EXCELENTÍSSIMO SENHOR DESEMBARGADOR PRESIDENTE DO E. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

 

 

Protocolado n. 162.621/2016

 

                                                                                                                                        

Constitucional. Administrativo.  Ação direta de inconstitucionalidade por ação cumulada com ação declaratória de inconstitucionalidade por omissão. Art. 7º da Lei nº 1.884, de 29 de abril de 2015, do Município de Cotia. Fixação de ínfimo percentual de 10% (dez por cento) dos cargos de provimento em comissão a serem preenchidos por servidores de carreira do poder executivo no âmbito da administração direta, em atenção ao disposto no art. 115, V, da CE/89. Violação aos princípios da razoabilidade, proporcionalidade, moralidade (art. 111, CE) e burla implícita ao comando do art. 115, V, da CE/89. Ausência de edição de lei específica que estabeleça percentual mínimo dos cargos em comissão, na estrutura administrativa do Poder Executivo, inclusive na indireta, e no âmbito do Poder Legislativo, do Município de Cotia. 1. Inconstitucional a previsão de percentual para preenchimento de cargos em comissão na estrutura administrativa do município por servidores de carreira, no caso 10% (dez por cento) para os cargos comissionados do Poder Executivo, no âmbito da administração direta, vez que, ao estabelecer em lei percentual desse jaez, o Município torna mera ficção jurídica a exigência plasmada no art. 115, V, por evidente esvaziamento de sua ratio normativa; 2. Previsão normativa que não se concilia com os arts. 111 e 115, V, CE/89, pois torna sem efeito a intenção do Constituinte em limitar o provimento comissionado na estrutura administrativa do município; 3. Ação Declaratória de Inconstitucionalidade por Omissão. Ausência de edição de lei específica que estabeleça percentual mínimo dos cargos de provimento em comissão, a serem preenchidos por servidores de carreira, na estrutura administrativa do Poder Executivo, inclusive na indireta, e no âmbito do Poder Legislativo, do Município de Cotia; 4. A exigência constitucional de percentual mínimo dos cargos em comissão a serem preenchidos por servidores de carreira institui direito de acesso dos servidores públicos efetivos aos cargos de direção superior, bem como assegura a qualidade, a eficácia e a continuidade do serviço público; 5. Princípio da simetria. Princípio constitucional estabelecido (arts. 115, V, e 144 da Constituição do Estado de São Paulo). Obrigação de legislar. Omissão relevante, transcurso de mais de 8 anos, desde nova redação dada ao inciso V do art. 115 da Constituição Estadual pela Emenda Constitucional nº 21, de 14/2/2006, e mais de 16 anos da redação que a EC nº 19/1998 deu ao inciso V do art. 37 da Constituição Federal.

 

O Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, no exercício da atribuição prevista no art. 116, inciso VI, da Lei Complementar Estadual n. 734, de 26 de novembro de 1993, e em conformidade com o disposto no art. 125, § 2º, e no art. 129, inciso IV, da Constituição da República, e ainda no art. 74, inciso VI, e no art. 90, inciso III, da Constituição do Estado de São Paulo, com amparo nas informações colhidas no incluso protocolado, vem perante esse Egrégio Tribunal de Justiça promover a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE em face do art. 7º da Lei nº 1.884, de 29 de abril de 2015, do Município de Cotia, cumulada com AÇÃO DECLARATÓRIA DE INCONSTITUCIONALIDADE POR OMISSÃO em face do Prefeito Municipal e da Câmara Municipal de Cotia, pelos fundamentos a seguir expostos:

I. INCONSTITUCIONALIDADE POR AÇÃO

         ATO NORMATIVO IMPUGNADO

         A Lei nº 1.884, de 29 de abril de 2015, do Município de Cotia, que “CRIA, NO QUADRO DE CARGOS DA PREFEITURA, O GRUPO DE DIREÇÃO E ASSESSORAMENTO SUPERIORES – GDAS, EXTINGUE CARGOS EM COMISSÃO E DÁ OUTRAS PROVIDÊNCIAS”, estabeleceu em seu art. 7º, o percentual diminuto de 10% (dez por cento) dos cargos de provimento em comissão a serem preenchidos por servidores de carreira, com a seguinte redação (fls. 11/12):

“(...)

