de higiene, de qualidade dos serviços e de fixação prévia dos valores máximos das tarifas a serem cobradas. (Redação dada pela Lei nº 12.865, de 2013)
Art. 12-A. O direito à exploração de serviços de táxi poderá ser outorgado a qualquer interessado que satisfaça os requisitos exigidos pelo poder público local. (Incluído pela Lei nº 12.865, de 2013)
O legislador
federal, a quem compete fixar as diretrizes da política nacional de transportes
(artigo 22, IX, da CF), estabeleceu que o “Sistema Nacional de Mobilidade
Urbana é o conjunto organizado e coordenado dos modos de transporte, de
serviços e de infraestruturas que garante os deslocamentos de pessoas e cargas
no território do Município” (art. 3º).
Conceituou
transporte urbano como o “conjunto dos modos e serviços de transporte público
e privado utilizados para o deslocamento de pessoas e cargas nas cidades
integrantes da Política Nacional de Mobilidade Urbana” (artigo 4º,
inciso I).
Estabeleceu
dois modelos de transporte urbano motorizado individual, a saber, o público e o
privado (artigo 3º, § 1º), bem como diferenciou o “transporte público
individual: serviço remunerado de transporte de passageiros aberto ao público,
por intermédio de veículos de aluguel, para a realização de viagens
individualizadas;” (artigo 4º, VIII), e o “transporte motorizado
privado: meio motorizado de transporte de passageiros utilizado para a
realização de viagens individualizadas por intermédio de veículos particulares;”
(artigo 4º, X).
Diferenciou, portanto, o serviço de transporte privado
individual de passageiros do transporte público individual de passageiros
(artigo 12-A), por meio do serviço de “taxi”.
Não por outra razão que a Lei Federal n. 12.468/11, em seu
artigo 2º, define como “privativa dos profissionais taxistas a utilização de
veículo automotor, próprio ou de terceiros, para o transporte público
individual remunerado de passageiros, cuja capacidade será de, no máximo, 7
(sete) passageiros.” (grifo nosso)
Portanto, a Lei Federal n.
12.587/2012, ao estabelecer a política nacional de mobilidade urbana,
claramente definiu o transporte motorizado privado de passageiros, como
modo de transporte apto a garantir o deslocamento das pessoas no Município,
claramente diferenciando esta modalidade do serviço de taxi (transporte público
individual de passageiros).
A opção legislativa foi no sentido
de propiciar novos meios aptos a garantir a melhoria da acessibilidade e
mobilidade de cargas e pessoas no Município, em atenção ao disposto no
artigo 182 da CF, ou seja, visando ordenar o pleno desenvolvimento das
funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.
Ao assim dispor, o legislador
federal impôs uma espécie de bloqueio legislativo ao legislador municipal, ao
qual não se autoriza, nem mesmo a pretexto de legislar sobre assuntos de interesse
local (artigo 30, I, da CF), excluir algum dos modos de transporte individual
de passageiros contemplados na lei federal.
Cabe ao Município, portanto, apenas
suplementar as diretrizes contidas na Lei Federal n. 12.587/12, nos termos dos
artigos 30, I e II, da Constituição Federal, mas não proibir o transporte
privado motorizado.
A Lei n. 3.213/2015 do Município de
Santos, por sua vez, afastou-se daquelas diretrizes estabelecidas na lei
federal, pois proibiu qualquer forma de transporte individual de passageiros
distinto do serviço de “taxi”, colidindo, assim, diretamente com a opção do
legislador federal. Ao assim proceder, invadiu a esfera de competência
legislativa da União, prevista no artigo 22, IX, da Constituição Federal,
violando, assim, o artigo 144 da CE/89.
Nem se alegue que a vedação ao
transporte individual privado contida na Lei Municipal n. 3.213/2015 decorreria
do disposto no artigo 12 da Lei Federal n. 12.587/2012, segundo o qual os
“serviços de utilidade pública de transporte individual de passageiros deverão
ser organizados, disciplinados e fiscalizados pelo poder público municipal,
com base nos requisitos mínimos de segurança, de conforto, de higiene, de
qualidade dos serviços e de fixação prévia dos valores máximos das tarifas a
serem cobradas”.
