EXCELENTÍSSIMO SENHOR DESEMBARGADOR PRESIDENTE DO EGRÉGIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Protocolado nº 147.655/16

 

 

                                              

Constitucional. Ação Direta de Inconstitucionalidade. Decreto Legislativo n. 01/2016, de 22 de março de 2016, e do Decreto Legislativo n. 002/2016, de 30 de agosto de 2016, da Câmara Municipal de Queluz. Anulação do Decreto Legislativo n. 08/2014 que rejeitou as contas do Prefeito e aprovação das contas. Separação de poderes. Controle externo. Irretratabilidade do julgamento de contas. Segurança jurídica. Legalidade e motivação. Moralidade e impessoalidade.

1. Rejeitadas as contas do Chefe do Poder Executivo relativas ao exercício de 2011 (Decreto Legislativo n. 08/2014) é descabida sua revisão, pelo próprio Poder Legislativo, mediante anulação (Decreto Legislativo n. 01/2016) e aprovação das contas (Decreto Legislativo n. 02/2016) porque exaurida a competência da Câmara Municipal com o primitivo julgamento à vista da irretrabilidade dessa decisão, sem prejuízo de seu controle jurisdicional.

2. Atos normativos que desalinham da segurança jurídica e que são incompatíveis com os princípios de legalidade, motivação, moralidade e impessoalidade porque deflagrados os respectivos processos por edil irmão do ex-alcaide beneficiário.

 

 

 

 

 

 

 

                   O PROCURADOR-GERAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO, no exercício da atribuição prevista no art. 116, inciso VI, da Lei Complementar Estadual nº 734, de 26 de novembro de 1993, e em conformidade com o disposto no art. 125, § 2º, e no art. 129, inciso IV, da Constituição da República, e ainda no art. 74, inciso VI, e no art. 90, inciso III, da Constituição do Estado de São Paulo, com amparo nas informações colhidas no incluso protocolado (PGJ nº 0120042/16), vem perante esse Egrégio Tribunal de Justiça promover a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE em face do Decreto Legislativo n. 01/2016, de 22 de março de 2016, e do Decreto Legislativo n. 002/2016, de 30 de agosto de 2016, da Câmara Municipal de Queluz, pelos fundamentos expostos a seguir expostos:

I - OS ATOS NORMATIVOS IMPUGNADOS

                   A Câmara Municipal de Queluz editou em 09 de setembro de 2015 o Decreto Legislativo n. 08/14 (fl. 543), fruto de competente processo legislativo (fls. 372/559) com o seguinte teor:

Artigo 1º - Ficam rejeitadas as contas apresentadas pela Prefeitura Municipal de Queluz, relativas ao exercício financeiro de 2011 - Gestão do Prefeito José Celso Bueno.

Parágrafo único. A rejeição ocorreu em conformidade com o parecer desfavorável exarado pelo Egrégio Tribunal de Contas do Estado de São Paulo, às fls. 248/249 e o relatório às fls. 219/233 do TC nº 001380/026/11 e ainda em conformidade com o não provimento do pedido de reexame às fls. 178/179, atendido o artigo 51 da Lei Orgânica Municipal de Queluz.

Artigo 2º - Este decreto entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.

                   Em 16 de fevereiro de 2016 a Presidência da Câmara Municipal de Queluz apresentou o Projeto de Decreto Legislativo n. 01/2016 para anulação do Decreto Legislativo n. 08/2014 (fls. 647/648) atendendo solicitação do Vereador Silvio José Bueno (fls. 650/655), irmão do ex-Prefeito (fl. 497). Em consequência foi expedido o Decreto Legislativo n. 01/2016 em 22 de março de 2016 (fl. 656) com o seguinte teor:

Artigo 1º - Fica anulado o Decreto Legislativo nº 08/2014 que rejeitou as Contas apresentadas pela Prefeitura Municipal de Queluz, relativas ao Exercício Financeiro de 2011 - Gestão do Prefeito José Celso Bueno, que acompanhou o parecer emitido pelo Tribunal de Contas do Estado de São Paulo.

Artigo 2º - Este Decreto entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.