Art. 7º - Nos termos do artigo 37, V, da Constituição Federal, serão ocupados exclusivamente por servidores de carreira 10% (dez por cento) dos cargos em comissão integrantes do Grupo de Direção e Assessoramento Superiores – GDAS dos níveis I a IV.

(...)”

A proporção fixada pelo ato normativo citado acima impõe que apenas 10% (dez por cento) dos cargos comissionados sejam ocupados por servidores de carreira da Prefeitura.

A partir de uma leitura rasa do diploma transcrito, ainda que a contrario sensu, o intérprete tem a impressão de que a legislação examinada guarda obediência ao comando inscrito no art. 115, V, da Carta Paulista, o qual reclama a edição de lei estipulando percentual mínimo dos cargos em comissão na estrutura administrativa do ente a serem ocupados por servidores efetivos.

Todavia, conforme será demonstrado no curso desta vestibular, a partir da interpretação do art. 7º, do diploma impugnado, ao prever percentual ínfimo de 10% (dez por cento) dos cargos de provimento em comissão a serem preenchidos por servidores de carreira do Poder Executivo, no âmbito da administração direta, o Município torna a exigência plasmada no art. 115, V, mera ficção jurídica por evidente esvaziamento de sua ratio normativa, havendo, portanto, notória violação aos arts. 111 e 115, V, da Constituição Estadual.

II – O parâmetro da fiscalização abstrata de constitucionalidade

1.     FIXAÇÃO DE PERCENTUAL ÍNFIMO

         O percentual estabelecido no art. 7º da Lei nº 1.884, de 29 de abril de 2015, do Município de Cotia, contraria frontalmente a Constituição do Estado de São Paulo, à qual está subordinada a produção normativa municipal ante a previsão dos arts. 1º, 18, 29 e 31 da Constituição Federal.

Os preceitos da Constituição Federal e da Constituição do Estado são aplicáveis aos Municípios por força do art. 29 daquela e do art. 144 desta.

O dispositivo normativo contestado é incompatível com os seguintes preceitos da Constituição Estadual:

Artigo 111 - A administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes do Estado, obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, razoabilidade, finalidade, motivação, interesse público e eficiência.

(...)

Artigo 115 - Para a organização da administração pública direta e indireta, inclusive as fundações instituídas ou mantidas por qualquer dos Poderes do Estado, é obrigatório o cumprimento das seguintes normas:

(...)

V - as funções de confiança, exercidas exclusivamente por servidores ocupantes de cargo efetivo, e os cargos em comissão, a serem preenchidos por servidores de carreira nos casos, condições e percentuais mínimos previstos em lei, destinam-se apenas às atribuições de direção, chefia e assessoramento; 

(...)

Artigo 144 - Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição”.

         O art. 144 da Constituição Estadual limita e condiciona a autonomia municipal, determinando a observância dos princípios estabelecidos na Constituição Federal e na Constituição Estadual.

         O inciso V do art. 115 da Constituição Estadual, reproduzindo o inciso V do art. 37 da Constituição Federal, determina a reserva de percentual mínimo, adotado em ato normativo, de cargos de provimento em comissão a servidores de carreira, com nítido escopo de estímulo à profissionalização do serviço público (e consequente valorização do servidor público titular de cargo de provimento efetivo, isolado ou de carreira), bem como compatibilizar a liberdade de provimento de cargos comissionados com os princípios que norteiam a atividade administrativa, previstos no art. 111 da Carta Bandeirante.

É sabido que a nossa ordem constitucional republicana privilegia a meritocracia, não o favoritismo, o nepotismo ou qualquer outro subjetivismo.

O princípio da moralidade impõe o recrutamento do pessoal que servirá ao Poder Público pelo critério do concurso público. Excepcionalmente, e para hipóteses cada vez mais extravagantes, caberá o provimento em comissão e, mesmo dentre essas hipóteses, há que prevalecer a preferência por quem já integra a carreira.

Os cargos públicos têm de restar acessíveis a todos aqueles que, providos em razão da qualificação profissional exigida, também se mostrem merecedores de ocupá-los, após vencerem a corrida de obstáculos de um concurso sério, transparente, aberto a todos, fenômeno com o qual a Democracia não pode transigir.

