Excelentíssimo Senhor Doutor Desembargador Presidente do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

 

 

 

 

 

 

 

 

Protocolado nº 133.580/16

 

 

 

 

 

Constitucional. Urbanístico. Ação direta de inconstitucionalidade. Lei n. 8.750, de 14 de julho de 2016, do Município de Araraquara. Áreas computáveis e não computáveis no cálculo dos índices urbanísticos. Uso, ocupação e parcelamento do solo.

Norma de desenvolvimento urbano. Processo legislativo. Participação comunitária. Ausência. Desvio de poder de ato legislativo. Norma editada para legitimação de empreendimento anterior, contestado em ação civil pública. Moralidade, Finalidade e Impessoalidade.

1. Inconstitucional lei municipal urbanística que não assegura a participação comunitária em seu processo legislativo (art. 180, II, CE/89).

2. Lei que visou à regularização de empreendimento anterior à sua vigência, aumentando o índice de ocupação do solo, contestado em ação civil pública julgada procedente, caracteriza desvio de poder legislativo por menoscabo dos princípios de moralidade, finalidade e impessoalidade, visto que escopo é o atendimento de interesses particulares.

 

 

 

 

            O Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, no exercício de suas atribuições (artigo 116, VI, da Lei Complementar Estadual nº 734/93; artigos 125, §2º, e 129, IV, da Constituição Federal; artigos 74, VI, e 90, III, da Constituição do Estado de São Paulo), com amparo nas informações colhidas no incluso protocolado em epígrafe mencionado, vem perante esse egrégio Tribunal de Justiça promover a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE, em face da Lei n. 8.750, de 14 de julho de 2016, do Município de Araraquara, pelos fundamentos a seguir expostos:

I - O ato normativo impugnado

                   A Lei n. 8.750, de 14 de julho de 2016, do Município de Araraquara, que regulamenta a Lei Complementar n. 21, de 01 de julho de 1998, no que diz respeito às áreas computáveis e não computáveis no cálculo dos índices urbanísticos, tem a seguinte redação:

Art. 1º A área total construída de uma edificação é toda a área coberta, com pé-direito superior a 2,00m (dois metros), composta de áreas computáveis e não computáveis.

Art. 2º  A área construída não computável é a somatória das áreas edificadas que não serão consideradas no cálculo dos índices urbanísticos estabelecidos na Lei Complementar nº 850/2014 e alterações.

Art. 3º  Para efeito do cálculo do Índice de Aproveitamento são consideradas áreas construídas não computáveis:

I – subsolos destinados a circulação e estacionamento de veículos automotores ou não;

II – áreas dos pavimentos destinadas ao uso comum nos edifícios, situados em subsolo ou não, tais como: depósitos, vestiários ou banheiros de funcionários, casa de zelador, bem como os depósitos de uso privativo das unidades;

III – sacadas, balcões, varandas, ou lajes técnicas até a área máxima de 6,00m² (seis metros quadrados), de uso exclusivo da unidade autônoma;

IV – térreo, quando destinado a circulação e estacionamento de veículos;

V – superfície, no subsolo ou não, ocupada por centrais de utilidades, shafts, tais como Central de Gás, Central Elétrica, Central de Ar Condicionado, Casa de Máquinas e Bombas, Lixeiras, Cisternas e Reservatórios de Água, Poço de Elevador, etc;

VI – sobressolos destinados a circulação e estacionamento de veículos, limitados a dois pavimentos;

VII – superfície ocupada por escadas em todos os pavimentos, exceto no térreo;

VIII – compartimentos necessários ao atendimento dos dispositivos de segurança previstos nas normas técnicas brasileiras da ABNT e Instruções Técnicas do Corpo de Bombeiros da Polícia Militar do Estado de São Paulo;

IX – saliências tais como floreiras, pilares, elementos arquitetônicos com projeção de até 40cm (quarenta centímetros);

X – sótão, em edificações destinadas ao uso residencial;

XI – acessos cobertos do alinhamento predial até a edificação, não podendo a largura exceder a 20% (vinte por cento) da face principal da edificação voltada para a via pública;

XII – acessos cobertos entre edificações de um mesmo lote, não podendo exceder a 3,00m (três metros) de largura;

XIII – piscinas, spas, ofurôs, espelhos d’água e similares.

§ 1º  As escadas, dutos, fossos, shafts e similares serão considerados área construída computável uma única vez na área de projeção da edificação, no pavimento térreo.

§ 2º  Por sobressolo entende-se o térreo e os pavimentos acima deste.

§ 3º  Sacadas, balcões, varandas ou lajes técnicas que ultrapassarem a área definida no inciso III serão integralmente consideradas áreas construídas computáveis.

§ 4º  As saliências que ultrapassarem a projeção definida no inciso IX serão integralmente consideradas áreas construídas computáveis.

Art. 4º  Para efeito de cálculo do índice de ocupação não serão computáveis as projeções dos seguintes elementos construtivos:

I – sacadas, balcões, varandas ou lajes técnicas em balanço, até o limite de 1,50m (um metro e cinquenta centímetros) de largura;

II – marquises, pérgulas e beirais atendidas suas disposições especificas na Lei Complementar nº 21/1998 e alterações.

§ 1º  A projeção dos Balcões, Varandas ou Lajes Técnicas em balanço que ultrapassarem a largura definida no inciso I serão integralmente consideradas no cálculo do índice de ocupação.

§ 2º  As escadas, dutos, fossos, shafts e similares, serão considerados área construída computável uma única vez na área de projeção da edificação, no pavimento térreo.

