Excelentíssimo
Senhor Doutor Desembargador Presidente do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado
de São Paulo
Protocolado nº 24.435/16
Constitucional.
Administrativo. Ação Direta de Inconstitucionalidade. Art. 54 da Lei
Complementar nº 005, de 04 de abril de 2008, com a redação dada pelo art. 6º da
Lei nº 192, de 12 de dezembro de 2016, do Município de Bananal. Fixação de
percentual de 30% dos cargos de provimento em comissão a serem preenchidos por
servidores de carreira na Administração Direta do Poder Executivo, em atenção
ao disposto no art. 115, V, da CE/89. Parágrafo único do referido dispositivo que
possibilita o descumprimento do percentual reservado aos servidores de carreira
criando exceções não previstas nas Constituições Federal e Estadual. Violação
aos princípios da razoabilidade, proporcionalidade, moralidade (art. 111, CE) e
burla implícita ao comando do art. 115, V, da CE/89. 1. Inconstitucional a criação de exceções
ao cumprimento do percentual de cargos comissionados a serem preenchido por
servidores de carreira não previstas
constitucionalmente, até porque, ao assim dispor, o Município torna mera
ficção jurídica a exigência plasmada no art. 115, V, por evidente esvaziamento
de sua ratio normativa. 2. Previsão normativa que não se
concilia com os arts. 111 e 115, V, CE/89, pois torna sem efeito a intenção do
Constituinte em limitar o provimento comissionado na estrutura administrativa
do município.
O
Procurador-Geral
de Justiça do Estado de São Paulo, no exercício da atribuição
prevista no art. 116, VI, da Lei Complementar Estadual n. 734, de 26 de
novembro de 1993 (Lei Orgânica do Ministério Público do Estado de São Paulo),
em conformidade com o disposto no art. 125, § 2º, e no art. 129, IV, da
Constituição Federal, e, ainda, nos arts. 74, VI, e 90, III, da Constituição do
Estado de São Paulo, com amparo nas informações colhidas no incluso
protocolado, vem, respeitosamente, perante esse egrégio Tribunal de Justiça,
promover a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE
em face do parágrafo
único do art. 54 da Lei Complementar nº 005, de 04 de abril de 2008, com a
redação promovida pelo art. 6º da Lei nº 192, de 12 de dezembro de 2016, do
Município de Bananal, pelos
fundamentos a seguir expostos:
I – Ato
Normativo Impugnado
A Lei nº 192, de 12 de dezembro
de 2016, do Município de Bananal, que “Dispõe
sobre a competência e atribuição dos cargos de Secretários Municipais;
atribuições e requisitos para provimento dos cargos de provimento em comissão e
funções de confiança e criação e extinção de cargos em comissão e funções de
confiança, e dá outras providências”, estabelece, em seu art. 6º (fls.
59/95):
“(...)
Art. 6º - O artigo 54, da Lei nº 005, de 04 de Abril de 2008, passa a ter a seguinte redação:
Art. 54 - Os cargos comissionados destinam-se exclusivamente às atribuições de direção, chefia e assessoramento, observados os seguintes critérios para o seu preenchimento:
I - do total dos cargos comissionados, 30% (trinta por cento) serão preenchidos obrigatoriamente por servidores ocupantes de cargos em provimento efetivo;
II - o servidor nomeado para exercer cargo comissionado deverá ter grau de escolaridade compatível como condição mínima e obrigatória para seu exercício.
Parágrafo único - Caso não haja no quadro de empregos deste Município servidores que preencham os requisitos do inciso II deste artigo ou, ainda que existam, estes declarem expressamente o seu desinteresse pela ocupação, fica o Chefe do Executivo autorizado a preenchê-lo, desde que observado o grau de escolaridade compatível com o cargo. (...)” (sic - grifo nosso)
Em linhas gerais, o dispositivo em
destaque prevê que, caso não haja na estrutura administrativa do Município
servidores efetivos que apresentem grau de escolaridade compatível com os
cargos comissionados disponíveis, ou, ainda que existam, declarem os servidores
concursados expressamente o desinteresse na ocupação dos referidos postos, o
Chefe do Poder Executivo fica autorizado
a nomear quantos servidores não exclusivos desejar, independentemente do
percentual fixado no inciso I do art. 54 da Lei Complementar nº 005/08, na
redação dada pelo art. 6º da Lei nº 192/16, do Município de Bananal.