                   Em 04 de abril de 2016 a Presidente da Câmara apresentou o Projeto de Decreto Legislativo n. 002/2016 para rejeição das contas de 2011 da Prefeitura Municipal de Queluz da gestão do Prefeito José Celso Bueno (fls. 657/658). Desenvolvido o processo legislativo (fls. 659/744), escorada no parecer da Comissão de Finanças e Orçamento a Câmara Municipal de Queluz aprovou as contas editando o Decreto Legislativo n. 002/2016, em 30 de agosto de 2016 (fl. 745), com a seguinte redação:

Artigo 1º - Ficam aprovadas as Contas apresentadas pela Prefeitura Municipal de Queluz, relativas ao Exercício Financeiro de 2011 – Gestão do Prefeito José Celso Bueno.

Parágrafo único – A aprovação ocorreu em conformidade com o Parecer exarado pela Comissão Permanente de Finanças e Orçamento fls. 80/84.

Artigo 2º - Este Decreto entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.

                   Segundo informações da Câmara Municipal de Queluz o Decreto Legislativo n. 01/2015 (fls. 638/639), estadeado no Projeto de Decreto Legislativo n. 001/15 (fls. 560/646), que rejeitou as contas do exercício de 2012 encontra-se em vigor pendente deliberação de pedido de revisão. Neste processo legislativo o Vereador Silvio José Bueno, irmão do ex-Prefeito José Celso Bueno, se afastou da sessão.

                   Também relatou que a anulação do Decreto Legislativo n. 08/2014 foi tomada por unanimidade de votos com base na Súmula 473 do Supremo Tribunal Federal e nos princípios de publicidade, transparência, ampla defesa e contraditório, eis que:

“Os Edis entenderam que a falta de ciência os vereadores faltantes acerca da desconvocação de seus suplentes ocasionou prejuízo ao interessado. Observa-se que a desconvocação dos suplentes ocorreu minutos antes do início da Sessão de julgamento das Contas. Assim, dois vereadores deixaram de votar, por falta de comunicação da desconvocação de seus suplentes. Sendo que a convocação não deveria ter sido realizada, tendo em vista falta de previsão legal” (fls. 370/371).

                   Lendo o processo legislativo do Decreto Legislativo n. 08/2014 percebe-se que o irmão do ex-Prefeito José Celso Bueno, Vereador Silvio José Bueno, era membro da Comissão de Finanças e Orçamento, e em razão desse vínculo familiar o Presidente da Câmara verificou seu impedimento designando em substituição o Vereador Valdecir Nascimento Gomes (fls. 497) e o colegiado, então, ofereceu parecer contrário à aprovação das contas acompanhando o Tribunal de Contas (fls. 507/522).

                   Divulgada a ordem do dia da 27ª sessão extraordinária de 08 de setembro de 2014, com a inclusão do Projeto de Decreto Legislativo n. 08/2014 (fls. 525/529), o Vereador Silvio José Bueno requereu, em 04 de setembro de 2014, seu afastamento da sessão (fl. 531) com fundamento no art. 38 da Lei Orgânica do Município e no art. 9º, V, do Regimento Interno, e a Vereadora Paula Elias da Silva requereu licença para tratar de assuntos de interesse particular entre 08 e 12 de setembro de 2014 na mesma data (fl. 531), sendo convocados no mesmo dia os suplentes Emilson Carlos Prado Soares (fl. 535) e Luis Fernando Paulino (fl. 537). O citado art. 38 da Lei Orgânica assim dispõe:

Não poderá votar o Vereador que tenha interesse pessoal na deliberação, anulando-se a votação, se o seu voto for decisivo.

                   Entretanto, parecer da Procuradora Jurídica opinou pela impossibilidade jurídica da convocação dos suplentes porque não superior o afastamento a 30 (trinta) dias (fls. 539/540), como determina o art. 20 da Lei Orgânica Municipal de Queluz:

No caso de vaga, licença por mais de 30 (trinta) dias ou investidura no cargo de Secretário Municipal ou equivalente, far-se-á convocação do suplente pelo Presidente da Câmara.

                   Tal parecer foi acolhido integralmente pelo Presidente da Edilidade que determinou o cancelamento da convocação dos suplentes em despacho de 08 de setembro de 2014 (fl. 539), do qual foram cientificados (fls. 541/542), tanto que ausentes à sessão assim como os que seriam substituídos (fl. 545). O projeto de decreto legislativo foi aprovado por 05 (cinco) votos favoráveis, registrando-se 01 (um) voto adverso.