Art. 5º  Para análise dos projetos arquitetônicos de edificações deverão ser apresentados quadro de áreas e memória gráfica das áreas segundo modelos a serem veiculados por instrução normativa da Secretaria de Desenvolvimento Urbano.

Art. 6º  Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário. (fls. 120/122).

                   Referido diploma legal resultou de projeto de lei de iniciativa do Prefeito Municipal de Araraquara (Projeto de Lei n. 136/2016 – fls. 104/119), destinado à regulamentação do Código de Obras (Lei Complementar n. 21, de 01 de julho de 1998), expondo a respectiva mensagem de 24 de junho de 2016 que:

“A medida se faz necessária para resolver uma lacuna existente no Código de Obras em vigência, de modo que fiquem uniformizados os critérios de análise técnica dos projetos” (fl.105).

                   O projeto de lei, após pareceres favoráveis das Comissões de Justiça, Legislação e Redação (fl. 111), Tributação, Finanças e Orçamento (fl. 112), e Obras, Segurança, Serviços e Bens Públicos (fl. 113), todos de 12 de julho de 2016, foi aprovado em única discussão e votação na sessão de 12 de julho de 2016 (fl. 109), expedindo-se o autógrafo em 13 de julho de 2016 (fls. 115/116). A lei foi sancionada em 14 de julho de 2016.

                   Como se capta da leitura do processo legislativo não houve participação de entidades comunitárias no seu trâmite, sendo tal evidência corroborada nas informações prestadas pela Câmara Municipal de Araraquara (fls. 100/102).

                   Cumpre assinalar, ainda, que o Ministério Público, representado pelo ilustre 2º Promotor de Justiça de Araraquara, havia ajuizado, em 10 de agosto de 2015, ação civil pública em face do Município de Araraquara, Lineu João Santoro Biazotti, Vania Matoso Biazotti, Biazotti Empreendimentos Imobiliários Ltda.-EPP e Araraquara II Empreendimentos Imobiliários SPE Ltda., responsáveis pela edificação do condomínio vertical “Condomínio Design Harmonia Residence”.

                   Segundo narra a petição inicial o Plano Diretor (Lei Complementar n. 550/05 revisada pela Lei Complementar n. 850/14) adotava o fator 2,5 no índice de aproveitamento máximo construtivo no bairro Vila Harmonia (construção de duas vezes e meia a área do terreno) quando do protocolo do pedido para construção de 15.010,56 metros quadrados em área de 6.000 metros quadrados, requerido por Lineu João Santoro Biazotti em 27 de agosto de 2014, razão pela qual foi deferido em 07 de outubro de 2014 e expedido o competente alvará.

                   Todavia, sob o império da Lei Complementar n. 858, de 20 de outubro de 2014, que retomou o índice de aproveitamento máximo de construção igual ao fator 1 (construção de uma vez a área do terreno), antes do início da obra, houve protocolo de pedido de alteração, em 27 de fevereiro de 2015, requerido por Araraquara II Empreendimentos Imobiliários SPE Ltda., sucessora de Lineu João Santoro Biazotti, que foi deferido ensejando a expedição do alvará de licença de obra com área a ser construída de 23.750,45 metros quadrados, o que motivou o aforamento da ação civil pública para declaração de nulidade do processo administrativo no qual expedidos os alvarás porque o índice construtivo vigente era de 6.000 metros quadrados (fls. 125/143).

                   Mencionada ação civil pública frisou, com base no inquérito civil, que a obra não havia sido iniciada (fl. 129) e que a última alteração da legislação municipal decorreu do clamor popular (fl. 138) em face da Lei Complementar n. 850/14, porque “serviu exclusivamente, para favorecer os empreendedores, pois serão os únicos a construírem obra de tal natureza e dimensão no Bairro Harmonia” (fl. 132) que é composto de “residências unifamiliares” (fl. 129).

                   Requerida e deferida liminar para proibição de vendas ou início de obras no local, sob pena de multa, e emissão de novos alvarás, o agravo de instrumento interposto não logrou êxito ao ser desprovido pela colenda 3ª Câmara de Direito Público deste egrégio Tribunal de Justiça (Agravo de Instrumento n. 2182591-71.2015.8.26.0000, Rel. Des. Maurício Fiorito, 17-05-2016, v.u. – fls. 150/154), a respeitável sentença, prolatada em 15 de julho de 2016 pelo douto Juízo de Direito da 1ª Vara da Fazenda Pública de Araraquara (Processo 1009997-54.2015.8.26.0037), julgou procedente a ação (fls. 144/149) – ou seja, no dia seguinte à edição da Lei n. 8.750, de 14 de julho de 2016, e cujo processo legislativo foi iniciado em 24 de junho de 2016.

                   Consta, ainda, que em 15 de agosto de 2016, Araraquara II Empreendimentos Imobiliários SPE Ltda. requereu novo alvará (fl. 62).

                   Por fim, a representação oferecida pelo 2º Promotor de Justiça de Araraquara em face da Lei n. 8.750/16 registra que a inovação dela decorrente, consistente nas áreas não computáveis para fins de índice de aproveitamento construtivo máximo “permite a construção de imóveis com elevada metragem quadrada, cuja real dimensão não será considerada no cômputo para fins de adequação ao índice de ocupação do solo” (fl. 08). 

II – O PARÂMETRO DA FISCALIZAÇÃO ABSTRATA DE CONSTITUCIONALIDADE

                   A Constituição do Estado de São Paulo em atenção ao art. 29 da Constituição da República assim dispõe:

Art. 144. Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.

                   Destarte, as Constituições Federal e Estadual preordenam o exercício da autonomia municipal.

