EXCELENTÍSSIMO SENHOR DESEMBARGADOR PRESIDENTE DO E. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

 

Protocolado nº 110.525/2016

 

Ementa:

1)     Ação direta de inconstitucionalidade. Lei nº 7.977, de 17 de setembro de 2014, do Município de Piracicaba, que “Dispõe sobre a proibição da comercialização de bebidas para crianças com forma de apresentação semelhante à de bebidas alcoólicas no âmbito do Município”.

2)     O Município não detém competência para legislar sobre produção e consumo, uma vez que esta é atribuída pela Constituição Federal à União, Estados e ao Distrito Federal (art. 24, V e XV da Constituição Federal).

3)     Produção normativa local não autorizada pela competência suplementar do Município, prevista no art. 30, II da Constituição Federal, ausência de prevalência de interesse local. Violação do princípio federativo (art. 1º e art. 144, CE) decorrente da repartição constitucional de competências.

 

 

 

O Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, no exercício da atribuição prevista no art. 116, inciso VI, da Lei Complementar Estadual nº 734 de 26 de novembro de 1993, e em conformidade com o disposto no art. 125, § 2º, e no art. 129, inciso IV, da Constituição da República, e ainda no art. 74, inciso VI, e no art. 90, inciso III, da Constituição do Estado de São Paulo, com amparo nas informações colhidas no incluso protocolado (PGJ nº 110.525/2016), que segue como anexo, vem perante esse Egrégio Tribunal de Justiça promover a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE em face da Lei nº 7.977, de 17 de setembro de 2014, do Município de Piracicaba, pelos seguintes fundamentos:

1.     DO ATO NORMATIVO IMPUGNADO

O protocolado que instrui esta inicial de ação direta de inconstitucionalidade e, a cujas folhas reportar-se-á, foi instaurado a partir de representação da 5ª Promotora de Justiça de Piracicaba (fls. 02/18).

A Lei nº 7.977, de 17 de setembro de 2014, do Município de Piracicaba, que “Dispõe sobre a proibição da comercialização de bebidas para crianças com forma de apresentação semelhante à de bebidas alcoólicas no âmbito do Município”, possui a seguinte redação, verbis:

Art. 1º Fica proibida a comercialização, utilização e distribuição, ainda que gratuita, de bebidas não alcoólicas destinadas às crianças, que sejam acondicionadas em embalagens cuja forma de apresentação se assemelhe ao das bebidas alcoólicas ou espumantes, no âmbito do Município.

Art. 2º  A não observância ao disposto nesta Lei, pelo proprietário ou responsável pelo estabelecimento, acarretará ao infrator as seguintes cominações, aplicadas isolada ou cumulativamente, de acordo com a gravidade do fato, sem prejuízo das demais sanções previstas pelo Código de Defesa do Consumidor ou por outras normas:

I - advertência; e

II - multa no valor de R$ 5.000,00 (cinco mil reais) a R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais), de acordo com a gravidade da infração e capacidade econômica do infrator, aplicada em dobro no caso de reincidência.

Parágrafo único.  A multa a que se refere o inciso II deste artigo será atualizada, anualmente, pelo índice adotado pelo Poder Executivo.

Art. 3º  Esta Lei será regulamentada pelo Executivo Municipal, no que lhe couber.

Art. 4º  Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.”

A lei, entretanto, é verticalmente incompatível com nosso ordenamento constitucional, como será demonstrado a seguir.

2.     DA FUNDAMENTAÇÃO

O ato normativo ora impugnado viola o princípio federativo que se manifesta na repartição constitucional de competências (art. 1º da , Constituição Estadual), de observância obrigatória por força do disposto no art. 144 da Constituição Paulista.

A Lei nº 7.977/17, do Município de Piracicaba, proíbe a comercialização, utilização e distribuição, ainda que gratuita, de bebidas não alcoólicas destinadas às crianças, que sejam acondicionadas em embalagens cuja forma de apresentação se assemelhe ao das bebidas alcoólicas ou espumantes, no âmbito do Município.

Disciplina, portanto, matéria relacionada a consumo e a produção.

Nos termos do art. 24, inciso V e XV, da Constituição Federal compete à União, aos Estados, e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre produção e consumo desporto e proteção à infância e juventude.

Para exercício legítimo dessa competência, cabe à União editar normas gerais, e aos Estados e ao Distrito Federal complementá-las ou, na ausência daquelas, exercer competência legislativa plena para atender suas peculiaridades (art. 24, §§ 1º e 3º, CF).

No uso da prerrogativa que lhe foi conferida, a União editou a Lei nº 8.918, de 14 de julho de 1994, que Dispõe sobre a padronização, a classificação, o registro, a inspeção, a produção e a fiscalização de bebidas, autoriza a criação da Comissão Intersetorial de Bebidas e dá outras providências.