                   Por sua vez, no processo legislativo do Decreto Legislativo n. 01/2016, que anulou o Decreto Legislativo n. 08/2014, a solicitação de sua nulidade partiu de requerimento do Vereador Silvio José Bueno, irmão do ex-Prefeito José Celso Bueno, que reclamou da omissão de convocação dos titulares – inclusive ele – em razão do cancelamento do chamamento dos suplentes (fls. 650/655).

II – ADMISSIBILIDADE DO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE

                   Os atos normativos impugnados, ainda que reputados de efeitos concretos, são suscetíveis de controle jurisdicional de constitucionalidade por via de ação, uma vez que traz em si e reveste formalmente de ato normativo com clara violação a princípios constitucionais. A jurisprudência constitucional vem flexibilizando a denegação de trânsito da sindicância de constitucionalidade dos denominados atos normativos de efeito concreto, especialmente quando veiculam questões sensíveis ou uma controvérsia constitucional suscitada em abstrato – como no presente caso, em que ela consiste em grave violação ao princípio da moralidade bem como do devido processo legal administrativo. Neste sentido, já se decidiu:

“(...) 4. Preliminar de não-cabimento rejeitada: o Supremo Tribunal Federal deve exercer sua função precípua de fiscalização da constitucionalidade das leis e dos atos normativos quando houver um tema ou uma controvérsia constitucional suscitada em abstrato, independente do caráter geral ou específico, concreto ou abstrato de seu objeto. Possibilidade de submissão das normas de diretrizes orçamentárias ao controle abstrato de constitucionalidade. Precedentes. (...)” (RTJ 212/372).

“(...) II. CONTROLE ABSTRATO DE CONSTITUCIONALIDADE DE NORMAS ORÇAMENTÁRIAS. REVISÃO DE JURISPRUDÊNCIA. O Supremo Tribunal Federal deve exercer sua função precípua de fiscalização da constitucionalidade das leis e dos atos normativos quando houver um tema ou uma controvérsia constitucional suscitada em abstrato, independente do caráter geral ou específico, concreto ou abstrato de seu objeto. Possibilidade de submissão das normas orçamentárias ao controle abstrato de constitucionalidade. (...)” (RTJ 206/232).

“(...) No julgamento da ADI 4.048-MC/DF, Rel. Min. Gilmar Mendes, esta Corte admitiu o exercício de controle abstrato de leis de efeitos concretos. (...)” (STF, AgR-RE 412.921-MG, 1ª Turma, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, 22-02-2011, DJe 15-03-2011).

“(...) 1. Preliminar de inviabilidade do controle de constitucionalidade abstrato. Alegação de que os atos impugnados seriam dotados de efeito concreto, em razão da possibilidade de determinação de seus destinatários. Preliminar rejeitada. Esta Corte fixou que ‘a determinabilidade dos destinatários da norma não se confunde com a sua individualização, que, esta sim, poderia convertê-lo em ato de efeitos concretos, embora plúrimos’ [ADI n. 2.135, Relator o Ministro Sepúlveda Pertence, DJ de 12.5.00]. 2. A lei estadual impugnada consubstancia lei-norma. Possui generalidade e abstração suficientes. Seus destinatários são determináveis, e não determinados, sendo possível a análise desse texto normativo pela via da ação direta. Conhecimento da ação direta. 3. A lei não contém, necessariamente, uma norma; a norma não é necessariamente emanada mediante uma lei; assim temos três combinações possíveis: a lei-norma, a lei não norma e a norma não lei. Às normas que não são lei correspondem leis-medida [Massnahmegesetze], que configuram ato administrativo apenas completável por agente da Administração, portando em si mesmas o resultado específico ao qual se dirigem. São leis apenas em sentido formal, não o sendo, contudo, em sentido material. (...)” (STF, ADI 820-RS, Tribunal Pleno, Rel. Min. Eros Grau, 15-03-2007, DJe 29-02-2008).