A partir de uma leitura rasa do art.
54 da Lei Complementar nº 005/08, na redação promovida pela Lei nº 192/16, de
Bananal, em especial de seus incisos, o intérprete tem a impressão de que a
legislação examinada guarda obediência ao comando inscrito no art. 115, V, da
Carta Paulista, o qual reclama a edição de lei estipulando percentual mínimo
dos cargos em comissão na estrutura administrativa direta do Poder Executivo a
serem ocupados por servidores efetivos.
Todavia, ao criar hipóteses capazes
de excepcionar o percentual dos cargos de provimento em comissão a serem
preenchidos por servidores de carreira, o Município torna a exigência plasmada
no art. 115, V, mera ficção jurídica por evidente esvaziamento de sua ratio normativa, caracterizando nítido
desvio de poder, havendo, portanto, notória
violação aos arts. 111 e 115, V, da Constituição Estadual.
II – parâmetro da fiscalização abstrata de constitucionalidade
O dispositivo questionado, ao prever
hipóteses que admitem o descumprimento deliberado do percentual estabelecido no
inciso I do art. 54 da Lei Complementar nº 005/08, com a redação dada pela Lei
nº 192/16, de Bananal, contraria frontalmente a
Constituição do Estado de São Paulo, à qual está subordinada a produção
normativa municipal ante a previsão dos arts. 1º, 18, 29 e 31 da Constituição
Federal.
Os preceitos da Constituição Federal e da
Constituição do Estado são aplicáveis aos Municípios por força do art. 29
daquela e do art. 144 desta.
A norma impugnada é incompatível com os
seguintes preceitos da Constituição Estadual:
“Artigo 111 - A administração pública
direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes do Estado, obedecerá
aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade,
razoabilidade, finalidade, motivação, interesse público e eficiência.
(...)
Artigo 115 - Para a organização da
administração pública direta e indireta, inclusive as fundações instituídas ou
mantidas por qualquer dos Poderes do Estado, é obrigatório o cumprimento das
seguintes normas:
(...)
V
- as funções de confiança, exercidas exclusivamente por
servidores ocupantes de cargo efetivo, e os cargos em comissão, a serem
preenchidos por servidores de carreira nos casos, condições e percentuais
mínimos previstos em lei, destinam-se apenas às atribuições de direção, chefia
e assessoramento;
(...)
Artigo 144 - Os Municípios, com
autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se
auto-organizarão por lei
orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta
Constituição”.
O
art. 144 da Constituição Estadual limita e condiciona a autonomia municipal,
determinando a observância dos princípios estabelecidos na Constituição Federal
e na Constituição Estadual.
O
inciso V do art. 115 da Constituição Estadual, reproduzindo o inciso V do art.
37 da Constituição Federal, determina a
reserva de percentual mínimo, adotado em ato normativo, de cargos de provimento
em comissão a servidores de carreira, com nítido escopo de estímulo à
profissionalização do serviço público (e consequente valorização do
servidor público titular de cargo de provimento efetivo, isolado ou de
carreira), bem como compatibilizar a
liberdade de provimento de cargos comissionados com os princípios que norteiam
a atividade administrativa, previstos no art. 111 da Carta Bandeirante.
É sabido que a nossa ordem constitucional republicana privilegia a meritocracia, não o favoritismo, o nepotismo ou qualquer outro subjetivismo.
O princípio da moralidade impõe o recrutamento do pessoal que servirá ao Poder Público pelo critério do concurso público. Excepcionalmente, e para hipóteses cada vez mais extravagantes, caberá o provimento em comissão e, mesmo dentre essas hipóteses, há que prevalecer a preferência por quem já integra a carreira.
Os cargos públicos têm que restar acessíveis a todos aqueles que, providos em razão da qualificação profissional exigida, também se mostrem merecedores de ocupá-los, após vencerem a corrida de obstáculos de um concurso sério, transparente, aberto a todos, fenômeno com o qual a Democracia não pode transigir.