Não há fundamento legal para a vedação prevista na lei municipal, haja vista que a matéria foi devidamente regulamentada pela União, não restando qualquer aspecto que pudesse autorizar o exercício da competência suplementar do Município.

Desta forma, a União, exercendo sua competência concorrente para disciplinar produção e consumo (art. 24, V da Constituição Federal), no que se refere às embalagens das bebidas não alcoólicas, não fez qualquer ressalva ou proibição relativa à forma do recipiente de condicionamento.

De acordo com o artigo 8º da Lei n. 9782/99 é atribuída à Agência Nacional de Vigilância sanitária - Anvisa a competência de regulamentar, controlar e fiscalizar os produtos e serviços que envolvam risco à saúde pública, dentre eles, embalagens para alimentos, e ainda as instalações físicas e tecnologias envolvidas no processo de produção.

Os regulamentos relacionados às embalagens incluem as embalagens e materiais que entram em contato direto com alimentos e são destinados a contê-los, desde a sua fabricação até a sua entrega ao consumidor, com a finalidade de protegê-los de agente externos, de alterações e de contaminações, assim como de adulterações.

Incluem ainda os equipamentos para alimentos utilizados durante a elaboração, fracionamento, armazenamento, comercialização e consumo de alimentos. Estão incluídos nesta definição: recipientes, máquinas, correias transportadoras, tubulações, acessórios, válvulas, utensílios e similares.

A Lei nº 7.977/2014, do Município de Piracicaba, a pretexto de proteção às crianças, proibiu a comercialização, utilização e distribuição, ainda que gratuita, de bebidas não alcoólicas destinadas às crianças, que sejam acondicionadas em embalagens cuja forma de apresentação se assemelhe ao das bebidas alcoólicas ou espumantes.

Não parece também razoável tal proibição, porque estariam vedados naquele Município, uma gama de refrigerantes que de longa data utilizam da mesma garrafa na qual são comercializadas as cervejas.

Sabe-se que a competência legislativa do Município é suplementar à da União e dos Estados, consoante dispõe o art. 30, I e II, da Carta Federal.

Sobre o tema, Alexandre de Moraes afirma que “a Constituição Federal prevê a chamada competência suplementar dos municípios consistente na autorização de regulamentar as normas legislativas federais ou estaduais, para ajustar sua execução a peculiaridades locais, sempre em concordância com aquelas e desde que presente o requisito primordial de fixação de competência desse ente federativo: interesse local”. (Constituição do Brasil Interpretada, São Paulo, Atlas, 2002, p. 743)

Porém, a pretexto de exercer competência suplementar com fundamento no art. 30, II, da Constituição Federal, não há espaço para o legislador municipal excepcionar as regras federais e estaduais, sob pena de converter a competência suplementar do Município em competência concorrente, da qual a comuna não dispõe.

A competência suplementar do Município aplica-se, nos assuntos que são da competência legislativa da União ou dos Estados, àquilo que seja secundário ou subsidiário relativamente à temática essencial tratada na norma superior.

A forma de acondicionamento de bebidas não alcoólicas não evidencia interesse local, pois tem abrangência nacional. Ainda que  houvesse qualquer risco à saúde das crianças a forma de acondicionamento das bebidas não alcoólicas, tal disciplina caberia à União através da Anvisa.

Assim, não pode o legislador municipal, assim, a pretexto de legislar sobre assuntos de interesse local ou suplementar a legislação Federal ou Estadual de ordem geral, invadir a competência legislativa destes entes federativos superiores (RE 313.060, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em 29-11-2005, Segunda Turma, DJ de 24-2-2006).

Pela técnica de repartição de competências adotada na Lei Maior, aos Municípios somente cumpre regular tais matérias de modo específico, atendendo às suas particularidades locais (competência suplementar).

Quando definiu as competências dos entes municipais, o constituinte houve por deferir-lhes de modo suplementar relativamente à legislação federal e estadual, sempre para a disciplina de assuntos de interesse meramente local, ou seja, que se circunscrevam aos limites do território da Comuna.

A União exercendo sua competência concorrente para legislar sobre produção e consumo (CF, art. 24, V) estabeleceu regras sobre a padronização, a classificação, o registro, a inspeção, a produção e a fiscalização de bebidas.

Desse modo, pode-se afirmar que a lei municipal objurgada, ao tratar de matéria cuja competência é do legislador federal ou estadual, desrespeitou a repartição constitucional de competências, violando o princípio federativo.

O princípio federativo está assentado nos arts. 1º e 18 da Constituição da República, bem como no art. 1º da Constituição Paulista.

Referindo-se aos princípios fundamentais da Constituição, que revelam as opções políticas essenciais do Estado, José Afonso da Silva aponta que entre eles podem ser inseridos, entre outros, “os princípios relativos à existência, forma, estrutura e tipo de Estado: República Federativa do Brasil, soberania, Estado Democrático de Direito (art. 1º)” (Curso de direito constitucional positivo, 13. ed., São Paulo, Malheiros, 1997, p. 96, g.n.).