“Recurso extraordinário – Ação direta de inconstitucionalidade de artigos de lei municipal – Normas que determinam prorrogação automática de permissões e autorizações em vigor, pelos períodos que especifica – Comandos que, por serem dotados de abstração e não de efeitos concretos, permitem o questionamento por meio de uma demanda como a presente – Prorrogações que efetivamente vulneram os princípios da legalidade e da moralidade, por dispensarem certames licitatórios previamente à outorga do direito de exploração de serviços públicos – Ação corretamente julgada procedente – Recurso não provido” (STF, RE 422.591-RJ, Tribunal Pleno, Rel. Min. Dias Toffoli, 01-12-2010, v.u., DJe 11-03-2011).

                   De qualquer modo, é útil assentar que decreto legislativo é uma das espécies normativas previstas no art. 59, VI, da Constituição Federal, e no art. 21, IV, da Constituição Estadual.

                   Decreto legislativo é a norma emitida pelo Poder Legislativo em virtude de sua competência exclusiva para determinada matéria, não sujeita à participação do Poder Executivo em seu processo legislativo.

                   Expõe Manoel Gonçalves Ferreira Filho que conforme “a lição de Pontes de Miranda: Decretos legislativos são as leis a que a Constituição não exige a remessa ao Presidente da República para a sanção (promulgação ou veto)” (Curso de Direito Constitucional, São Paulo: Saraiva, 2001, 27ª ed., p. 211).

                   José Afonso da Silva explica que eles “destinam-se a regular as matérias de competência exclusiva do Congresso Nacional arroladas no art. 49. (...) O processo de sua formação não difere do processo de formação das leis ordinárias, menos a sanção e o veto, pois não são submetidos ao Presidente da República, exatamente porque regulam matéria de competência exclusiva do Poder Legislativo. Não são sancionáveis e, em consequência, não estão sujeitos a veto. Percorre o projeto de decreto legislativo os mesmos trâmites das leis ordinárias até sua aprovação pelo Congresso. Aqui cessa a identidade, porque, não tendo sanção, tornam-se atos legislativos acabados com a simples aprovação definitiva, após o quê o texto aprovado é, então, remetido ao presidente do Senado Federal, a quem cabe promulgá-lo e determinar sua publicação” (Comentários contextual à Constituição, São Paulo: Malheiros, 2006, 2ª ed., p. 438).

                   E se afigura decisivo no debate a distinção promovida pelo Supremo Tribunal Federal entre atos normativos primários – como lei e decreto legislativo – e atos normativos subalternos, dispensando aqueles de densidade normativa:

“(...) 1. A lei não precisa de densidade normativa para se expor ao controle abstrato de constitucionalidade, devido a que se trata de ato de aplicação primária da Constituição. Para esse tipo de controle, exige-se densidade normativa apenas para o ato de natureza infralegal. (...)” (RTJ 211/247).

                   Vale ainda ressaltar que os atos normativos impugnados não tiveram seus efeitos exauridos no momento de sua promulgação, espargindo-se para outros domínios como a permanência de seus efeitos no tempo, principalmente no que tange à reponsabilidade do Chefe do Poder Executivo à época e de sua atual elegibilidade. E sob esta ótica importa considerar que a jurisprudência constitucional só inadmite a ação direta de inconstitucionalidade diante de norma de efeito exaurido (RTJ 212/29), e não daquela que possui efeitos prospectivos.

                   Em relação a este aspecto, a título de exemplo, cite-se a eventual incidência das regras previstas na Lei Complementar Federal n. 64/90.

                   Os decretos legislativos em foco têm densidade normativa e eficácia abstrata e genérica para impedir a Administração Pública de instaurar processo administrativo visando à apuração de responsabilidades administrativas.

                   Não obstante, impossível obliterar que a questão nuclear na presente ação é referente aos limites do controle externo e, portanto, remete diretamente ao princípio da separação de poderes, sendo irrelevante as características de abstração, generalidade e indeterminação do ato normativo, mas, sim, sua posição no concerto da divisão funcional do poder.

III – O parâmetro da fiscalização abstrata de constitucionalidade

                   Fixada a viabilidade do controle concentrado de constitucionalidade no caso em foco, o Decreto Legislativo n. 01/2016, de 22 de março de 2016, e o Decreto Legislativo n. 002/2016, de 30 de agosto de 2016, da Câmara Municipal de Queluz, contrariam frontalmente a Constituição do Estado de São Paulo, à qual está subordinada a produção normativa municipal ante a previsão dos arts. 1º, 18, 29 e 31 da Constituição Federal.