                   A Constituição Federal assegura aos Municípios autonomia, mas, determina-lhes respeito aos princípios da própria Constituição Federal e da Constituição Estadual (art. 29), entre eles a cooperação das associações representativas no planejamento municipal (art. 29, XII) e o planejamento urbano na política de desenvolvimento urbano e de expansão urbana, cujo objetivo é ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes (art. 182 e § 1º).

                   A norma impugnada contraria frontalmente a Constituição do Estado de São Paulo, à qual está subordinada a produção normativa municipal ante a previsão dos arts. 1º, 18, 29 e 31 da Constituição Federal, porque viola o disposto nos arts. 180, II, da Constituição do Estado de São Paulo (que reproduz o citado art. 29, XII, da Constituição Federal), que assim preceitua:

Art. 180. No estabelecimento de diretrizes e normas relativas ao desenvolvimento urbano, o Estado e os Municípios assegurarão:

(...)

II – a participação das respectivas entidades comunitárias no estudo, encaminhamento e solução dos problemas, plano, programas e projetos que lhes sejam concernentes.

                   O art. 180, II, da Constituição Estadual, determina a participação da população em todas as matérias atinentes ao desenvolvimento urbano, como as relativas ao parcelamento, uso e ocupação do solo urbano, sendo norma reiteradamente prestigiada pela jurisprudência adiante transcrita:

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - Lei n. 2.786/2005 de São José do Rio Pardo - Alteração sem plano diretor prévio de área rural em urbana - Hipótese em que não foi cumprida disposição do art. 180, II, da Constituição do Estado de São Paulo que determina a participação das entidades comunitárias no estudo da alteração aprovada pela lei - Ausência ademais de plano diretor - A participação de Vereadores na votação do projeto não supre a necessidade de que as entidades comunitárias se manifestem sobre o projeto - Clara ofensa ao art. 180, II, da Constituição Estadual - Ação julgada procedente.” (TJSP, ADI 169.508.0/5, Rel. Des. Aloísio de Toledo César, 18-02-2009).

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - Leis n°s. 11.764/2003, 11.878/2004 e 12.162/2004, do município de Campinas - Legislações, de iniciativa parlamentar, que alteram regras de zoneamento em determinadas áreas da cidade - Impossibilidade - Planejamento urbano - Uso e ocupação do solo - Inobservância de disposições constitucionais - Ausente participação da comunidade, bem como prévio estudo técnico que indicasse os benefícios e eventuais prejuízos com a aplicação da medida - Necessidade manifesta em matéria de uso do espaço urbano, independentemente de compatibilidade com plano diretor - Respeito ao pacto federativo com a obediência a essas exigências - Ofensa ao princípio da impessoalidade - Afronta, outrossim, ao princípio da separação dos Poderes - Matéria de cunho eminentemente administrativo - Leis dispuseram sobre situações concretas, concernentes à organização administrativa - Ação direta julgada procedente, para declarar a inconstitucionalidade das normas.” (TJSP, ADI 163.559-0/0-00).

“ação direta de inconstitucionalidade – lei complementar disciplinando o uso e ocupação do solo – processo legislativo submetido À participação popular – votação, contudo, de projeto substitutivo que, a despeito de alterações significativas do projeto inicial, não foi levado ao conhecimento dos munícipes – vício insanável – inconstitucionalidade declarada.

‘O projeto de lei apresentado para apreciação popular atendia aos interesses da comunidade local, que atuava ativamente a ponto de formalizar pedido exigindo o direito de participar em audiência pública. Nada obstante, a manobra política adotada subtraiu dos interessados a possibilidade de discutir assunto local que lhes era concernente, causando surpresa e indignação. Cumpre ressaltar que a participação popular na criação de leis versando sobre política urbana local não pode ser concebida como mera formalidade ritual passível de convalidação. Trata-se de instrumento democrático onde o móvel do legislador ordinário é exposto e contrastado com idéias opostas que, se não vinculam a vontade dos representantes eleitos no momento da votação, ao menos lhe expõem os interesses envolvidos e as conseqüências práticas advindas da aprovação ou rejeição da norma, tal como proposta” (TJSP, ADI 994.09.224728-0, Rel. Des. Artur Marques, m.v., 05-05-2010).

“Ação Direta de Inconstitucionalidade. Leis Municipais de Guararema, que tratam do zoneamento urbano sem a participação comunitária. Violação aos artigos 180, II e 191 da Constituição Estadual. Ação procedente para declarar a inconstitucionalidade das leis nº 2.661/09 e 2.738/10 do Município de Guararema” (TJSP, ADI 0194034-92.2011.8.26.0000, Rel. Des. Ruy Coppola, v.u., 29-02-2012).

“Ação direta de inconstitucionalidade - Lei municipal que altera substancialmente a lei que dispõe sobre o Plano Diretor do Município - Necessidade de ser o processo legislativo - tanto o referente à elaboração da Lei do Plano Diretor como daquela que a altera — integrado por estudos técnicos e manifestação das entidades comunitárias, fato que não ocorreu — Audiência do Conselho Municipal de Política Urbana que não supre a exigência da participação popular, caracterizadora de uma democracia participativa – Ação procedente” (TJSP, ADI 0207644- 30.2011.8.26.0000, Rel. Des. Walter de Almeida Guilherme, v.u., 21-03-2012).

