Excelentíssimo Senhor Doutor Desembargador Presidente do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

 

 

Protocolado nº 175.301/2016

 

 

Ementa:

1)      Ação direta de inconstitucionalidade. Lei Municipal nº 5.889, de 11 de novembro de 2016, de Sumaré, que “Dispõe no âmbito do Município de Sumaré sobre a obrigatoriedade da disciplina de Educação Moral e Cívica, nas escolas de Ensino Fundamental na Rede Pública e Particulares e dá outras providências”.

2)      Matéria tipicamente administrativa. Iniciativa parlamentar. Invasão da esfera da gestão administrativa, reservada ao Poder Executivo Municipal. Violação ao princípio da separação de poderes (art. 5º, art. 47, II e XIV, e art. 144 da Constituição do Estado).

        

 O PROCURADOR-GERAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO, no exercício da atribuição prevista no art. 116, VI, da Lei Complementar Estadual n. 734, de 26 de novembro de 1993 (Lei Orgânica do Ministério Público de São Paulo), em conformidade com o disposto no art.125, § 2º, e art. 129, IV, da Constituição Federal, e ainda art. 74, VI, e art. 90, III, da Constituição do Estado de São Paulo, com amparo nas informações colhidas no incluso protocolado (Protocolado nº 175.3012016), vem, respeitosamente, perante esse Egrégio Tribunal de Justiça, promover a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE da Lei Municipal nº 5.889, de 11 de novembro de 2016, de Sumaré, que “Dispõe no âmbito do Município de Sumaré sobre a obrigatoriedade da disciplina de Educação Moral e Cívica, nas escolas de Ensino Fundamental na Rede Pública e Particulares e dá outras providências”, pelos fundamentos a seguir expostos:

1)    ATO NORMATIVO IMPUGNADO

O preceito impugnado, resultante de iniciativa parlamentar, tem o seguinte teor:

“(...)

Art. 1º - Fica instituída em caráter obrigatório a disciplina de Educação Moral e Cívica na grade curricular das escolas de Ensino Fundamental da Rede Pública e Privada no município de Sumaré.

Parágrafo único: A disciplina de que tara o caput deste artigo deverá ser fixada na grade curricular com carga horária de uma hora-aula por semana em dia e horário estabelecidos pela escola.

Art. 2º - O ensino da disciplina Educação Moral e Cívica, apoiando-se nas tradições nacionais, tem como finalidade:

I – a preservação, o fortalecimento e a proteção dos valores espirituais e éticos da nacionalidade;

II – o fortalecimento da unidade nacional e do sentimento de solidariedade humana;

III – a valorização da Pátria, se seus símbolos, tradições e instituições e dos grandes vultos da história;

IV – o aprimoramento do caráter, com apoio na moral e da dedicação a família e à comunidade;

V – a compreensão dos direitos e deveres dos brasileiros e o conhecimento da organização sociopolítica e econômica do País.

VI – o preparo do cidadão para o exercício das atividades cívicas com o fundamento na moral, no patriotismo e na nação construtiva, visando ao bem comum.

VII – a valorização da obediência à Lei, da finalidade ao trabalho e da integração da comunidade.

Art. 3º – O ensino da disciplina Educação Moral e Cívica terá como base o texto das seguintes leis;

I – Constituição Federal;

II – Código Eleitoral Brasileiro;

III – Estatuto da Criança e do Adolescente;

IV ­– Estatuto do Idoso;

V – Estatuto da Pessoa com Deficiência;

V – Lei Orgânica do Município de Sumaré.

Art. 4º – A matéria de Educação Moral e Cívica, como disciplina e prática, será ministrada com as devidas adequações aos níveis de cada ciclo escolar.

Art. 5º – O Poder Executivo regulamentará a presente Lei, no que couber, no prazo de 90 (noventa) dias contados de sua publicação.

Art. 6º – Esta lei entra em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.

(...)

A norma, entretanto, é verticalmente incompatível com a Constituição do Estado de São Paulo.

2)    INCONSTITUCIONALIDADE MATERIAL: VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DE PODERES

O ato normativo ora impugnado viola o princípio da separação de poderes, previsto no art. 5º, e art. 47, II e XIV, da Constituição do Estado, aplicáveis aos Municípios por força do art. 144 da Carta Paulista.

