EXCELENTÍSSIMO SENHOR DESEMBARGADOR PRESIDENTE DO E. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

 

 

 

 

Protocolado nº 75.576/2016

 

 

                                     

 

Ementa: Constitucional. Administrativo. Ação direta de inconstitucionalidade. Lei n. 11.062, 02 de março de 2015, do Município de Sorocaba. Gratuidade de acesso aos portadores de qualquer tipo de deficiência independentemente de faixa etária, às casas de shows e eventos culturais, esportivos e de entretenimento do âmbito da municipalidade. Inconstitucionalidade. Reserva de Administração. Lei Municipal que interfere na atividade econômica e no direito de propriedade. Artigo 144 da Constituição Estadual. Ofensa a princípios constitucionais de observância obrigatória pelo município. 1. É inconstitucional lei local, de iniciativa parlamentar, que garante o acesso às casas de show’s, eventos culturais, esportivos e de entretenimento, que concede o acesso gratuito às pessoas portadoras de deficiência, por se situar a matéria no âmbito da reserva de Administração decorrente do princípio da separação de poderes, ao refletir o exercício da gestão administrativo-patrimonial sobre a utilização privativa de bens públicos de uso comum do povo. 2. Ofensa à livre iniciativa e ao direito de propriedade, nos termos dos arts. 5º e 47, II e XIV, CE, princípios de observância obrigatória pelos Estados e Municípios. Incompatibilidade vertical com o artigo 144, CE.

 

 

 

 

                    O PROCURADOR-GERAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO, no exercício da atribuição prevista no art. 116, inciso VI, da Lei Complementar Estadual nº 734, de 26 de novembro de 1993, e em conformidade com o disposto no art. 125, § 2º, e no art. 129, inciso IV, da Constituição da República, e ainda no art. 74, inciso VI, e no art. 90, inciso III, da Constituição do Estado de São Paulo, com amparo nas informações colhidas no incluso protocolado (PGJ nº 75.576/2016) que segue anexo, vem perante esse Egrégio Tribunal de Justiça promover a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE em face da Lei Municipal n. 11.062, de 02 de março de 2015 do Município de Sorocaba, pelos fundamentos expostos a seguir:

1.     DO ATO NORMATIVO IMPUGNADO

                   A Lei n° 11.062/2015 do Município de Sorocaba dispõe “sobre a gratuidade de acesso de pessoas portadoras deficiências nas casas de shows, eventos culturais, esportivos e de entretenimento no âmbito do município de Sorocaba e dá outras providências”, in verbis:

 

“ART. 1º – As pessoas portadoras de qualquer tipo de deficiência, independentemente de faixa etária, é garantido o acesso gratuito às casas de shows e eventos culturais, esportivos e de entretenimento no âmbito da Municipalidade.

Parágrafo único. Considera-se pessoa portadora de deficiência, para as finalidades desta Lei, aquela definida pelo Decreto Federal nº 3.298, de 20 de dezembro de 1999

(...)

 

ART. 4º As despesas com a execução da presente Lei correrão por conta de verba orçamentária própria (...)”.

 

         Os dispositivos legais acima transcritos são verticalmente incompatíveis com nosso ordenamento constitucional.

    2. O parâmetro da fiscalização abstrata de constitucionalidade

         Os dispositivos legais contestados são incompatíveis com os seguintes preceitos da Constituição Estadual, verbis:

“(...)

Artigo 5° – São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

§ 1° – É vedado a qualquer dos Poderes delegar atribuições.

(...)

 

Artigo 111 - A administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes do Estado, obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, razoabilidade, finalidade, motivação, interesse público e eficiência.

(...)

 

Artigo 144 - Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organização por Lei Orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.

(...)”            

                   A lei impugnada, de uma só vez, criou obrigações ao Chefe do Poder Executivo Municipal e à iniciativa privada, determinando gratuidade no ingresso de pessoas portadoras de deficiência nas casas de shows e eventos culturais, esportivos e de entretenimento no âmbito do município de Sorocaba, tanto público como privado.