“Ação Direta de Inconstitucionalidade proposta contra a Lei Municipal n. 6.427, de 13 de julho de 2010, do Município de Mogi das Cruzes. Norma relativa ao desenvolvimento urbano. Lei de ordenamento do uso e ocupação do solo. Ausência de estudos e de planejamentos técnicos e de participação comunitária. Imprescindibilidade. Incompatibilidade vertical da norma mogicruzense com a Constituição Paulista. Ocorrência. Precedentes deste E. Tribunal de Justiça. Ofensa ao artigo 180, II e 191 da Constituição Bandeirante. Inconstitucionalidade configurada. Ação procedente” (TJSP, ADI 0494837-36.2010.8.26.0000, Rel. Des. Guerrieri Rezende, v.u., 12-09-2012).

“AÇÃO DIRETA DE CONSTITUCIONALIDADE. Lei Complementar nº 2.505/12 do Munícipio de Ribeirão Preto, de iniciativa parlamentar, que dispõe sobre o parcelamento, uso e ocupação do solo. Ausência de participação da comunidade e de trabalho técnico para elaboração do projeto de lei. Afronta aos artigos 180, II e 191 da Carta Bandeirante e por força do que dispõe o art. 144 da citada Carta Estadual ao artigo 182, caput, da Constituição Federal. Precedentes da Corte. Ação procedente, modulados os efeitos da declaração” (TJSP, ADI 2098360-48.2014.8.26.0000, Rel. Des. Xavier de Aquino, v.u., 15-10-2014).

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI 310, DE 24 DE OUTUBRO DE 2014, DO MUNICIPIO DE ASSIS QUE ALTEROU O INCISO VI DO ARTIGO 3º, PARÁGRAFO ÚNICO, DA LEI DO CÓDIGODEPARCELAMENTODOSOLO,PERMITINDOO PARCELAMENTO DE ÁREAS MENORES QUE 125 M². AUSÊNCIADEPARTICIPAÇÃOPOPULAR. INADMISSIBILIDADE. AFRONTA AOS ARTS. 180, II, 182E 191, TODOS DA CARTA BANDEIRANTE, APLICÁVEIS AOS MUNICÍPIOS POR FORÇA DO ARTIGO 144 DA CITADA CARTA. PRECEDENTES DA CORTE. AÇÃOPROCEDENTE” (TJSP, ADI 2106779-23.2015.8.26.0000, Rel. Des. Xavier de Aquino, v.u., 23-09-2015).

“I - Ação Direta de Inconstitucionalidade proposta contra a Lei Municipal n. 11.503 de 29 de abril de 2014, do Município de São José do Rio Preto. Norma que altera o zoneamento urbano, para permitir a atividade de 'estacionamento comercial' em imóvel determinado. Ausência de estudos, planejamentos técnicos e de participação comunitária. Imprescindibilidade. Incompatibilidade vertical da norma rio-pretense com a Constituição Paulista. Ocorrência. Precedentes deste E. Tribunal de Justiça. Ofensa ao artigo 180, II e 191 da Constituição Bandeirante. II - Vício formal de inconstitucionalidade, por desvio de poder legislativo. Matéria atinente à gestão da cidade. Se a competência que disciplina a gestão administrativo-patrimonial é privativa do Chefe do Poder Executivo, a iniciativa do Legislativo importa em violação frontal ao texto constitucional que consagra a separação dos poderes estatais. Ofensa aos artigos 5º; 47; II e XIV; e 144 da Constituição Paulista. III - Inconstitucionalidade configurada. Ação procedente” (TJSP, ADI 2083164-38.2014.8.26.0000, Rel. Des. Guerrieri Rezende, v.u., 20-08-2014).

                   Para que o Município possa exercer sua autonomia legislativa neste assunto, é preciso possibilitar e efetivamente garantir o controle social, isto é, a “participação das respectivas entidades comunitárias no estudo, encaminhamento e solução dos problemas, planos, programas e projetos que lhes sejam concernentes” (art. 180, II, Constituição Estadual).

                   A participação popular no desenvolvimento urbano é um instrumento legitimador das normas produzidas na ordem democrática, que, além de possibilitar a discussão especializada e multifocal do assunto, garante-lhe a própria constitucionalidade, como robustece o art. 29, XII, da Constituição Federal de 1988. Como explica José dos Santos Carvalho Filho:

“as autoridades governamentais, sobretudo as do Município, sujeitam-se ao dever jurídico de convocar as populações e, por isso, não mais lhe fica assegurada apenas a faculdade jurídica de implementar a participação popular no extenso e contínuo processo de planejamento urbanístico” (Comentários ao Estatuto da Cidade, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 4ªed., 2011, p. 298).

                   A respeito o colendo Órgão Especial do egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo assim decidiu:

“A participação popular na criação de leis versando política urbana local não pode ser concebida como mera formalidade ritual passível de convalidação. Ela deve ser assegurada não apenas de forma indireta e genérica no ordenamento normativo do Município, mas especialmente na elaboração de cada lei que venha a causar sério impacto na vida da comunidade” (ADI. 0052634-90.2011.8.26.0000, Rel. Elliot Akel, 27-02-2013).

                   A democracia participativa decorrente do artigo 180, inciso II, da Constituição Estadual, alcança a elaboração da lei durante o trâmite de seu processo legislativo até o estágio final de sua produção, permitindo que a população participe da produção de normas que afetarão a estética urbana, a qualidade de vida, e os usos urbanísticos.

                   É inexorável a incompatibilidade entre o diploma legal impugnado e o ordenamento constitucional estadual, pois, a Constituição do Estado de São Paulo prevê objetivamente a necessidade de participação comunitária em matéria urbanística.