A questão é objetiva.

A Lei Municipal nº 5.889, de 2016, de Sumaré, fruto de iniciativa parlamentar, inclui na grade curricular das escolas de Ensino Fundamental na Rede Pública e Particular a disciplina de Educação Moral e Cívica.

Em que pese a intenção que certamente animou o Vereador autor do projeto de lei que se converteu no diploma ora questionado, é certo que definir o conteúdo curricular que será objeto de desenvolvimento no ensino regular é matéria a cargo do Poder Executivo, ou seja, da Administração Pública.

A Constituição da República, como se sabe, estabelece competência privativa da União para legislar sobre diretrizes e bases da educação nacional (art. 22, XXIV da CF/88), tendo sido assegurada aos Estados competência concorrente para legislar sobre educação, cultura e ensino (art. 24, IX, da CF/88), e aos Municípios a possibilidade de legislar sobre assuntos de interesse local e suplementar a legislação federal e estadual no que couber (art. 30, I e II, da CF/88).

Assim, com base nesse panorama constitucional do sistema de ensino brasileiro, foi editada a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece aspectos fundamentais a serem observados pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios nessa matéria, sendo editada também a Lei do Plano Nacional de Educação, Lei nº 10.172, de 9 de janeiro de 2001.

Ocorre que esses diplomas nacionais cuidam de aspectos gerais, havendo espaço para que os demais entes federativos além da União, ou seja, Estados, Distrito Federal e Municípios, respeitados os parâmetros mínimos estabelecidos no plano federal, incrementem os respectivos sistemas de ensino, inclusive na perspectiva curricular, atendendo a peculiaridades regionais.

Nada obstante, a definição da grade curricular é matéria que se insere no âmbito da gestão administrativa, sendo manifestamente estranha à atividade parlamentar.

Cabe aos órgãos técnicos da área da educação que integram a Administração Pública, em cada uma das esferas federativas definirem os conteúdos programáticos curriculares do ensino, respeitados os parâmetros mínimos estabelecidos na gestão administrativa da educação no plano nacional.

Assim, quando o Poder Legislativo do Município edita lei sinalizando para a inclusão de novas disciplinas na grade curricular, essa atuação do legislador invade, indevidamente, esfera que é própria da atividade do Administrador Público, violando o princípio da separação de poderes.

E mais: ainda que fosse o ato normativo oriundo de iniciativa do Chefe do Executivo seria inconstitucional.

A razão é simples: o Chefe do Executivo não necessita de autorização legislativa para fazer aquilo que está na esfera de sua competência constitucional. Se ele encaminha projeto de lei para tal escopo, isso configura hipótese de delegação inversa de poderes, vedada pelo art. 5º, § 1º, da Constituição Paulista.

         Em síntese, cabe nitidamente à Administração Pública, e não ao legislador, deliberar a respeito do tema.

A inconstitucionalidade, portanto, decorre da violação da regra da separação de poderes, prevista na Constituição Paulista e aplicável aos Municípios (art. 5º, art. 47, II e XIV, e art. 144).

Com relação à obrigatoriedade da disciplina de Educação Moral e Cívica nas escolas de Ensino Fundamental na Rede Pública a inconstitucionalidade é decorre da ingerência do dever de administrar, que primordialmente compete ao Poder Executivo, o que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público. Ao Poder Legislativo compete a primazia da função de editar leis, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

O diploma impugnado invadiu a esfera da gestão administrativa, que cabe ao Poder Executivo, e envolve o planejamento, a direção, a organização e a execução de atos de governo. Isso equivale à prática de ato de administração, de sorte a malferir a separação dos poderes.

Quando a pretexto de legislar o Poder Legislativo administra editando leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e independência que deve existir entre os poderes estatais.

Nem se chegaria a conclusão diversa a partir da afirmação de que a lei ora questionada é simples “lei autorizativa”, da qual não resta nenhuma imposição para o administrador público.