                   Os preceitos da Constituição Federal e da Constituição Estadual são aplicáveis aos Municípios não só pelo art. 29 da Constituição da República, mas, também, por força do art. 144 da Constituição do Estado que assim estabelece:

Artigo 144 - Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.

                   As normas contestadas são incompatíveis com os seguintes preceitos da Constituição Estadual:

Artigo 20 - Compete exclusivamente à Assembleia Legislativa:

..............................................................................................VI - tomar e julgar, anualmente, as contas prestadas pela Mesa da Assembleia Legislativa, pelo Governador e pelo Presidente do Tribunal de Justiça, respectivamente do Poder Legislativo, do Poder Executivo e do Poder Judiciário, e apreciar os relatórios sobre a execução dos Planos de Governo;

..............................................................................................

Artigo 33 - O controle externo, a cargo da Assembleia Legislativa, será exercido com auxílio do Tribunal de Contas do Estado, ao qual compete:

I - apreciar as contas prestadas anualmente pelo Governador do Estado, mediante parecer prévio que deverá ser elaborado em sessenta dias, a contar do seu recebimento;

..............................................................................................

Artigo 111 – A administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes do Estado, obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, razoabilidade, finalidade, motivação, interesse público e eficiência.

..............................................................................................

Artigo 144 - Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.

..............................................................................................

Artigo 150 - A fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial do Município e de todas as entidades da administração direta e indireta, quanto à legalidade, legitimidade, economicidade, finalidade, motivação, moralidade, publicidade e interesse público, aplicação de subvenções e renúncia de receitas, será exercida pela Câmara Municipal, mediante controle externo, e pelos sistemas de controle interno de cada Poder, na forma da respectiva lei orgânica, em conformidade com o disposto no artigo 31 da Constituição Federal.

                   Esses preceitos reproduzem ou remetem ao quanto disposto na Constituição Federal:

Art. 5º ...............................................................................

XXXVI - a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada;

.............................................................................................

Art. 31. A fiscalização do Município será exercida pelo Poder Legislativo Municipal, mediante controle externo, e pelos sistemas de controle interno do Poder Executivo Municipal, na forma da lei.

§ 1º - O controle externo da Câmara Municipal será exercido com o auxílio dos Tribunais de Contas dos Estados ou do Município ou dos Conselhos ou Tribunais de Contas dos Municípios, onde houver.

§ 2º - O parecer prévio, emitido pelo órgão competente sobre as contas que o Prefeito deve anualmente prestar, só deixará de prevalecer por decisão de dois terços dos membros da Câmara Municipal.

............................................................................................Art. 49. É da competência exclusiva do Congresso Nacional:

..............................................................................................IX - julgar anualmente as contas prestadas pelo Presidente da República e apreciar os relatórios sobre a execução dos planos de governo;

.............................................................................................Art. 71. O controle externo, a cargo do Congresso Nacional, será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas da União, ao qual compete:

I - apreciar as contas prestadas anualmente pelo Presidente da República, mediante parecer prévio que deverá ser elaborado em sessenta dias a contar de seu recebimento;

                   As normas constitucionais centrais são disposições de observância obrigatória e já eram aplicáveis na órbita estadual e municipal por força do caráter remissivo dos arts. 144 e 150 da Constituição Estadual.

                   Apenas para o devido registro, é cabível o contraste de atos normativos locais a partir de normas remissivas à Constituição Federal contidas nos arts. 144 e 150 da Constituição Estadual e que determinam a observância na esfera municipal, além das regras da Constituição Estadual, dos princípios da Constituição Federal, como averbou o Supremo Tribunal Federal (STF, Rcl 10.406-GO, Rel. Min. Gilmar Mendes, 31-08-2010, DJe 06-09-2010; STF, Rcl 10.500-SP, Rel. Min. Celso de Mello, 18-10-2010, DJe 26-10-2010).