                   Além disso, a lei local impugnada é incompatível com os princípios de moralidade, finalidade e impessoalidade albergados expressamente na Constituição Estadual que assim dispõe:

Artigo 111 - A administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes do Estado, obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, razoabilidade, finalidade, motivação, interesse público e eficiência.

                   A lei local objurgada contém disciplina pontual e tópica de ocupação do solo urbano com caráter subjetivamente determinado, visto que endereçada à regularização de certo empreendimento imobiliário cuja aprovação foi reputada ilícita.

                   A lei municipal objurgada veio a lume em contexto desabonador à seriedade e objetividade que merecem os atos normativos, conotando subterfúgio para driblar a ilicitude de alvarás reconhecida em decisão judicial.

                   A licença de construir gera direito adquirido se e somente se iniciada a obra, marco temporal que a imuniza da aplicabilidade imediata da lei nova; do contrário, ela deve se ajustar à legislação superveniente. Neste sentido são eloquentes as decisões da Suprema Corte:

“LOTEAMENTO URBANO. APROVAÇÃO POR ATO ADMINISTRATIVO, COM DEFINIÇÃO DO PARCELAMENTO. REGISTRO IMOBILIÁRIO. Ato que não tem o efeito de autorizar a edificação, faculdade jurídica que somente se manifesta validamente diante de licença expedida com observância das regras vigentes à data de sua expedição. Caso em que o ato impugnado ocorreu justamente no curso do processamento do pedido de licença de construção, revelando que não dispunha a recorrida, ainda, da faculdade de construir, inerente ao direito de propriedade, descabendo falar-se em superveniência de novas regras a cuja incidência pudesse pretender ela estar imune. Da circunstância de plantas do loteamento haverem sido arquivadas no cartório imobiliário com anotações alusivas a índices de ocupação não decorre direito real a tais índices, à ausência não apenas de ato de aprovação de projeto e edificação, mas, também, de lei que confira ao registro tal efeito. Legitimidade da exigência administrativa de adaptação da proposta de construção às regras do Decreto nº 3.046/81, disciplinador do uso do solo, na área do loteamento. Recurso conhecido e provido” (STF, RE 212.780-RJ, 1ª Turma, Rel. Min. Ilmar Galvão, 27-04-1999, v.u., DJ 25-06-1999, p. 30).
“DIREITO DE CONSTRUIR. INEXISTÊNCIA DE DIREITO ADQUIRIDO A CONSTRUÇÃO, PORQUE SEQUER INICIADA, QUANDO SOBREVEIO LEI NOVA, DE ORDEM PÚBLICA, QUE A IMPEDIU. PRECEDENTES. R.E. INDEFERIDO. AGRAVO DE INSTRUMENTO COM SEGUIMENTO NEGADO PELO RELATOR NO S.T.F. AGRAVO REGIMENTAL IMPROVIDO” (STF, AgR-AI 121.798-RJ, 1ª Turma, Rel. Min. Sydney Sanches, 04-03-1998, v.u., DJ 08-04-1988, p. 7.483).

                   Não bastasse isso, quando protocolizado o pedido de alteração do projeto o índice de aproveitamento do solo era incompatível com a lei então vigente que, como acima exposto, não permitia construções em dimensão superior à área do terreno.

                   É fato – e não prognose – decorrente diretamente do processo legislativo e das circunstâncias que em torno dele gravitaram, como acima exposto, que a lei local foi editada, com sensível agravo aos princípios de moralidade, impessoalidade e finalidade, adotados no art. 111 da Constituição do Estado de São Paulo em harmonia com o art. 37 da Constituição da República.

                   Houve inequívoco desvio de poder de legislar porque sua razão de ser reside exatamente em maneira inequívoca de burla à decisão judicial proferida em ação civil pública, favorecendo os interessados em determinado empreendimento imobiliário, e que pode, ademais, beneficiar outros futuros ao tecer artifício para ineficácia da legislação urbanística do Município.

                   Não é novidade alguma o controle concentrado de constitucionalidade de lei ou ato normativo por desvio de poder. A esse respeito, reporta-se a elucidativo escólio da lavra de Caio Tácito:

“No exercício de suas atribuições e nas matérias a eles afetas, os órgãos legislativos, em princípio, gozam de discricionariedade peculiar à função política que desempenham.

Temos, contudo, sustentando a necessidade de temperamento da latitude discricionária de ato do Poder Legislativo, ainda que fundado em competência constitucional e formalmente válido.

O princípio geral de Direito de que toda e qualquer competência discricionária tem como limite a observância da finalidade que lhe é própria, embora historicamente vinculado à atividade administrativa, também se compadece, a nosso ver, com a legitimidade da ação do legislador.

Tivemos, oportunidade de sustentar, perante o STF, em duas oportunidades, a nulidade de leis estaduais em que, no término de governos vencidos nas urnas, eram criados cargos públicos em número excessivo, não reclamados pela necessidade pública, e comprometendo gravemente as finanças do Estado, tão-somente para o aproveitamento de correligionários ou de seus familiares.

Para o desfazimento dessas leis, que caracterizavam os chamados ‘testamentos políticos’, o STF consagrou a tese da validade de novas leis que, anulando leis inconstitucionais, reconheciam o abuso pelos Poderes Legislativos estaduais da competência, em princípio discricionária, da criação de cargos públicos.

O primeiro acórdão, proferido no MS 7.243, em sessão de 20.1.69, manteve a anulação de leis do Estado do Ceará com as quais, no apagar das luzes de uma situação política derrotada, em apenas 56 dias, mediante 25 atos legislativos foram instituídos, sob a forma de criação ou transformação, 3.784 novos cargos públicos, o que equivalia a um-terço do total do funcionalismo estadual então existente, estimado em 12.000 servidores, elevando o custo mensal do pessoal a 94,24% das rendas do Estado.