Cumpre salientar que o art. 115, V, da Constituição Estadual institui o princípio constitucional de acessibilidade aos cargos de direção superior da administração aos servidores públicos efetivos.
A necessidade de observância a tal mandamento constitucional visa não só estimular e servir de prêmio à dedicação do servidor efetivo, mas passa a integrar o próprio plano de carreira. Deve se estabelecer uma proporcionalidade para que alguns cargos de provimentos em comissão da administração sejam preenchidos por servidores públicos efetivos.
De outro lado, tal proporcionalidade é necessária para assegurar a qualidade, a eficiência, a profissionalização e a continuidade do serviço público, sobretudo por ocasião das mudanças de governo, quando se verifica uma substituição significativa dos ocupantes de cargos importantes da direção superior da Administração Pública. Nas trocas de governos, deve existir uma estrutura mínima de pessoal do quadro de servidores públicos para ocupação de postos responsáveis pela condução superior da administração para que ela não sofra solução de continuidade.
Considerando
apenas o que dispõe os incisos I e II do art. 54 da Lei Complementar nº 005/08,
na redação dada pelo art. 6º da Lei nº 192/16, de Bananal, responsáveis por
fixar o percentual de cargos comissionados a serem ocupados exclusivamente por
servidores de carreira em 30% (inciso I), e estabelecer, por outro lado, que
deve ser respeitado o grau de escolaridade compatível com o cargo (inciso II), em
primeira análise, poder-se-ia cogitar a obediência ao disposto no art. 115, V,
da Constituição Estadual, porquanto se visualiza no ente em comento diploma
tendente a dar cumprimento ao comando constitucional apontado.
Contudo,
as hipóteses que autorizam o descumprimento da porcentagem supramencionada
previstas no parágrafo único do art. 54 da Lei Complementar nº 005/08, na redação
dada pela Lei nº 192/16, do Município Bananal, analisada sob a ratio essendi do art. 115, V, da CE,
demonstra que a intelecção supramencionada revela-se errônea, pois ao assim
proceder, além de criar exceções que não
existem no ordenamento constitucional vigente, tornou mera ficção o dispositivo
indicado por representar evidente esvaziamento de seu comando, havendo,
portanto, notória violação aos arts. 111 e 115, V, da Carta Paulista, por afronta evidente à razoabilidade, à
proporcionalidade, à moralidade e burla implícita à excepcionalidade do
provimento em comissão quando do preenchimento de postos na estrutura da
Administração.
É nítido, pois, o desvio
de poder radicado na disposição normativa ora combatida, que a contamina de
maneira a expô-la ao controle abstrato, concentrado, direto e objetivo de
constitucionalidade por vício material de inconstitucionalidade na medida em
que encerra, de per si e atento às
circunstâncias, ofensa aos princípios de moralidade e impessoalidade.
As hipóteses
previstas no parágrafo único do art. 54 da Lei Complementar nº 005/08, com a
redação dada pelo art. 6º da Lei nº 192/16, do Município de Bananal,
possibilitam que seja descumprido o percentual de cargos de provimento em
comissão a serem preenchidos por servidores de carreira sem justo motivo para
tanto e cujas razões não foram contempladas no ordenamento constitucional
vigente.
Com efeito, permite-se
que o Chefe do Executivo preencha a integralidade dos cargos públicos comissionados
existentes na Administração Direta local por servidores não exclusivos: a) inexistindo
servidores efetivos com a escolaridade exigida; ou b) desde que os próprios
servidores de carreira declarem o desinteresse no preenchimento dos referidos postos.
As hipóteses
previstas, além de não factíveis, violam os princípios administrativos da
moralidade, da razoabilidade e do interesse público.
Pois bem.
Não é novidade
alguma o controle concentrado de constitucionalidade de lei ou ato normativo
por desvio de poder. A esse respeito, concessa
venia, reporta-se a elucidativo escólio da lavra de Caio Tácito:
“No exercício de suas atribuições e nas matérias a
eles afetas, os órgãos legislativos, em princípio, gozam de discricionariedade
peculiar à função política que desempenham.
Temos, contudo, sustentando a necessidade de
temperamento da latitude discricionária de ato do Poder Legislativo, ainda que
fundado em competência constitucional e formalmente válido.