Isto porque tal dispositivo carreou
ao Município a responsabilidade por organizar, disciplinar e fiscalizar estes
serviços e, em relação ao transporte privado, permite que dentro do exercício
do poder de polícia, fixe normas para que sejam observados requisitos mínimos
de segurança, conforto e higiene, não havendo espaço para a proibição total do
serviço.
No mesmo sentido, os artigos 107 e
135 do Código de Trânsito Brasileiro não podem ser interpretados como normas
proibitivas do transporte privado de passageiros, sobretudo após a edição da
Lei Federal n. 12.587/12, pois apenas reiteram a possibilidade de serem
estabelecidas normas de segurança, higiene e conforto, com base no poder de
polícia.
Tais dispositivos explicitam apenas
que ao poder público, de forma proporcional e razoável, compete fixar normas de
segurança, higiene e conforto para o exercício do transporte privado de
passageiros, mas nunca proibi-los, indistintamente, como na espécie.
Neste contexto, vale realçar que o
rápido desenvolvimento dos centros urbanos, com as suas consequências
indesejáveis, dentre elas a dificuldade de locomoção, passam a exigir novas
formas de enfrentamento da situação, dentre elas aquela elegida pelo legislador
federal (transporte privado de passageiros) a fim de dar efetiva aplicabilidade
ao artigo 182 da CF e ao artigo 180 da CE/89.
Portanto, a Lei n. 3.213/2015, do
Município de Santos, ao proibir o transporte individual privado de passageiros
por meio de aplicativos, violou o artigo 144 da CE/89, pois invadiu a esfera de
competência legislativa da União, prevista no artigo 22, IX, da CF/88.
IV- DA VIOLAÇÃO AOS PRINCÍPIOS DA LIVRE INICIATIVA,
LIVRE CONCORRÊNCIA E DOS DIREITOS DO CONSUMIDOR
Acerca da livre iniciativa dispõe a Constituição Federal:
“Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;”
(...)
Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
(...)
Consoante demonstrado, a Lei
Federal n. 12.587/2012, que instituiu as diretrizes da Política Nacional de
Mobilidade Urbana, fixou a modalidade de transporte privado individual de
passageiros, distinguindo-a do transporte público individual de passageiros.
A Lei Federal n. 12.468/2011, em
seu artigo 2º, considerou privativo dos taxistas apenas o serviço de transporte
público individual remunerado de passageiros.
Assim, a Lei Municipal n. 3.213/2015,
ao proibir a prestação do serviço de transporte privado de passageiros
por meio de aplicativos, acabou por criar, de forma indevida, reserva de
mercado em prol dos “taxistas”, ceifando a possibilidade do livre exercício de
atividade privada por meio de motoristas profissionais.
Da mesma forma, a lei atacada
acabou por coibir o livre exercício da atividade de empresas desenvolvedoras de
aplicativos e soluções tecnológicas para serviços de transporte de passageiros.
A vedação à livre iniciativa acaba
por fragilizar a livre concorrência, prejudicando, ao final, os próprios
consumidores, pois obstados da ampla possibilidade de escolha.
Estudo carreado pelo CADE aos autos
da Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 2216901-06.2015.8.26.0000, que tem
como objeto Lei Paulistana análoga a ora impugnada, apontou que:
“não há
elementos econômicos que justifiquem a proibição de novos prestadores de
serviços de transporte individual. Para além disso, elementos econômicos
sugerem que, sob uma ótica concorrencial e do consumidor, a atuação de novos
agentes tende a ser positiva.”
Portanto, a Lei Municipal n.
3.213/2015, ao proibir a prestação de serviço de transporte privado de
passageiros por meio de aplicativos, criando indevida reserva de mercado aos
taxistas, acabou por violar a livre iniciativa, a livre concorrência e o
interesse dos consumidores.