Por essa forma, violava-se norma expressa da Constituição estadual, que fixava o teto de 50% para a vinculação da receita ao custeio do funcionalismo público, e se objetivava impedir o funcionamento regular do Poder Executivo, no período do novo mandato que se ia inaugurar.

Em comentário a essa decisão, que firmou precedente memorável, destacávamos a importância da tese por ela abonada:

‘A competência legislativa para criar cargos públicos visa ao interesse coletivo de eficiência e continuidade da administração. Sendo, em sua essência, uma faculdade discricionária, está, no entanto, vinculada à finalidade, que lhe é própria, não podendo ser exercida contra a conveniência geral da coletividade, com o propósito manifesto de favorecer determinado grupo político, ou tornar ingovernável o Estado, cuja administração passa, pelo voto popular, às mãos adversárias.

‘Tal abandono ostensivo do fim a que se destina a atribuição constitucional configura autêntico desvio de poder (détournement de pouvoir), colocando-se a competência legislativa a serviço de interesses partidários, em detrimento do legítimo interesse público’ (RDA 59/347 e 348).

A mesma situação se renovou, no Estado do Rio Grande do Norte, perante outro testamento político de um governo vencido no pleito eleitoral sucessório, em que se comprometia desmedidamente o erário, elevando a mais de 80% a despesa com o funcionalismo público.

Em decisão proferida na Repr. 512, julgada, por unanimidade, pelo Tribunal Pleno, em sessão de 7.12.62, o STF reputou legítima a anulação, pela Assembléia Legislativa, de leis inconstitucionais que compunham o testamento político em causa.

Em memorial oferecido como advogado do novo governo estadual, ponderávamos que ‘o desvio de poder legislativo, caracterizado no inventário político, ofende o princípio da independência e harmonia dos Poderes, além de violar a Constituição estadual’.

Em acórdãos posteriores os RE 48.655 e 50.219 (RDA 78/269 e 281), aplicando a orientação firmada, a Corte Suprema reafirmou a tese da anulação, pelo Poder Legislativo, de seus próprios atos inconstitucionais.

A acolhida do cabimento do desvio de finalidade como vício de inconstitucionalidade fora anteriormente abonada em outro julgado do STF em voto do Min. Orozimbo Nonato, relator do RE 18.331, que, nos termos da respectiva ementa, após recordar o conhecido axioma de que o poder de taxar não se pode extremar como poder destruir, destaca: ‘É um poder cujo exercício não deve ir até o abuso, o excesso, o desvio, sendo aplicável, ainda que, a doutrina fecunda do détournement de pouvoir’ (RF 145/146).

O excesso do poder de taxar foi igualmente repelido com respeito à lei do Estado do Rio de Janeiro que exigia taxa judiciária em termos excessivos, sem correspondência com o serviço prestado (Repr. 1.077, RTJ 11/55).

Comentando o sentido inovador da jurisprudência do Pretório Excelso, registra Seabra Fagundes, entre as fecundas criações pretorianas, ‘a extensão da teoria do desvio de poder originária e essencialmente dirigida aos procedimentos dos órgãos executivos, aos atos do poder legiferante, de maior importância num sistema de Constituição rígida, em que se comete ao Congresso a complementação do pensamento constitucional nos mais variados setores da vida social, econômica e financeira’ (RF 151/549).

Em decisão de 31.8.67, no RMS 16.912, o tema do desvio de poder como vício especial do ato legislativo foi expressamente invocado.

Apreciando lei de organização judiciária na qual se inseria emenda em benefício de determinado serventuário, advertiu o Min. Prado Kelly: ‘tratava-se de reforma judiciária e a emenda representou um desvio de poder na própria legislatura’. Sendo o mesmo Ministro as seguintes expressões: ‘Tenho por demonstrado que a emenda não obedeceu ao presumido escopo de interesse público e sim a uma inspiração que nem por ser equânime ou reparadora (como pareceu ao interveniente) deixa de ser particularista ou de favorecimento pessoal’.

Nessa decisão plenária, o Min. Victor Nunes Leal, após aderir à posição ‘de que podemos exercer controle sobre os desvios de poder da própria legislatura’, convocado por interpelação do Min. Aliomar Baleeiro a declarar ‘se admitia um desvio de poder do Poder Legislativo fora do caso de inconstitucionalidade’, não vacilou em afirmar categoricamente: ‘Admito’ (acórdão no RMS 16.912, RTJ 45/530-545, especialmente pp. 536 e 537).

Em questão relativa à permissão para explorar linhas de ônibus, o STF apreciou a incidência do desvio de poder legislativo, admitindo, em tese, a aplicação do princípio (RTJ 47/650 e 48/165).

Em três situações o STF repeliu, por inconstitucionalidade, a aplicação de sanções administrativas com a finalidade real de constranger o contribuinte à regularidade fiscal.

Decidiu a Corte Suprema que ‘é inadmissível a interdição de estabelecimento ou apreensão de mercadorias como meio coercitivo para a cobrança de tributo’ (Súmulas 70 e 323).

E, dilatando o princípio à inconstitucionalidade dos Decs.- leis 5 e 42, de 1937 – que restringiam indiretamente a atividade comercial de empresas em débito, impedindo-as de comprar selos ou despachar mercadoria – implicitamente configurou o abuso de poder legislativo (Súmula 547 e acórdão no RE 63.026, RDA 10/209).