                   Daí resulta a possibilidade de contraste das normas locais impugnadas com os arts. 144 e 150 da Constituição Estadual, por sua remissão à Constituição Federal e, em especial, aos arts. 5º, XXXVI, 31, 49, IX, e 71, I, desta, até porque o princípio da segurança jurídica e as regras inerentes ao sistema de controle externo (freios e contrapesos) decorrentes ao princípio da divisão funcional do poder no aspecto do controle externo constituem normas de observância obrigatória, não bastasse a reprodução nos arts. 20, VI, e 33, I, da Constituição Estadual e a existência de fundamentação autônoma na Constituição do Estado fincada nos princípios de legalidade, motivação, moralidade e impessoalidade (art. 111).

                   O princípio da simetria é conducente à observância obrigatória de normas constitucionais centrais pelos Estados, pelo Distrito Federal e pelos Municípios no aspecto do inter-relacionamento e da harmonia dos Poderes para não suprimir a autonomia destes (STF, AgR-RE 655.647-MA, 1ª Turma, Rel. Min. Dias Toffoli, 11-11-2014, v.u., DJe 19-12-2014).

                   Embora o Município seja dotado de autonomia política e administrativa no sistema federativo (arts. 1º e 18, Constituição Federal), esta autonomia não tem caráter absoluto, pois, se limita ao âmbito prefixado pela Constituição Federal, como diz José Afonso da Silva (Direito constitucional positivo, 13.ª ed., São Paulo, Malheiros, 1997, p. 459), e deve ser exercida com a observância dos princípios contidos na Constituição Federal e na Constituição Estadual.

                   A Lei Orgânica e a legislação dos Municípios devem observância ao disposto na Constituição Federal e na respectiva Constituição Estadual, notadamente naquilo que refletir princípios sensíveis, fundamentais, gerais, e ao esquema de separação de poderes. Eventual ressalva à aplicabilidade das Constituições federal e estadual só teria, ad argumentandum tantum, espaço naquilo que a própria Constituição da República reservou como privativo do Município, não podendo alcançar matéria não inserida nessa reserva nem em assunto sujeito aos parâmetros limitadores da auto-organização municipal ou aqueles que contêm remissão expressa ao direito constitucional federal ou estadual.

                   Tratando-se do controle externo da Administração Pública e por compor o sistema de freios e contrapesos que permite a harmonia entre os Poderes, segundo a concepção política de divisão funcional do poder, as competências são de direito estrito e devem obediência às regras centrais.

                   Ao decidir sobre as contas que o Prefeito deve anualmente prestar, a Câmara Municipal esgota sua competência, razão pela qual não poderia rever sua decisão anterior. Não é possível que, em momento posterior, anule sua decisão e, para agravar, aprove contas que outrora havia rejeitado, em decisões que espargem efeitos inclusive na esfera do status civitatis do gestor público.

                   A competência constitucional das Câmaras Municipais é restrita ao julgamento das contas e com ele é exaurido, descabendo anulação e revisão por atos próprios.

                   Portanto, o Decreto Legislativo n. 01/2016, de 22 de março de 2016, e o Decreto Legislativo n. 002/2016, de 30 de agosto de 2016, da Câmara Municipal de Queluz, são incompatíveis com os arts. 20, 33, I, e 150 da Constituição Estadual.

                   Cumpre registrar que a questão motivadora da propalada nulidade da sessão de julgamento havia sido equacionada pela Presidência da Câmara, cientificados os suplentes do cancelamento de suas convocações (fls. 541/542), e havia quórum para deliberação e rejeição das contas mantendo o parecer do Tribunal de Contas. Não cabia à Presidência à vista de requerimentos de afastamento e licença reconvocar os edis titulares ao decidir pelo cancelamento da convocação dos substitutos seja porque o edil tem direito à licença seja porque o outro estava impedido de votar.

                   Outro argumento converge. A matéria não poderia ser revista pelo mesmo órgão, sob pena de ofensa à coisa julgada administrativa. Ensina Maria Sylvia Zanella Di Pietro que:

“No processo administrativo, só existe a coisa julgada formal; não existe coisa julgada material, porque a decisão proferida na esfera administrativa é passível de apreciação pelo Poder Judiciário. Portanto, a expressão coisa julgada, no Direito Administrativo, não tem o mesmo sentido que no Direito Judiciário. Ela significa apenas que a decisão se tornou irretratável pela própria Administração” (Direito Administrativo, 29ª ed.,  Rio de Janeiro: Forense, 2016).