Cumpre salientar que o art. 115, V, da Constituição Estadual institui o princípio constitucional de acessibilidade aos cargos de direção superior da administração aos servidores públicos efetivos.

A necessidade de observância a tal mandamento constitucional visa não só estimular e servir de prêmio à dedicação do servidor efetivo, mas passa a integrar o próprio plano de carreira. Deve se estabelecer uma proporcionalidade para que alguns cargos de provimentos em comissão da administração sejam preenchidos por servidores públicos efetivos.

De outro lado, tal proporcionalidade é necessária para assegurar a qualidade, a eficiência, a profissionalização e a continuidade do serviço público, sobretudo por ocasião das mudanças de governo, quando se verifica uma substituição significativa dos ocupantes de cargos importantes da direção superior da Administração Pública. Nas trocas de governos, deve existir uma estrutura mínima de pessoal do quadro de servidores públicos para ocupação de postos responsáveis pela condução superior da administração para que ela não sofra solução de continuidade.

Pois bem.

A partir da interpretação do art. 7º, do diploma impugnado, se constata que 90% (noventa por cento) dos cargos de provimento em comissão, na administração direta do Poder Executivo, poderão ser preenchidos por servidores puramente comissionados e somente 10% (dez por cento) serão ocupados por servidores de carreira.

Dessa forma, abstraindo-se a quantidade, em primeira análise, poder-se-ia cogitar sua obediência ao disposto no art. 115, V, da Constituição Estadual, porquanto se visualiza no ente em comento diploma tendente a dar cumprimento ao comando constitucional apontado.

Contudo, a partir de uma interpretação acurada da ratio essendi do art. 115, V, da CE, a intelecção supramencionada revela-se errônea, pois ao prever percentual assaz diminuto (e até mesmo inexistente) de postos comissionados a serem preenchidos por servidores de carreira no ente, conforme acima mencionado, tornou mera ficção o dispositivo indicado por representar evidente esvaziamento de seu comando, havendo, portanto, notória violação aos arts. 111 e 115, V, da Carta Paulista, por afronta evidente à razoabilidade, à proporcionalidade, à moralidade e burla implícita à excepcionalidade do provimento em comissão quando do preenchimento de postos na estrutura da Administração.

Nesse sentido, aliás, já se manifestou este Sodalício, firmando em sua jurisprudência um piso de 50% (cinquenta por cento) ao percentual reclamado pelo Constituinte quando da edição do art. 115, V, na Constituição Estadual. In verbis:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE POR OMISSÃO PERCENTUAL DOS CARGOS DE PROVIMENTO EM COMISSÃO A SEREM PREENCHIDOS POR SERVIDORES EFETIVOS - EXIGÊNCIA CONSTITUCIONAL DE FIXAÇÃO POR LEI - Mora verificada Inconstitucionalidade por omissão reconhecida, com fixação de prazo de 180 (cento e oitenta) dias para tomada das providências necessárias, após o que, em caso de persistência da mora, 50% dos cargos em questão deverão ser preenchidos por servidores efetivos. Ação procedente, com determinação.” (TJSP, ADI nº 2069053-15.2015.8.26.0000, Órgão Especial, Rel. Des. Moacir Peres, j. em 16.08.15 v.u – g.n.).

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE POR OMISSÃO. Ausência de edição de lei específica que estabeleça percentual mínimo dos cargos de provimento em comissão a serem preenchidos por servidores de carreira, na estrutura administrativa do Município de Valparaíso, conforme preconiza o artigo 115, V, da Constituição Estadual. Inconstitucionalidade latente. Mora legislativa configurada. Ação procedente com fixação do prazo de 180 (cento e oitenta) dias para que a omissão seja suprida, bem como determinar que, enquanto persistir a omissão legislativa, ao menos 50% (cinquenta por cento) dos cargos em comissão sejam preenchidos por servidores efetivos.” (TJSP, ADI nº 2010554-38.2015.8.26.0000, Órgão Especial, Rel. Des. Péricles Piza, j. em 10.06.15 v.u – g.n.).