O excesso legislativo foi invocado em acórdão do STF no RE 62.731, do qual foi Relator o Min. Aliomar Baleeiro. Afirmou-se a inconstitucionalidade de decreto-lei que vedava a purgação de mora em locações. Destacou a ementa da decisão a impertinência do fundamento por se tratar de ‘assunto miúdo de Direito Privado’ que não se incluía no conceito de segurança nacional, necessário àquela forma de processo legislativo (RDA 94/169).

O poder de polícia nas profissões somente pode ser exercido com observância do princípio da razoabilidade, afirmou o acórdão na Repr. 930 (apud Gilmar Ferreira Mendes, ob. cit., p. 451).

E porque o impedimento do exercício profissional da advocacia há juizes aposentados até dois anos após a inatividade ofendia o princípio da razoabilidade, foi declarada a inconstitucionalidade da lei que estabelecia tal interdição temporária, por violação àquele princípio (Repr. 1.054, RTJ 112/7).

Em parecer no qual analisamos a inconstitucionalidade de deliberação do Banco Central do Brasil determinante da indisponibilidade de contas bancárias do Estado – membro a suas empresas, enfatizávamos que ‘importa desvio do Poder Legislativo decreto lei que se utilize do bloqueio de contas bancárias como meio de cobrança regressiva de aval a empréstimos externos’ (RDA 172/239).

Em outro parecer relativo à validade da lei municipal que subordinava a permissão de funcionamento de estabelecimentos comerciais aos sábados e domingos à prévia aprovação pelos órgãos sindicais, entendíamos ocorrer violação da competência legal, a ser exercida pelo Município, como emanação do poder de polícia.

Ressaltamos que, obrigando à intervenção dos sindicatos para a obtenção de licença especial de funcionamento, o legislador teve em mira o fortalecimento do sistema sindical, invadindo órbita de competência privativa da União.

Concluímos, assim, que, ‘a toda evidencia, a lei municipal, visando, a beneficiar o movimento sindical está maculada pelo vício de abuso do poder normativo, caracterizado como desvio de finalidade’ (RDA 164/460).

O tema do desvio de poder legislativo foi amplamente estudado, no Direito italiano, por Lívio Paladin, em ensaio sob o título ‘Osservazioni sulla discrezionalità e sull’eccesso di potere del legislatore ordinario’ (Rivista Trimestrale di Diritto Pubblico, ano VI, 4/993-1.046, outubro – dezembro/56).

Pondera o autor que: ‘L’illegitimità di ogni fine, diverso da quello costituzionalmente previsto, consente logicametne di configurare, sul piano legisltaivo, qual vizio della causa degli atti amministrativi, ch è l’ecesso di potere’ (‘A ilegitimidade de todo fim, diverso daquele constitucionalmente previsto, conduz logicamente afigurar-se, no plano legislativo, aquele vício de causa dos atos administrativos, que é o excesso de poder’) (Rivista cit. p. 1.031).

A figura do desvio de poder legislativo foi, pioneiramente, sustentada por Santi Romano, que, reconhecendo o poder discricionário do legislador, destaca, porém, o limite que se impõe em face da finalidade da competência legislativa: ‘ma la figura dele potere discrezionale richiede per l’appunto che di esse si faccia uso conforme alle finalità da cui il potere medismo deriva; si há altrimenti uno sviamento di potere, che costituisse uma violazione di direitto, nel senso più próprio della parola. Son concetti questi di commune applicazione riguado alle compentenza degli oragnia amministrativi e non si saprebbe indicarei l pechè non possono riferirsi, nella loro generalità, al Parlamento. In certi campoi della sua funzione legislativa, questo non há poteri sconfinati, ma poteri discricionali, il che vuol dire litate, e non altro, dall’obbligo di fare uso per dati motivi’ (‘mas a figura do poder discricionário reclama precisamente que dele se faça uso conforme à finalidade, da qual o próprio poder deriva: há de outra forma um desvio de poder que constitui uma violação de direito no sentido próprio da palavra. São conceitos estes de aplicação comum no que se refere à competência dos órgãos administrativos, e não se saberá indicar por que não parecem se referir em sua generalidade, ao Parlamento. Em certos campos de sua competência legislativa, este não possui poderes sem fronteiras, mas poderes discricionários, importa dizer, limitados pelo menos da obrigação de fazer uso por motivos determinados’) (‘Osservazioni preliminari per uma teoria sui limite della funzione legislativa nel Diritto Pubblico’, 1902, e incluído na coletânea Scriti Minori – Diritto Costituzionale, v. I/199, 1950).

Não é outro o pensamento de Costantino Mortati quando adverte que ‘a lei poderá estar viciada de inconstitucionalidade não somente quando o interesse perseguido contrasta com aquele imposto pela Constituição, mas também nos casos em que o próprio teor da lei está em absoluta incongruência com a norma editada e o fim do interesse público a ser perseguido e o próprio legislador afirma pretender perseguir. Verifica-se, nessa ultima hipótese, uma modalidade de vício de legitimidade assimilável ao excesso de poder administrativo’ (‘la legge può risultare viziata per incostituzionalità non solo quando l’interesse perseguito contrasta com quelllo imposto dalla Costituzione, ma anche nei casi in cui dallo stesso tenore della legge risulti un’assouta incongruenza fra la norma dettata ed il fine di pubblico interesse che si doveva perseguire e che lo stesso legislatore assume di volere perseguire. Si verificherebbe in quest’ultima ipotese un’ipotesi di vizio della legittimità assimilabile a quello dell’eccesso di potere amministrativo’) (verbete ‘Discricionalità’, Novissimo Digesto Italiano, v. V/1.09).