O princípio geral de Direito de que toda e
qualquer competência discricionária tem como limite a observância da finalidade
que lhe é própria, embora historicamente vinculado à atividade administrativa,
também se compadece, a nosso ver, com a legitimidade da ação do legislador.
Tivemos, oportunidade de sustentar, perante o STF,
em duas oportunidades, a nulidade de leis estaduais em que, no término de
governos vencidos nas urnas, eram criados cargos públicos em número excessivo,
não reclamados pela necessidade pública, e comprometendo gravemente as finanças
do Estado, tão-somente para o aproveitamento de correligionários ou de seus
familiares.
Para o desfazimento dessas leis, que
caracterizavam os chamados ‘testamentos políticos’, o STF consagrou a tese da
validade de novas leis que, anulando leis inconstitucionais, reconheciam o
abuso pelos Poderes Legislativos estaduais da competência, em princípio
discricionária, da criação de cargos públicos.
O primeiro acórdão, proferido no MS 7.243, em
sessão de 20.1.69, manteve a anulação de leis do Estado do Ceará com as quais,
no apagar das luzes de uma situação política derrotada, em apenas 56 dias,
mediante 25 atos legislativos foram instituídos, sob a forma de criação ou
transformação, 3.784 novos cargos públicos, o que equivalia a um-terço do total
do funcionalismo estadual então existente, estimado em 12.000 servidores,
elevando o custo mensal do pessoal a 94,24% das rendas do Estado.
Por essa forma, violava-se norma expressa da
Constituição estadual, que fixava o teto de 50% para a vinculação da receita ao
custeio do funcionalismo público, e se objetivava impedir o funcionamento
regular do Poder Executivo, no período do novo mandato que se ia inaugurar.
Em comentário a essa decisão, que firmou
precedente memorável, destacávamos a importância da tese por ela abonada:
‘A competência legislativa para criar cargos
públicos visa ao interesse coletivo de eficiência e continuidade da
administração. Sendo, em sua essência, uma faculdade discricionária, está, no
entanto, vinculada à finalidade, que lhe é própria, não podendo ser exercida
contra a conveniência geral da coletividade, com o propósito manifesto de
favorecer determinado grupo político, ou tornar ingovernável o Estado, cuja
administração passa, pelo voto popular, às mãos adversárias.
‘Tal abandono ostensivo do fim a que se destina a
atribuição constitucional configura autêntico desvio de poder (détournement de pouvoir), colocando-se a
competência legislativa a serviço de interesses partidários, em detrimento do
legítimo interesse público’ (RDA 59/347
e 348).
A mesma situação se renovou, no Estado do Rio
Grande do Norte, perante outro testamento político de um governo vencido no
pleito eleitoral sucessório, em que se comprometia desmedidamente o erário,
elevando a mais de 80% a despesa com o funcionalismo público.
Em decisão proferida na Repr. 512, julgada, por unanimidade,
pelo Tribunal Pleno, em sessão de 7.12.62, o STF reputou legítima a anulação,
pela Assembléia Legislativa, de leis inconstitucionais que compunham o
testamento político em causa.
Em memorial oferecido como advogado do novo
governo estadual, ponderávamos que ‘o desvio de poder legislativo,
caracterizado no inventário político, ofende o princípio da independência e
harmonia dos Poderes, além de violar a Constituição estadual’.
Em acórdãos posteriores os RE 48.655 e 50.219 (RDA 78/269 e 281), aplicando a
orientação firmada, a Corte Suprema reafirmou a tese da anulação, pelo Poder
Legislativo, de seus próprios atos inconstitucionais.
A acolhida do cabimento do desvio de finalidade
como vício de inconstitucionalidade fora anteriormente abonada em outro julgado
do STF em voto do Min. Orozimbo Nonato, relator do RE 18.331, que, nos termos
da respectiva ementa, após recordar o conhecido axioma de que o poder de taxar
não se pode extremar como poder destruir, destaca: ‘É um poder cujo exercício
não deve ir até o abuso, o excesso, o desvio, sendo aplicável, ainda que, a
doutrina fecunda do détournement de pouvoir’ (RF 145/146).