                   A matéria encontra-se inserida na esfera da gestão administrativa, vez que disciplina a utilização dos bens públicos por particulares. Sem prejuízo, também versa acerca do direito de propriedade, à livre iniciativa e à liberdade econômica.

                   Sob o primeiro aspecto, denota-se clara violação ao princípio da separação dos poderes pela usurpação da reserva da administração, perceptível dos incisos II e XIV do art. 47 c.c. o art. 5º, da Constituição Estadual, aplicável aos Municípios por força de seu art. 144.

                   A importância da reserva da Administração é bem aquilatada pelo Supremo Tribunal Federal:

“RESERVA DE ADMINISTRAÇÃO E SEPARAÇÃO DE PODERES. - O princípio constitucional da reserva de administração impede a ingerência normativa do Poder Legislativo em matérias sujeitas à exclusiva competência administrativa do Poder Executivo. É que, em tais matérias, o Legislativo não se qualifica como instância de revisão dos atos administrativos emanados do Poder Executivo. Precedentes. Não cabe, desse modo, ao Poder Legislativo, sob pena de grave desrespeito ao postulado da separação de poderes, desconstituir, por lei, atos de caráter administrativo que tenham sido editados pelo Poder Executivo, no estrito desempenho de suas privativas atribuições institucionais. Essa prática legislativa, quando efetivada, subverte a função primária da lei, transgride o princípio da divisão funcional do poder, representa comportamento heterodoxo da instituição parlamentar e importa em atuação ultra vires do Poder Legislativo, que não pode, em sua atuação político-jurídica, exorbitar dos limites que definem o exercício de suas prerrogativas institucionais” (STF, ADI-MC 2.364-AL, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, 01-08-2001, DJ 14-12-2001, p. 23).

                    Destarte, a lei local configura indevida  intromissão do Poder Legislativo na esfera de competência privativa do Poder Executivo, evidenciando afronta ao princípio de separação de poderes,  incompatível com a Constituição Estadual.

                    Mas não é só.

                    Ao conceder o acesso gratuito aos shows e a outros espetáculos também em locais privados, o diploma legal contrariou o artigo 144 da Constituição do Estado de São Paulo.  A dicção de tal dispositivo é a seguinte:

Art. 144 - Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto organizarão por Lei Orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição."

                    Na Constituição da República, expressamente referida pelo artigo 144 da Constituição Estadual, tem-se:

“Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

(...)

IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa”.

“Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à segurança, e à propriedade, nos termos seguintes:

(...)

XXII – é garantido o direito de propriedade;

XXIII – a propriedade atenderá sua função social;”

''Art. 170 - A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

(...)

II - propriedade privada;

III - função social da propriedade;

IV - livre concorrência (...);”

“Art. 174 - Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado.''

                   A lei municipal objurgada, ao estipular a gratuidade aos eventos e espetáculos para os portadores de necessidades especiais em locais privados, interferiu na ordem econômica, ofendendo a livre iniciativa, um dos fundamentos da República.

                   A gratuidade do ingresso envolve uma série de encargos e despesas financeiras que passarão a ser suportados obrigatoriamente  pelos organizadores do evento.  É lícito, pois, que, por meio de relação contratual, tal custo seja repassado aos consumidores usuários do serviço.

                   Sobre o fundamento e a natureza da ordem econômica, ensina José Afonso da Silva, in Curso de Direito Constitucional Positivo, 37ª edição, Malheiros, pag. 800:

“A Constituição declara que a ordem econômica é fundada na valorização do trabalho humano e na iniciativa privada. Que significa isso? Em primeiro lugar quer dizer precisamente que a Constituição consagra uma economia de mercado, de natureza capitalista, pois a iniciativa privada é um princípio básico da ordem capitalista. Em segundo lugar significa que, embora capitalista, a ordem econômica dá prioridade aos valores do trabalho humano sobre todos os demais valores da economia de mercado. Conquanto se trate de declaração de princípio, essa prioridade tem o sentido de orientar a intervenção do Estado, na economia, a fim de fazer valer os valores sociais do trabalho que, ao lado da iniciativa privada, constituem o fundamento não só da ordem econômica, mas da própria República Federativa do Brasil (art. 1º, IV).