Entendemos, em suma, que a validade da norma de lei, ato emanado do Legislativo, igualmente se vincula à observância da finalidade contida na norma constitucional que fundamenta o poder de legislar.

O abuso de poder legislativo, quando excepcionalmente caracterizado, pelo exame dos motivos, é vício especial de inconstitucionalidade da lei, pelo divórcio entre o endereço real da norma atributiva da competência e o uso ilícito que a coloca a serviço de interesse incompatível com a sua legitima destinação.

Gilmar Ferreira Mendes dedicou capítulo especial de sua monografia sobre controle de constitucionalidade à avaliação do excesso de poder legislativo como vício substancial de inconstitucionalidade. Com apoio na doutrina alemã e na lição de Canotilho, evidencia a prevalência da vinculação do ato legislativo a uma finalidade e à aplicação do princípio da proporcionalidade como elemento da legitimidade constitucional das leis. Oferece, como exemplos, precedentes colhidos na jurisprudência do STF (Controle de Constitucionalidade, Saraiva, 1990, pp. 38-54).

Canotilho adverte que a lei é vinculada ao fim constitucionalmente fixado e ao princípio de razoabilidade a fundamentar ‘a transferência para os domínios da atividade legislativa da figura do desvio de poder dos atos administrativos’ (Direito Constitucional, 4ª ed., 1986, p. 739)”.

                   E, mais amplamente, o mesmo autor estuda o desvio de poder legislativo diante do princípio de que “as leis estão todas positivamente vinculadas quanto a fim pela Constituição” (Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador, Coimbra, 1982, p. 259)’. (Caio Tácito. “Desvio de Poder no Controle dos Atos Administrativos, Legislativos e Jurisdicionais”, in Revista Trimestral de Direito Público, n. 04, São Paulo: Malheiros, 1993, pp. 33-37).

                  Não se justifica a elaboração de uma lei direcionada a certos grupos ou interesses econômicos, fato que afasta características essenciais da norma tais como a generalidade e a abstratividade, e que serviu para superação de sentença, o que rompe totalmente com os predicados de ajustamento aos padrões éticos de conduta na vida pública e à perseguição do interesse público primário sem discriminações ou favorecimentos.

III – Pedido liminar

                   À saciedade demonstrado o fumus boni iuris, pela ponderabilidade do direito alegado, soma-se a ele o periculum in mora. A atual tessitura da legislação contestada, apontada como violadora da Constituição do Estado de São Paulo, é sinal, de per si, para suspensão de sua eficácia até final julgamento desta ação, evitando-se atuação desconforme com o ordenamento jurídico, criadora de lesão irreparável ou de difícil reparação em face do licenciamento de construções e edificações lastreado em norma inconstitucional com grave perturbação à ordem urbanística, às funções sociais da cidade e à qualidade de vida de seus moradores.

                   À luz desta contextura, requer a concessão de liminar para suspensão da eficácia, até final e definitivo julgamento desta ação, da Lei n. 8.750, de 14 de julho de 2016, do Município de Araraquara.

IV – PEDIDO

                   Face ao exposto, requer-se o recebimento e processamento da presente ação, para que ao final seja julgada procedente, declarando a inconstitucionalidade da Lei n. 8.750, de 14 de julho de 2016, do Município de Araraquara.

                   Requer-se, ainda, sejam requisitadas informações à Câmara Municipal e à Prefeitura Municipal de Araraquara, bem como, em seguida, citado o Procurador-Geral do Estado para manifestar-se sobre o ato normativo impugnado, e, posteriormente, aguarda-se vista para fins de manifestação final.

         Termos em que, pede deferimento.

São Paulo, 23 de janeiro de 2017.

 

 

Gianpaolo Poggio Smanio

Procurador-Geral de Justiça

 

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Protocolado nº 133.580/16

Interessado: Doutor José Carlos Monteiro – 2º Promotor de Justiça de Araraquara

Objeto: representação para controle de constitucionalidade da Lei n. 8.750, de 14 de julho de 2016, do Município de Araraquara

 

        

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

1.     Distribua-se a petição inicial da ação direta de inconstitucionalidade impugnando a Lei n. 8.750, de 14 de julho de 2016, do Município de Araraquara, junto ao Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, instruída com o protocolado em epígrafe referido.

2.     Oficie-se ao interessado, informando-lhe a propositura da ação, com cópia da petição inicial e deste despacho.

3.     Observo, por fim, e data venia, que não anima o contencioso objetivo de constitucionalidade por via de ação direta as teses de (a) invasão de objeto de lei complementar por envolver, confronto com a Lei Orgânica Municipal, e (b) vedação do retrocesso ambiental pelo contraste com a lei complementar municipal indicada, o Plano Diretor e o Estatuto das Cidades, nos termos em que expostas na representação, à vista da jurisprudência sublinhando que é “inviável a análise de outra norma municipal para aferição da alegada inconstitucionalidade da lei” (STF, AgR-RE 290.549-RJ, 1ª Turma, Rel. Min. Dias Toffoli, 28-02-2012, m.v., DJe 29-03-2012), e que “a pretensão de cotejo entre o ato estatal impugnado e o conteúdo de outra norma infraconstitucional não enseja ação direta de inconstitucionalidade” (STF, AgR-ADI 3.790-PR, Tribunal Pleno, Rel. Min. Menezes Direito, 29-11-2007, v.u., DJe 01-02-2008).

 

                   São Paulo, 23 de janeiro de 2017.

 

 

Gianpaolo Poggio Smanio

Procurador-Geral de Justiça

 

wpmj