Nesse sentido o ensinamento de Sérgio Resende de Barros[1]:

(...) Em 17 de março de 1982 – ainda sob a Constituição (Emenda Constitucional nº 1/69) anterior à atual – o plenário do Supremo Tribunal Federal julgou representação (nº 993-9) por inconstitucionalidade de uma lei estadual (Lei nº 174, de 8/12/77, do Estado do Rio de Janeiro) que autorizava o Chefe do Poder Executivo a praticar ato que já era de sua competência constitucional privativa. Nesse julgamento, decidiu, textualmente: O só fato de ser autorizativa a lei não modifica o juízo de sua invalidade por falta de legítima iniciativa. Não obstante a clareza do acórdão (Diário da Justiça de 8/10/82, p. 10187, Ementário nº 1.270-1, RTJ 104/46), persistiu por toda a Federação brasileira, nos níveis estadual e municipal, a prática de "leis" autorizativas (...).

Insistente na prática legislativa brasileira, a "lei" autorizativa constitui um expediente, usado por parlamentares, para granjear o crédito político pela realização de obras ou serviços em campos materiais nos quais não têm iniciativa das leis, em geral matérias administrativas. Mediante esse tipo de "leis" passam eles, de autores do projeto de lei, a co-autores da obra ou serviço autorizado. Os constituintes consideraram tais obras e serviços como estranhos aos legisladores e, por isso, os subtraíram da iniciativa parlamentar das leis. Para compensar essa perda, realmente exagerada, surgiu "lei" autorizativa, praticada cada vez mais exageradamente. Autorizativa é a "lei" que – por não poder determinar – limita-se a autorizar o Poder Executivo a executar atos que já lhe estão autorizados pela Constituição, pois estão dentro da competência constitucional desse Poder. O texto da "lei" começa por uma expressão que se tornou padrão: "Fica o Poder Executivo autorizado a...". O objeto da autorização – por já ser de competência constitucional do Executivo – não poderia ser "determinado", mas é apenas "autorizado" pelo Legislativo. Tais "leis", óbvio, são sempre de iniciativa parlamentar, pois jamais teria cabimento o Executivo se autorizar a si próprio, muito menos onde já o autoriza a própria Constituição. Elas constituem um vício patente.

(...)

Pelo que, se uma lei fixa o que é próprio da Constituição fixar, pretendendo determinar ou autorizar um Poder constituído no âmbito de sua competência constitucional, essa lei é inconstitucional. Não é só inócua ou rebarbativa. É inconstitucional, porque estatui o que só o Constituinte pode estatuir, ferindo a Constituição por ele estatuída. O fato de ser mera autorização não elide o efeito de dispor, ainda que de forma não determinativa, sobre matéria de iniciativa alheia aos parlamentares. Vale dizer, a natureza teleológica da lei – o fim: seja determinar, seja autorizar – não inibe o vício de iniciativa. A inocuidade da lei não lhe retira a inconstitucionalidade. A iniciativa da lei, mesmo sendo só para autorizar, invade competência constitucional privativa.

(...)

                   A jurisprudência deste E. Tribunal de Justiça acolhe os fundamentos ora sustentados:

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONAL IDADE -Lei municipal que Dispõe sobre a. Inclusão no currículo de educação das escolas municipais de Atibaia, aulas de informática, inglês e artes. - Comando legal possui todas as características de ato administrativo - Violação à regra de separação de poderes contida nos artigos 5o, 47, incisos II e XIV e art. 114, todos da Constituição Estadual - Pedido julgado procedente com efeitos "ex tunc" — Ação procedente.” (Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 0099200-63.2012.8.26.0000, da Comarca de São Paulo, em que é autor PREFEITO DO MUNICÍPIO DE ATIBAIA, é réu PRESIDENTE DA CÂMARA MUNICIPAL DE ATIBAIA. DES. ANTÔNIO CARLOS MALHEIROS RELATOR)

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITÜCIONALIDADE -Lei municipal que determina ao Poder Executivo a inclusão da matéria "Educação Cívica e Valores Humanos" como atividade extracurricular na rede de ensino público municipal, e dá outras providências Violação à regra de separação de poderes contida nos artigos 5o, 47, incisos II e XIV e art. 114, todos da Constituição Estadual - Ação procedente.” (Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 0293519-65.2011.8.26.0000, da Comarca de São Paulo, em que é autor PREFEITO DO MUNICÍPIO DE ITATINGA, é réu PRESIDENTE DA CÂMARA MUNICIPAL DE ITATINGA. DES. ANTÔNIO CARLOS MALHEIROS RELATOR)