Um dos aspectos de maior relevo, que representa a dimensão e alcance do princípio do pacto federativo adotado pelo Constituinte em 1988, é justamente o que se assenta nos critérios adotados pela Constituição Federal para a repartição de competências entre os entes federativos, bem como a fixação da autonomia e dos respectivos limites, dos Estados, Distrito Federal e Municípios, em relação à União.

Anota a propósito Fernanda Dias Menezes de Almeida que “avulta, portanto, sob esse ângulo, a importância da repartição de competências, já que a decisão tomada a respeito é que condiciona a feição do Estado Federal, determinando maior ou menor grau de descentralização.” Daí a afirmação de doutrinadores no sentido de que a repartição de competências é “‘a chave da estrutura do poder federal’, ‘o elemento essencial da construção federal’, ‘a grande questão do federalismo’, ‘o problema típico do Estado Federal’” (Competências na Constituição Federal de 1988, 4. ed., São Paulo, Atlas, 2007, p. 19/20).

Desse modo, a autonomia das entidades federativas pressupõe repartição de competências legislativas, administrativas e tributárias. Trata-se de um dos pontos caracterizadores e asseguradores da existência e de harmonia do Estado Federal.

A base do conceito do Estado Federal reside exatamente na repartição de poderes autônomos, que, na concepção tridimensional do Estado Federal Brasileiro, se dá entre União, Estado e Município. É através desta distribuição de competências que a Constituição Federal garante o princípio federativo. O respeito à autonomia dos entes federativos é imprescindível para a manutenção do Estado Federal.

A preservação do princípio federativo tem contado com a anuência do C. Supremo Tribunal Federal, pois como destacado em julgado relatado pelo Min. Celso de Mello:

"(...)

a idéia de Federação — que tem, na autonomia dos Estados-membros, um de seus cornerstones — revela-se elemento cujo sentido de fundamentalidade a torna imune, em sede de revisão constitucional, à própria ação reformadora do Congresso Nacional, por representar categoria política inalcançável, até mesmo, pelo exercício do poder constituinte derivado (CF, art. 60, § 4º, I). (HC 80.511, voto do Min. Celso de Mello, julgamento em 21-8-01, DJ de 14-9-01).

(...)”

Por essa linha de raciocínio, pode-se afirmar que a lei municipal que trate de matéria cuja competência é do legislador federal ou estadual, ao desrespeitar a repartição constitucional de competências, viola o princípio federativo.

A prescrição de que os Municípios devem observar os princípios constitucionais estabelecidos não se encontra apenas no art. 144 da Constituição Paulista. O art. 29, caput, da CR/88, prevê que os Municípios, ao editarem suas leis orgânicas deverão respeitar os “princípios estabelecidos nesta Constituição, na Constituição do respectivo Estado”.

Dessa forma, no conflito normativo aqui analisado, conclui-se que a Lei nº 7.977, de 17 de setembro de 2014, do Município de Piracicaba, violou a repartição constitucional de competências, que é a manifestação mais contundente do princípio federativo, operando, por consequência, desrespeito a princípio constitucional estabelecido.

Essa é a razão pela qual restou configurada, no caso, a ofensa ao disposto no art. 1º e no art. 144, da Constituição do Estado de São Paulo, por tratar de matéria sujeita a competência concorrente da União e Estados nos termos do art. 24, V e XV da Constituição Federal.

3. DO PEDIDO

Diante de todo o exposto, aguarda-se o recebimento e processamento da presente ação declaratória, para que ao final seja ela julgada procedente, reconhecendo-se a inconstitucionalidade da Lei nº 7.977, de 17 de setembro de 2014, do Município de Piracicaba.

Requer-se, ainda, que sejam requisitadas informações à Câmara Municipal e ao Prefeito Municipal de Piracicaba, bem como que seja citado o Procurador-Geral do Estado para manifestar-se sobre o ato normativo impugnado.

Posteriormente, aguarda-se vista para fins de manifestação final.

Termos em que,

Aguarda-se deferimento.

 

                  São Paulo, 09 de março de 2017.

 

Gianpaolo Poggio Smanio

Procurador-Geral de Justiça

 

 

aca


Protocolado nº 110.525/2016

 

 

 

 

1.     Distribua-se a inicial da ação direta de inconstitucionalidade em face da Lei nº 7.977, de 17 de setembro de 2014, do Município de Piracicaba, que “Dispõe sobre a proibição da comercialização de bebidas para crianças com forma de apresentação semelhante à de bebidas alcoólicas no âmbito do Município”, junto ao Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

2.     Comunique-se a propositura da ação à interessada.

3.     Cumpra-se.

 

                 São Paulo, 09 de março de 2017.

 

 

Gianpaolo Poggio Smanio

Procurador-Geral de Justiça

aca