O excesso do poder de taxar foi igualmente
repelido com respeito à lei do Estado do Rio de Janeiro que exigia taxa
judiciária em termos excessivos, sem correspondência com o serviço prestado
(Repr. 1.077, RTJ 11/55).
Comentando o sentido inovador da jurisprudência do
Pretório Excelso, registra Seabra Fagundes, entre as fecundas criações
pretorianas, ‘a extensão da teoria do desvio de poder originária e
essencialmente dirigida aos procedimentos dos órgãos executivos, aos atos do
poder legiferante, de maior importância num sistema de Constituição rígida, em
que se comete ao Congresso a complementação do pensamento constitucional nos mais
variados setores da vida social, econômica e financeira’ (RF 151/549).
Em decisão de 31.8.67, no RMS 16.912, o tema do
desvio de poder como vício especial do ato legislativo foi expressamente
invocado.
Apreciando lei de organização judiciária na qual
se inseria emenda em benefício de determinado serventuário, advertiu o Min.
Prado Kelly: ‘tratava-se de reforma judiciária e a emenda representou um desvio
de poder na própria legislatura’. Sendo o mesmo Ministro as seguintes
expressões: ‘Tenho por demonstrado que a emenda não obedeceu ao presumido
escopo de interesse público e sim a uma inspiração que nem por ser equânime ou
reparadora (como pareceu ao interveniente) deixa de ser particularista ou de
favorecimento pessoal’.
Nessa decisão plenária, o Min. Victor Nunes Leal,
após aderir à posição ‘de que podemos exercer controle sobre os desvios de
poder da própria legislatura’, convocado por interpelação do Min. Aliomar
Baleeiro a declarar ‘se admitia um desvio de poder do Poder Legislativo fora do
caso de inconstitucionalidade’, não vacilou em afirmar categoricamente:
‘Admito’ (acórdão no RMS 16.912, RTJ
45/530-545, especialmente pp. 536 e 537).
Em questão relativa à permissão para explorar
linhas de ônibus, o STF apreciou a incidência do desvio de poder legislativo,
admitindo, em tese, a aplicação do princípio (RTJ 47/650 e 48/165).
Em três situações o STF repeliu, por
inconstitucionalidade, a aplicação de sanções administrativas com a finalidade
real de constranger o contribuinte à regularidade fiscal.
Decidiu a Corte Suprema que ‘é inadmissível a
interdição de estabelecimento ou apreensão de mercadorias como meio coercitivo
para a cobrança de tributo’ (Súmulas 70 e 323).
E, dilatando o princípio à inconstitucionalidade
dos Decs.- leis 5 e 42, de 1937 – que restringiam indiretamente a atividade
comercial de empresas em débito, impedindo-as de comprar selos ou despachar
mercadoria – implicitamente configurou o abuso de poder legislativo (Súmula 547
e acórdão no RE 63.026, RDA 10/209).
O excesso legislativo foi invocado em acórdão do
STF no RE 62.731, do qual foi Relator o Min. Aliomar Baleeiro. Afirmou-se a
inconstitucionalidade de decreto-lei que vedava a purgação de mora em locações.
Destacou a ementa da decisão a impertinência do fundamento por se tratar de ‘assunto
miúdo de Direito Privado’ que não se incluía no conceito de segurança nacional,
necessário àquela forma de processo legislativo (RDA 94/169).
O poder de polícia nas profissões somente pode ser
exercido com observância do princípio da razoabilidade, afirmou o acórdão na
Repr. 930 (apud Gilmar Ferreira
Mendes, ob. cit., p. 451).
E porque o impedimento do exercício profissional
da advocacia há juizes aposentados até dois anos após a inatividade ofendia o
princípio da razoabilidade, foi declarada a inconstitucionalidade da lei que
estabelecia tal interdição temporária, por violação àquele princípio (Repr.
1.054, RTJ 112/7).
Em parecer no qual analisamos a
inconstitucionalidade de deliberação do Banco Central do Brasil determinante da
indisponibilidade de contas bancárias do Estado – membro a suas empresas,
enfatizávamos que ‘importa desvio do Poder Legislativo decreto lei que se
utilize do bloqueio de contas bancárias como meio de cobrança regressiva de
aval a empréstimos externos’ (RDA
172/239).