                   Julgadas as contas que o Prefeito deve anualmente prestar não poderá haver retratação, sob pena de manifesta afronta ao princípio da segurança jurídica (artigo 5º, XXXVI, da Constituição da República). Trata-se de ato jurídico perfeito o julgamento das contas pelo Poder Legislativo. A propósito a seguinte decisão do Supremo Tribunal Federal:

“As contas públicas dos chefes do Executivo devem sofrer o julgamento – final e definitivo – da instituição parlamentar, cuja atuação, no plano do controle externo da legalidade e regularidade da atividade financeira do presidente da República, dos governadores e dos prefeitos municipais, é desempenhada com a intervenção ad coadjuvandum do Tribunal de Contas. A apreciação das contas prestadas pelo chefe do Poder Executivo – que é a expressão visível da unidade institucional desse órgão da soberania do Estado – constitui prerrogativa intransferível do Legislativo, que não pode ser substituído pelo Tribunal de Contas, no desempenho dessa magna competência, que possui extração nitidamente constitucional” (STF, AgR-MC-Rcl 14.155, Rel. Min. Celso de Mello, 20-08-2012, DJe 22-08-2012).

                   O Tribunal Superior Eleitoral também se pronunciou sobre a matéria:

“2. O entendimento desta Corte é firme no sentido de que ‘rejeitadas as contas de Chefe do Poder executivo, por meio de decretos legislativos, antecedidos de pareceres da Corte de Contas, a Câmara Municipal não pode editar novo decreto, revogando os anteriores, sem ofensa ao art. 31, § 2°, in fine, da Constituição Federal’ (REspe nº 29.684, de 30.09.2008, ReI. Min. Marcelo Ribeiro). Isto porque, ao contrário da coisa julgada judicial, que é absoluta, a coisa julgada administrativa é relativa, significando apenas que um determinado assunto, decidido administrativamente, não poderá ser rediscutido naquela via, mas apenas pelo Judiciário, em razão do princípio da inafastabilidade da função jurisdicional. Há mera preclusão de efeito interno, pois uma decisão jurisdicional administrativa continua a ser um ato administrativo, definitivo para a Administração, mas não para o Judiciário” (TSE, Ag-Respe n. 32.534, Rel. Min. Joaquim Barbosa, 13-11-2008).

                   Acerca do tema assim decidiu este Colendo Órgão Especial:

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE PEDIDO DE ADMISSÃO DO PREFEITO MUNICIPAL COMO AMICUS CURIAE NÃO PREENCHIMENTO DOS REQUISITOS DO §2º, DO ART. 7º, DA LEI Nº 9.868/99 PEDIDO INDEFERIDO DECRETO LEGISLATIVO, DO MUNICÍPIO DE GUAREÍ, Nº 55, DE 3 DE MAIO DE 2012 QUE REVOGA O DECRETO LEGISLATIVO Nº 46, DE 30 DE NOVEMBRO DE 2009, QUE REJEITAVA AS CONTAS DO PREFEITO MUNICIPAL REFERENTES AO EXERCÍCIO DE 2006 - INCONSTITUCIONALIDADE PATENTE DESRESPEITO AOS PRINCÍPIOS DA LEGALIDADE, MOTIVAÇÃO E MORALIDADE QUE REGEM OS ATOS FISCALIZATÓRIOS EXERCIDOS PELO ENTE PÚBLICO EM QUESTÃO INCONSTITUCIONALIDADE DECRETADA AÇÃO PROCEDENTE” (ADI n. 2234539-52.2015.8.26.0000, Rel. Des. Ferraz de Arruda, 13-04-2016).

                   Portanto, o Decreto Legislativo n. 01/2016, de 22 de março de 2016, e o Decreto Legislativo n. 002/2016, de 30 de agosto de 2016, da Câmara Municipal de Queluz, são incompatíveis com o art. 144 da Constituição Estadual por sua remissão ao art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal.

                   Além disso, é preciso ter em conta a incompatibilidade dos decretos legislativos inquinados com princípios de extrema importância que balizam o exercício das funções estatais, como os de legalidade, motivação, moralidade, impessoalidade, inscritos no art. 111 da Constituição Estadual, que reproduz o art. 37, caput, da Constituição Federal.