         Ademais, esse egrégio Tribunal de Justiça já se manifestou no sentido de ser desproporcional a fixação de ínfimo percentual mínimo de cargos de provimento em comissão a serem preenchidos por servidores de carreira, nos termos da ementa abaixo:

“Ação direta de inconstitucionalidade. Lei Municipal que fixa em quatro por cento o percentual mínimo de cargos de provimento em comissão a serem ocupados por servidores de carreira. A atividade legislativa não poder ser exercida de forma abusiva, ou de modo a tornar inócua previsão constitucional. Normativa que afronta o princípio da razoabilidade. Concessão de prazo de cento e oitenta dias para edição de nova lei regulamentando a matéria, sob pena de ser aplicado percentual mínimo de cinquenta por cento. Pedido julgado procedente”. (TJ/SP, ADI nº 2111908-72.2016.8.26.0000, Des. Rel. Márcio Bartoli, julgada em 19 de outubro de 2016)

Ante o exposto, o percentual estabelecido na lei objurgada não se concilia com os arts. 111 e 115, V, da Constituição Paulista, devendo ser declarada sua inconstitucionalidade por este E. Tribunal de Justiça.

2. INCONSTITUCIONALIDADE POR OMISSÃO: AUSÊNCIA DE LEI QUE ESTABELEÇA PERCENTUAL MÍNIMO DOS CARGOS DE PROVIMENTO EM COMISSÃO A SEREM PRENCHIDOS POR SERVIDORES DE CARREIRA NA ESTRUTURA ADMINISTRATIVA DO PODER EXECUTIVO, INCLUSIVE NA INDIRETA, E NO ÂMBITO DO PODER LEGISLATIVO, DO MUNICÍPIO DE COTIA

Não bastasse o pedido de declaração de inconstitucionalidade do art. 7º da Lei nº 1.884, de 29 de abril de 2015, do Município de Cotia, levar à inexistência de norma que regulamente o art. 115, V, da Constituição Estadual, cumpre asseverar que ainda há omissão inconstitucional no tocante às pessoas jurídicas de direito público da Administração descentralizada e à Câmara Municipal, pois a Lei nº 1.884/2015, do Município de Cotia, é restrita à Prefeitura.

Convém, ainda adicionar, que essa possibilidade que envolve a cumulação de ação foi adotada no julgamento da ADI nº 2036862-77.2016.8.26.0000, conforme dispõe a seguinte ementa:

“Ação direta de inconstitucionalidade. Parágrafo 2º do artigo 63, da Lei 2.237, de 28 de fevereiro de 2014. Fixação do percentual mínimo de 5% de cargos em comissão, na Administração do Município de Itapevi, a ser preenchido por servidores de carreira. Inadmissibilidade. Eleição de fração irrisória. Defeito do ato normativo. Reconhecimento. Inobservância dos critérios de razoabilidade, proporcionalidade e moralidade. Expressões “Coordenador, Chefe de Setor, Chefe de Divisão, Assessor Jurídico e Secretário da Junta Militar” descritas nos anexos I e II. Criação de cargos públicos de provimento em comissão, na estrutura administrativa do município, em desconformidade com a regra da exigência de concurso público. Atribuições que não se revestem da excepcionalidade exigível no nível superior de assessoramento, chefia e direção como funções inerentes aos cargos daquela natureza. Inteligência dos artigos 111, 115, incisos II e V, e 144 da Constituição Estadual. Assessor Jurídico. Impossibilidade. As atividades de advocacia pública, inclusive a assessoria e a consultoria de corporações legislativas e suas respectivas chefias, são reservadas a profissionais recrutados pelo sistema de mérito. Afronta aos artigos 98 a 100 da Constituição Estadual. Ação julgada procedente, com modulação”. (TJ/SP, ADI nº 2036862-77.2016.8.26.0000, Des. Rel. Sérgio Rui, julgada em 19 de outubro de 2016)

A-   DA OMISSÃO INCONSTITUCIONAL

A necessidade da fixação em lei de percentual mínimo de cargos em comissão na estrutura administrativa dos Poderes Públicos a serem ocupados por servidores efetivos decorre da Emenda Constitucional nº 21, de 14.02.2006, que, reproduzindo o art. 37, V, da Constituição Federal (com a redação dada pela EC nº 19/1998), deu a seguinte redação ao art. 115, V da Constituição Estadual:

“(...)