Em outro parecer relativo à validade da lei
municipal que subordinava a permissão de funcionamento de estabelecimentos
comerciais aos sábados e domingos à prévia aprovação pelos órgãos sindicais,
entendíamos ocorrer violação da competência legal, a ser exercida pelo
Município, como emanação do poder de polícia.
Ressaltamos que, obrigando à intervenção dos
sindicatos para a obtenção de licença especial de funcionamento, o legislador
teve em mira o fortalecimento do sistema sindical, invadindo órbita de
competência privativa da União.
Concluímos, assim, que, ‘a toda evidencia, a lei
municipal, visando, a beneficiar o movimento sindical está maculada pelo vício
de abuso do poder normativo, caracterizado como desvio de finalidade’ (RDA 164/460).
O tema do desvio de poder legislativo foi
amplamente estudado, no Direito italiano, por Lívio Paladin, em ensaio sob o
título ‘Osservazioni sulla discrezionalità e sull’eccesso di potere del
legislatore ordinario’ (Rivista
Trimestrale di Diritto Pubblico, ano VI, 4/993-1.046, outubro –
dezembro/56).
Pondera o autor que: ‘L’illegitimità di ogni fine,
diverso da quello costituzionalmente previsto, consente logicametne di
configurare, sul piano legisltaivo, qual vizio della causa degli atti
amministrativi, ch è l’ecesso di potere’ (‘A ilegitimidade de todo fim, diverso
daquele constitucionalmente previsto, conduz logicamente afigurar-se, no plano
legislativo, aquele vício de causa dos atos administrativos, que é o excesso de
poder’) (Rivista cit. p. 1.031).
A figura do desvio de poder legislativo foi,
pioneiramente, sustentada por Santi Romano, que, reconhecendo o poder
discricionário do legislador, destaca, porém, o limite que se impõe em face da
finalidade da competência legislativa: ‘ma la figura dele potere discrezionale
richiede per l’appunto che di esse si faccia uso conforme alle finalità da cui
il potere medismo deriva; si há altrimenti uno sviamento di potere, che
costituisse uma violazione di direitto, nel senso più próprio della parola. Son
concetti questi di commune applicazione riguado alle compentenza degli oragnia
amministrativi e non si saprebbe indicarei l pechè non possono riferirsi, nella
loro generalità, al Parlamento. In certi campoi della sua funzione legislativa,
questo non há poteri sconfinati, ma poteri discricionali, il che vuol dire
litate, e non altro, dall’obbligo di fare uso per dati motivi’ (‘mas a figura
do poder discricionário reclama precisamente que dele se faça uso conforme à
finalidade, da qual o próprio poder deriva: há de outra forma um desvio de poder
que constitui uma violação de direito no sentido próprio da palavra. São
conceitos estes de aplicação comum no que se refere à competência dos órgãos
administrativos, e não se saberá indicar por que não parecem se referir em sua
generalidade, ao Parlamento. Em certos campos de sua competência legislativa,
este não possui poderes sem fronteiras, mas poderes discricionários, importa
dizer, limitados pelo menos da obrigação de fazer uso por motivos
determinados’) (‘Osservazioni preliminari per uma teoria sui limite della
funzione legislativa nel Diritto Pubblico’, 1902, e incluído na coletânea
Scriti Minori – Diritto Costituzionale, v. I/199, 1950).
Não é outro o pensamento de Costantino Mortati
quando adverte que ‘a lei poderá estar viciada de inconstitucionalidade não
somente quando o interesse perseguido contrasta com aquele imposto pela
Constituição, mas também nos casos em que o próprio teor da lei está em
absoluta incongruência com a norma editada e o fim do interesse público a ser
perseguido e o próprio legislador afirma pretender perseguir. Verifica-se,
nessa ultima hipótese, uma modalidade de vício de legitimidade assimilável ao
excesso de poder administrativo’ (‘la legge può risultare viziata per
incostituzionalità non solo quando l’interesse perseguito contrasta com quelllo
imposto dalla Costituzione, ma anche nei casi in cui dallo stesso tenore della
legge risulti un’assouta incongruenza fra la norma dettata ed il fine di
pubblico interesse che si doveva perseguire e che lo stesso legislatore assume
di volere perseguire. Si verificherebbe in quest’ultima ipotese un’ipotesi di
vizio della legittimità assimilabile a quello dell’eccesso di potere
amministrativo’) (verbete ‘Discricionalità’, Novissimo Digesto Italiano, v. V/1.09).