                   Sobre os dois primeiros, trago à colação a fundamentação do precioso precedente deste Órgão Especial acima referido e cujas premissas são integralmente aplicáveis:

“Feriu o princípio da legalidade porque já havia sido julgada a prestação de contas do então prefeito municipal e exaurido o respectivo procedimento fiscalizatório com a edição do Decreto 46, de 30 de setembro de 2009.

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Feriu também o princípio da motivação porquanto não poderia o Decreto questionado inovar na sua motivação para então aprovar as contas anterior e regularmente rejeitadas”.

                   Não parece conforme a ética pública, sobretudo nas relações de controle do poder, e, aliás, tem-se beneficiário próprio, o Poder Legislativo rever seus atos definitivos porque, a qualquer momento, segundo a existência de maioria episódica, novos julgamentos poderiam ser realizados visando perseguições ou favorecimento políticos.

                   A essa premissa concorre à constatação óbvia do visível comprometimento desses princípios seja porque a anulação do Decreto Legislativo n. 08/2014 pelo Decreto Legislativo n. 01/2016 foi incitada pelo Vereador Silvio José Bueno, irmão do ex-Prefeito José Celso Bueno, que antes havia se declarado impedido para julgar as contas – e logo não poderia requerê-la como o fez – seja porque no tocante ao Decreto Legislativo n. 02/2016 Sua Excelência compunha a Comissão de Finanças e Orçamento que emitiu voto favorável à aprovação das contas (fls. 734/738) e compareceu a ambas as sessões embora tenha registrado sua abstenção nas votações (fls. 750/752).

                   Destarte, os decretos legislativos referidos são incompatíveis com o art. 111 da Constituição Estadual.

IV – PEDIDO LIMINAR

                   À saciedade demonstrado o fumus boni iuris, pela ponderabilidade do direito alegado, soma-se a ele o periculum in mora. A atual tessitura dos atos normativos tidos como violadores de princípios e regras da Constituição do Estado de São Paulo é sinal, de per si, para suspensão de sua eficácia até final julgamento desta ação, evitando-se a propagação indefinida no tempo de seus efeitos, dentre eles a elegibilidade de seu beneficiário.

                   É importante registrar, no ponto, que a rejeição das contas de 2011 se deu pela ausência de integralidade nos investimentos com a verba do FUNDEB (fls. 406/415), entre outras irregularidades.

                   À luz deste perfil, requer-se a concessão de liminar para suspensão da eficácia, até final e definitivo julgamento desta ação, do do Decreto Legislativo n. 01/2016, de 22 de março de 2016, e do Decreto Legislativo n. 002/2016, de 30 de agosto de 2016, da Câmara Municipal de Queluz.

V - PEDIDO

                   Face ao exposto, aguarda-se o recebimento e processamento da presente ação direta, a fim de que seja, ao final, julgada procedente, declarando-se a inconstitucionalidade do Decreto Legislativo n. 01/2016, de 22 de março de 2016, e do Decreto Legislativo n. 002/2016, de 30 de agosto de 2016, da Câmara Municipal de Queluz.

                   Requer-se, ainda, que sejam requisitadas informações à Câmara Municipal de Queluz, bem como posteriormente citado o Procurador-Geral do Estado para manifestar-se sobre os atos normativos impugnados.

                   Posteriormente, aguarda-se vista para fins de manifestação final.

                   Termos em que, pede deferimento.

                   São Paulo, 19 de janeiro de 2017.

 

 

         Gianpaolo Poggio Smanio

         Procurador-Geral de Justiça

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Protocolado nº 147.655/16

Objeto: inconstitucionalidade do Decreto Legislativo n. 01/2016, de 22 de março de 2016, e do Decreto Legislativo n. 002/2016, de 30 de agosto de 2016, da Câmara Municipal de Queluz

 

 

 

 

 

 

 

1.     Distribua-se a petição inicial da ação direta de inconstitucionalidade em face do Decreto Legislativo n. 01/2016, de 22 de março de 2016, e do Decreto Legislativo n. 002/2016, de 30 de agosto de 2016, da Câmara Municipal de Queluz.

 

2.     Oficie-se à douta Promotoria de Justiça de Queluz informando a propositura da ação, com cópia da petição inicial.

 

                   São Paulo, 19 de janeiro de 2017.

 

 

Gianpaolo Poggio Smanio

Procurador-Geral de Justiça