Nesse sentido, decidiu este Colendo
Órgão Especial, ao declarar a inconstitucionalidade da Lei Paulista n° 16.279/2015,
análoga a lei ora impugnada, in verbis:
“AÇÃO DIRETA DE
INCONSTITUCIONALIDADE – LEI MUNICIPAL QUE DISPÕE SOBRE PROIBIÇÃO DO USO DE
CARROS PARTICULARES CADASTRADOS EM APLICATIVOS PARA O TRANSPORTE REMUNERADO
INDIVIDUAL DE PESSOAS NO MUNICÍPIO DE SÃO PAULO. PRELIMINARES SUSCITADAS PELO
PRESIDENTE DA CÂMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO QUE NÃO COMPORTAM ACOLHIDA –
REPRESENTAÇÃO PROCESSUAL DA AUTORA REGULARIZADA – LEGITIMIDADE ATIVA
CONFIGURADA – ENTIDADE SINDICAL DE ÂMBITO NACIONAL – PERTINÊNCIA TEMÁTICA
EVIDENCIADA, POR REPRESENTAR PRESTADORES DE SERVIÇO – CONFLITO DE INTERESSES
NÃO DEMONSTRADO – PRESENÇA, ADEMAIS, DE INTERESSE PROCESSUAL – POSSÍVEL O EXAME
DE CONFORMIDADE ENVOLVENDO NORMA CONSTITUCIONAL ESTADUAL DE CARÁTER REMISSIVO
(ART. 144, CE) – TEMAS DEBATIDOS DE CONTEÚDO PRINCIPIOLÓGICO E DE OBSERVÂNCIA
OBRIGATÓRIA PELOS MUNICÍPIOS. ATO NORMATIVO QUE NÃO INVADE COMPETÊNCIA
LEGISLATIVA CONSTITUCIONAL DE ENTE FEDERADO DIVERSO – TEMA CENTRAL DA
CONTROVÉRSIA (TRANSPORTE) QUE AFETA UNIÃO, ESTADOS E MUNICÍPIOS – ENTE
MUNICIPAL QUE OSTENTA COMPETÊNCIA PARA LEGALMENTE DISPOR SOBRE ASSUNTO DE
INTERESSE LOCAL NO ÂMBITO DE SEUS LIMITES GEOGRÁFICOS – DIPLOMA ATACADO QUE NÃO
INSTITUI REGRA DE CARÁTER GERAL SOBRE TRANSPORTE, DIREITO CIVIL OU INTERNET.
TRANSPORTE INDIVIDUAL REMUNERADO DE PASSAGEIROS POR MOTORISTAS PARTICULARES
CADASTRADOS EM APLICATIVOS – PROIBIÇÃO, DIRETA E OBJETIVA, INSTITUÍDA PELO ATO
NORMATIVO IMPUGNADO – CONSIDERAÇÕES SOBRE O SISTEMA ADOTADO PELA ORDEM
ECONÔMICA NACIONAL – PRINCÍPIOS E VALORES ELEMENTARES FUNDADOS NA LIBERDADE
ECONÔMICA – EXAME DE ADEQUAÇÃO DA ATIVIDADE COMO SERVIÇO PÚBLICO OU ATIVIDADE
ECONÔMICA EM SENTIDO ESTRITO – AUSÊNCIA DE PREVISÃO CONSTITUCIONAL OU LEGAL QUE
A QUALIFIQUE COMO ATIVIDADE PRIVATIVA OU TITULARIZADA PELO ESTADO, DIVERSAMENTE
DO TRANSPORTE COLETIVO MUNICIPAL (ART. 30, INCISO V, CR) – POLÍTICA NACIONAL DE
MOBILIDADE URBANA QUE CONFORMA O TRANSPORTE PRIVADO INDIVIDUAL DE PASSAGEIROS,
INSERINDO-O NOS MODAIS DE MOBILIDADE URBANA (ART. 3º, §2º, INCISO III, ALÍNEA
'B' DA LEI Nº 12.587/2012) – NATUREZA JURÍDICA DE ATIVIDADE PRIVADA EVIDENCIADA
– SERVIÇO DE TRANSPORTE PÚBLICO INDIVIDUAL DE PASSAGEIROS (TÁXIS) QUE GUARDA
CARACTERÍSTICAS PRÓPRIAS E DISTINTIVAS – ATIVIDADE
PRIVADA QUE É RESGUARDADA PELA LIVRE INICIATIVA – ESTÍMULO À LIVRE
CONCORRÊNCIA, INCREMENTANDO BENEFÍCIOS SOCIALMENTE DESEJÁVEIS, INCLUINDO
AMPLIAÇÃO DO LEQUE DE ESCOLHA DO CONSUMIDOR – NORMA PURAMENTE PROIBITIVA QUE
CONTRARIA PRINCÍPIOS ELEMENTARES DA ORDEM ECONÔMICA, COMO LIVRE INICIATIVA,