Entendemos, em suma, que a validade da norma de
lei, ato emanado do Legislativo, igualmente se vincula à observância da
finalidade contida na norma constitucional que fundamenta o poder de legislar.
O abuso de poder legislativo, quando
excepcionalmente caracterizado, pelo exame dos motivos, é vício especial de
inconstitucionalidade da lei, pelo divórcio entre o endereço real da norma
atributiva da competência e o uso ilícito que a coloca a serviço de interesse
incompatível com a sua legitima destinação.
Gilmar Ferreira Mendes dedicou capítulo especial
de sua monografia sobre controle de constitucionalidade à avaliação do excesso
de poder legislativo como vício substancial de inconstitucionalidade. Com apoio
na doutrina alemã e na lição de Canotilho, evidencia a prevalência da vinculação
do ato legislativo a uma finalidade e à aplicação do princípio da
proporcionalidade como elemento da legitimidade constitucional das leis.
Oferece, como exemplos, precedentes colhidos na jurisprudência do STF (Controle de Constitucionalidade, Saraiva,
1990, pp. 38-54).
Canotilho adverte que a lei é vinculada ao fim
constitucionalmente fixado e ao princípio de razoabilidade a fundamentar ‘a
transferência para os domínios da atividade legislativa da figura do desvio de
poder dos atos administrativos’ (Direito
Constitucional, 4ª ed., 1986, p. 739).
E, mais amplamente, o mesmo autor estuda o desvio
de poder legislativo diante do princípio de que ‘as leis estão todas
positivamente vinculadas quanto a fim pela Constituição’ (Constituição Dirigente e
Vinculação do Legislador, Coimbra, 1982, p. 259)’. (Caio Tácito. Desvio de
Poder no Controle dos Atos Administrativos, Legislativos e Jurisdicionais, in Revista Trimestral de Direito Público,
n. 04, São Paulo: Malheiros, 1993, pp. 33-37).
Verifica-se, no
presente caso, o abandono ostensivo do fim a que se destina a atribuição
constitucional, configurando-se verdadeiro desvio de poder, pois a competência
legislativa foi colocada a serviço de interesses outros, em detrimento do
legítimo interesse público.
Ante o exposto, o parágrafo
único do art. 54 da Lei Complementar nº 005/08 com a redação dada pelo art. 6º
da Lei nº 192/16, de Bananal, não se concilia com os arts. 111 e 115, V, da
Constituição Paulista, devendo ser declarada sua inconstitucionalidade por este
E. Tribunal de Justiça.
Face ao exposto, requerer-se o recebimento e o
processamento da presente ação para que, ao final, seja julgada procedente para
declarar a inconstitucionalidade do parágrafo único do art. 54 da Lei Complementar nº 005, de
04 de abril de 2008, com a redação dada pelo art. 6º da Lei nº 192, de 12 de
dezembro de 2016, do Município de Bananal.
Requer-se, ainda, sejam requisitadas
informações ao Prefeito Municipal e ao Presidente da Câmara Municipal de Bananal,
bem como posteriormente citado o Procurador-Geral do Estado para se manifestar
sobre o ato normativo impugnado, protestando por nova vista, posteriormente,
para manifestação final.
Termos em que, pede
deferimento.
São
Paulo, 21 de março de 2017.
Gianpaolo Poggio Smanio
Procurador-Geral de Justiça
wpmj/mjap
Protocolado nº 24.435/16
Promova-se a distribuição de ação direta de inconstitucionalidade,
instruída com o protocolado em epígrafe, em face do parágrafo único do art. 54
da Lei Complementar nº 005, de 04 de abril de 2008, na redação dada pelo art.
6º da Lei nº 192, de 12 de dezembro de 2016, do Município de Bananal.
São
Paulo, 21 de março de 2017.
Gianpaolo Poggio Smanio
Procurador-Geral de Justiça
wpmj/mjap