                     E sobre a livre iniciativa, proclama o insigne MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO, (Comentários à Constituição Brasileira de 1988, Saraiva, v. 2, p. 170):

''Livre iniciativa. O primeiro dos princípios que devem reger a ordem econômica e social, para a realização do desenvolvimento nacional e a justiça social, é a liberdade de iniciativa. Esta deflui de direitos individuais consagrados no art. 5° da Constituição. De fato, decorre por um lado da liberdade de trabalho e concerne intimamente à liberdade de associação. A consagração da liberdade de iniciativa, como primeira das bases da ordem económica e social, significa que é através da atividade socialmente útil a que se dedicam livremente os indivíduos, segundo suas inclinações, que se procurará a realização da justiça social e, portanto, do bem-estar social. Como reflexo da liberdade humana, a liberdade de iniciativa mereceu acolhida nas encíclicas papais de caráter social, inclusive na mencionada, a 'Mater et Magistra', de João XXIII. Esta, textualmente, afirma que "no campo econômico, a parte principal compete à iniciativa privada dos cidadãos, quer ajam em particular, quer associados de diferentes maneiras a outros" (2a Parte, n. I). Daí decorre que ao Estado cabe na ordem econômica posição secundária, conquanto importante, já que sua ação deve reger-se pelo princípio da subsidiariedade. E deve ser tal que "não reprima a liberdade de iniciativa particular mas antes a aumente para a garantia e proteção dos direitos essenciais de cada indivíduo".  O desdobramento desse princípio é o que está adiante, no art. 173 da Constituição. Neste, reconhece-se competir à empresa privada organizar e explorar as atividades econômicas. Igualmente, nele se fixa o papel do Estado, ao qual é dado apoiar e suplementar a atividade privada. Entretanto, a liberdade de iniciativa não é ilimitada na Constituição, conforme se verá adiante.  Liberdade contratual. Os autores franceses, como Laubadère, consideram esta liberdade compreendida na livre iniciativa (cf. André de Laubadère e Pierre Delvolvé, Droit public économique, 4. ed. Paris, Dalloz, 1983, n. 142). Na verdade, ela decorre da liberdade 'tout court', da qual é uma das mais lídimas expressões' (destacamos).

                   Não se ignora que, nos termos da Constituição, a propriedade atenderá a sua função social (art. 5º, XXIII).

                   Ocorre que a gratuidade estabelecida, malgrado se reconheça a boa intenção que animou o legislador municipal, não guarda relação com esse princípio, pois o fato do beneficiário da lei ser deficiente não decorre, necessariamente, a sua hipossuficiência econômica a fim justificar a gratuidade estabelecida.

                   “Mutatis mutandis”, cabe ressaltar a ementa do venerando Acordão proferido pelo Colendo Orgão especial do Tribunal de Justiça, também em sede de Ação Direta de Inconstitucionalidade :

                                    “Ementa. Ação Direta de Inconstitucionalidade. Lei. 11.139/2002, do Município de Campinas, e seu decreto regulamentador 18.1158/2013, que dispõe sobre a gratuidade de estacionamento público e particular para portadores de necessidades especiais, ainda que temporárias.

1. Invade a competência da União para legislar sobre direito civil (art. 22, I, da CF/88) a norma estadual que veda a cobrança de qualquer quantia ao usuário pela utilização de estabelecimento em local privado. Precedentes do STF.

2. Igualmente, a inclusão da gratuidade nos estacionamentos públicos sem prévio planejamento orçamentário, implica sobrecarga ao erário, cuja análise reserva-se à Administração Pública.