         Confiram-se também os seguintes precedentes deste E. Órgão Especial: ADI. 0323870-55.2010.8.26.0000, Rel. Barreto Fonseca (inconstitucionalidade da lei do município de Suzano n° 4.353, dos 10 de março de 2010, que institui nas Escolas da Rede Municipal de Educação Infantil e Fundamental a Ética e a Cidadania como temas transversais), e:

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE – INCLUSÃO DO ESTUDO DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE-ECA NA GRADE ESCOLAR DO ENSINO MUNICIPAL - VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DE PODERES - OFENSA AOS ARTS. 5º E 144 DA CONSTITUIÇÃO PAULISTA - CRIAÇÃO DE DESPESA QUE EXCEDE O ORÇAMENTO PREVISTO SEM ESTABELECIMENTO DE FONTE DE CUSTEIO - VIOLAÇÃO DO DISPOSTO NOS ART. 25 E 176, II, DA CONSTITUIÇÃO PAULISTA - AÇÃO PROCEDENTE.” (ADI 150.400-0/6-00, Rel. Renato Nalini, j. 12.12.2007)

3)    PEDIDO DE LIMINAR

Estão presentes os pressupostos suficientes para fundamentar a suspensão liminar da vigência e eficácia da lei impugnada.

Há plausibilidade jurídica ante a evidente violação do princípio da separação de poderes previsto no art. 5º, da reserva da Administração prevista no art. 47, incs. II e XIV, da Constituição do Estado, aplicáveis aos Municípios por força do art. 144 da Carta Paulista, como se colhe da jurisprudência desta Corte conforme os precedentes que militam em favor da pretensão do autor.

Vislumbra-se também a urgência da pretensão acautelatória, na medida em que a execução da lei impugnada pode acarretar situação irreversível e danosa para o orçamento municipal. O perigo da demora (periculum in mora), portanto, decorre especialmente da ideia de que sem a imediata suspensão da vigência e eficácia do preceito legal questionado, subsistirá a sua aplicação, com a possível realização de despesas que dificilmente poderão ser revertidas aos cofres públicos, na hipótese provável de procedência da ação direta.

Essas razões são suficientes para o deferimento da medida cautelar pleiteada.

Diante do exposto, requer-se a concessão da liminar, para fins de suspensão imediata da eficácia da Lei Municipal nº 5.889, de 11 de novembro de 2016, de Sumaré, que “Dispõe no âmbito do Município de Sumaré sobre a obrigatoriedade da disciplina de Educação Moral e Cívica, nas escolas de Ensino Fundamental na Rede Pública e Particulares e dá outras providências”.

4)    CONCLUSÃO E PEDIDO

Diante de todo o exposto, aguarda-se o recebimento e processamento da presente ação declaratória, para que ao final seja ela julgada procedente, reconhecendo-se a inconstitucionalidade da Lei Municipal nº 5.889, de 11 de novembro de 2016, de Sumaré.

Requer-se ainda sejam requisitadas informações à Câmara Municipal e ao Senhor Prefeito Municipal de Sumaré, bem como citado o Procurador-Geral do Estado para manifestar-se sobre o ato normativo impugnado.

Posteriormente, aguarda-se vista para fins de manifestação final.

Termos em que,

Aguarda-se deferimento.

São Paulo, 19 de dezembro de 2016.

 

        

Gianpaolo Poggio Smanio

Procurador-Geral de Justiça

 

Protocolado nº 175.301/2016

Assunto: Inconstitucionalidade da Lei Municipal nº 5.889, de 11 de novembro de 2016, de Sumaré

 

 

 

 

 

 

 

 

1.     Registrar e autuar como representação para ação direta de inconstitucionalidade.

2.     Distribua-se a petição inicial da ação direta de inconstitucionalidade, em face da Lei Municipal nº 5.889, de 11 de novembro de 2016, de Sumaré, junto ao Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

3.     Oficie-se ao representante, informando-lhe a propositura da ação, com cópia da petição inicial.

São Paulo, 19 de dezembro de 2016.

 

 

Gianpaolo Poggio Smanio

Procurador-Geral de Justiça

 

 

 



[1] Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos da Instituição Toledo de Ensino (Bauru, n. 29, ago/nov. 2000, pp. 259-267), disponível também na internet (Endereço eletrônico: www.srbarros.com.br).