LIVRE CONCORRÊNCIA E DEFESA DO CONSUMIDOR (ARTS. 1º, INCISO IV, E 170 'CAPUT' E
INCISO IV, V E PARÁGRAFO ÚNICO DA CR) – EXCEPCIONAL INTERVENÇÃO ESTATAL NO
ÂMBITO DA INICIATIVA PRIVADA QUE SOMENTE SE LEGITIMA QUANDO FUNDADA EM RAZÕES
JURÍDICO-CONSTITUCIONAIS RELEVANTES, NUM EXAME DE PROPORCIONALIDADE, O QUE NÃO
OCORRE – VIOLAÇÃO DIRETA DOS ARTIGOS 144 E 275 DA CONSTITUIÇÃO ESTADUAL –
TÉCNICA DA INTERPRETAÇÃO CONFORME QUE NÃO SE MOSTRA POSSÍVEL NA HIPÓTESE –
PRETENSÃO INICIAL PROCEDENTE.” (TJ/SP; Órgão Especial; ADI
2216901-06.2015.8.26.0000; Des. Rel. Francisco Casconi; D.J. 05/10/2016). – grifo nosso.
V - PEDIDO LIMINAR
Presentes os pressupostos do fumus boni iuris e do periculum in mora, bastantes para autorizar a suspensão liminar da vigência e eficácia do preceito normativo impugnado.
A aparência do bom direito se mostra inquestionável pela apreciação de todos os motivos acima elencados, a demonstrar a inconstitucionalidade da lei municipal.
O perigo da demora decorre da inviabilização da utilização de serviços de tecnologia por motoristas particulares, não taxistas, e a própria realização do transporte individual privado, com evidentes prejuízos não só aos motoristas particulares e funcionários das empresas desenvolvedoras do aplicativo - que se veem privados de auferir renda - mas também de diversos consumidores, usuários do serviço, que são privados de uma modalidade de transporte.
Diante do exposto, requer-se a concessão da liminar, para fins de suspensão imediata da eficácia do diploma legal impugnado.
VI – PEDIDO
Diante do exposto, requer-se o recebimento e processamento da presente ação, para que ao final seja julgada procedente, declarando a inconstitucionalidade da Lei n° 3.213, de 18 de novembro de 2015, do Município de Santos.
Requer-se, ainda, sejam requisitadas informações ao Prefeito Municipal de Santos, bem como, em seguida, citado o Procurador-Geral do Estado para manifestar-se sobre o ato normativo impugnado, e, posteriormente, aguarda-se vista para fins de manifestação final.
Termos em que, pede deferimento.
São Paulo, 13 de dezembro de 2016.
Gianpaolo
Poggio Smanio
Procurador-Geral
de Justiça
ef/ts
Protocolado
n. 121.756/2016
Interessado:
Promotoria de Justiça Cível de Santos
Assunto: inconstitucionalidade
da Lei n° 3.213, de 18 de novembro de 2015, do Município de Santos.
1.
Distribua-se a petição inicial da ação direta de
inconstitucionalidade, em face da Lei n° 3.213, de 18 de novembro de 2015, do
Município de Santos, junto ao Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São
Paulo.
2.
Oficie-se aos interessados, informando-lhes a propositura da
ação, com cópia da petição inicial.
São Paulo, 13
de dezembro de 2016.
Gianpaolo
Poggio Smanio
Procurador-Geral
de Justiça
ef/ts