3. Demais, conceder gratuidade para esse tipo de serviço para uma minoria da população resvala em ofensa ao princípio da isonomia, dado que o cidadão portador de necessidades especiais, na verdade necessita, antes, de acesso arquitetônico facilitado, não de gratuidade, sendo desta mais merecedor o pobre na acepção jurídica do termo, mesmo em boas condições físicas.

                    A lei municipal também ofendeu o princípio da razoabilidade, que deve nortear a Administração Pública e a atividade legislativa e que, como aqueles, têm assento no art. 111, da Constituição do Estado, aplicável aos Municípios por força do art. 144, da mesma Carta.

                  Por força desse princípio é necessário que a norma passe pelo denominado “teste” de razoabilidade, ou seja, que ela seja: (a) necessária (a partir da perspectiva dos anseios da Administração Pública); (b) adequada (considerando os fins públicos que com a norma se pretende alcançar); e (c) proporcional em sentido estrito (que as restrições, imposições ou ônus dela decorrentes não sejam excessivos ou incompatíveis com os resultados a alcançar).

                  A gratuidade ora impugnada não passa por nenhum dos critérios do teste de razoabilidade: (a) não atende a nenhuma necessidade da Administração Pública, vindo em benefício tão somente de uma minoria que se beneficiaria pela vantagem pecuniária; (b) e, por consequência, inadequada na perspectiva do interesse público; (c) é desproporcional em sentido estrito, pois cria ônus financeiros que naturalmente se mostram excessivos e inadmissíveis e não atende a finalidade para a qual foi criada, que é a inserção das pessoas portadoras de necessidades especiais nos eventos sociais.

 

                 Enfim, não se pode ainda olvidar que a União no pleno exercício da sua atividade legiferante, por intermédio da Lei n. 13.146, de 06 de julho de 2015, instituiu a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência).

   3. DOS PEDIDOS

   Do pedido liminar.

 

                À saciedade demonstrado o fumus boni iuris, pela ponderabilidade do direito alegado, soma-se o periculum in mora.

               O texto legal ora guerreado viola princípios e regras da Constituição do Estado de São Paulo. Ademais, não seria justo que o Poder Público e os particulares continuem a suportar injustamente prejuízos financeiros, o que basta para a suspensão da eficácia do diploma legal até final julgamento desta ação.

       À luz deste perfil, requer-se a concessão de liminar para suspensão da eficácia da Lei Municipal n. 11.062, de 02 de março de 2015 do Município de Sorocaba, até final e definitivo julgamento desta ação.

            Do pedido principal.

            Diante do exposto, aguarda-se o recebimento e o processamento da presente ação direta, a fim de que seja, ao final, julgada procedente, declarando-se a inconstitucionalidade do diploma legal acima referido, requerendo-se ainda que sejam requisitadas informações à Câmara Municipal e ao Prefeito Municipal de Sorocaba, bem como posteriormente citado o Procurador-Geral do Estado para manifestar-se sobre o atos normativo impugnado.

           Posteriormente, aguarda-se vista para fins de manifestação final.

São Paulo, 12 de fevereiro de 2017.

 

Gianpaolo Poggio Smanio

Procurador-Geral de Justiça

 


Protocolado n. 75.576/2016

Interessada: Promotoria de Justiça de Sorocaba

Objeto: representação para controle de constitucionalidade da Lei n. 11.062/15 do Município de Sorocaba, que concedeu a gratuidade de acesso às pessoas portadoras de necessidades especiais em eventos, espetáculos e shows.

 

 

1.       Promova-se a distribuição de ação direta de inconstitucionalidade, instruída com o protocolado incluso;

 

2. Oficie-se ao interessado, informando-lhe a propositura da ação, com cópia da petição inicial.

 

 

São Paulo, 31 de janeiro 2017.

 

Gianpaolo Poggio Smanio

Procurador-Geral de Justiça