Art. 115 - Para a organização da administração pública direta e indireta, inclusive as fundações instituídas ou mantidas por qualquer dos Poderes do Estado, é obrigatório o cumprimento das seguintes normas:

(...)

V - as funções de confiança, exercidas exclusivamente por servidores ocupantes de cargo efetivo, e os cargos em comissão, a serem preenchidos por servidores de carreira nos casos, condições e percentuais mínimos previstos em lei, destinam-se apenas às atribuições de direção, chefia e assessoramento

(...)”.

A regra dos cargos em comissão é a transitoriedade.

Todavia, o que se vê no Brasil é uma burla à Constituição às avessas, um número de 600 mil servidores que não são concursados, mas que são investidos em cargos que deveriam ser ocupados por servidores titulares de cargos de provimento efetivo.

A Emenda nº 19/98 tentou corrigir essa perversão do sistema, ao alterar o inciso V do art. 37 da Constituição Federal. A Emenda determinou que um percentual mínimo dos cargos em comissão fosse ocupado por servidores concursados.

A nossa ordem constitucional republicana privilegia a meritocracia, não o favoritismo, o nepotismo ou qualquer outro subjetivismo.

O princípio da moralidade impõe o recrutamento do pessoal que servirá ao Poder Público pelo critério do concurso público. Excepcionalmente, para hipóteses cada vez mais excepcionalíssimas, caberá o provimento em comissão e, dentre essas hipóteses, há que prevalecer a preferência por quem já integra a carreira.

Os cargos públicos têm de restar acessíveis a todos aqueles que, providos da qualificação profissional exigida, também se mostrem merecedores de ocupá-los, após vencerem a corrida de obstáculos de um concurso sério, transparente, aberto a todos, fenômeno com o qual a Democracia não pode transigir.

Cumpre salientar que o art. 115, V, da Constituição Estadual institui o princípio constitucional de acessibilidade aos cargos de direção superior da administração aos servidores públicos efetivos.

A necessidade de observância a tal mandamento constitucional visa não só estimular e servir de prêmio à dedicação do servidor efetivo, mas passa a integrar o próprio plano de carreira. Deve se estabelecer uma proporcionalidade para que alguns cargos de provimento em comissão da administração sejam preenchidos por servidores públicos efetivos.

De outro lado, tal proporcionalidade é necessária para assegurar a qualidade, a eficiência, a profissionalização e a continuidade do serviço público, sobretudo por ocasião das mudanças de governo, quando se verifica uma substituição significativa dos ocupantes de cargos importantes da direção superior da Administração Pública. Nas trocas de governos, deve existir uma estrutura mínima de pessoal do quadro de servidores públicos para ocupação de postos responsáveis pela condução superior da administração para que ela não sofra solução de continuidade.

O art. 90 da Constituição Estadual prevê a ação de inconstitucionalidade por omissão de medida necessária para tornar efetiva norma ou princípio da Constituição.

A omissão na fixação do percentual que assegurará a acessibilidade aos cargos em comissão pelos servidores efetivos configura violação ao art. 115, V, da Constituição Estadual, que, pelo princípio da simetria previsto em seu art. 144, deve ser observado pelos municípios na sua produção normativa e organização administrativa.

B.    DO DEVER DE LEGISLAR

A nossa Constituição Federal tem natureza compromissória e dirigente, uma vez que, mais do que organizar e limitar o poder político, institui direitos consubstanciados em prestações materiais exigíveis e impõe metas vinculantes para os poderes constituídos.

A realização ordinária da vontade constitucional concretiza-se através do processo legislativo conduzido pelos agentes públicos eleitos e pelo exercício regular das atribuições conferidas aos órgãos públicos.

No entanto, quando a inefetividade se instala, frustrando a supremacia da Constituição, cabe ao Judiciário suprir o déficit de legitimidade democrática da atuação do Legislativo.

A Constituição Federal é composta de normas jurídicas dotadas de supralegalidade. Atributo das normas constitucionais é sua imperatividade. Descumpre a imperatividade de uma norma constitucional quer quando se adota uma conduta por ela vedada – em violação a uma norma proibitiva, quer quando se deixa de adotar uma conduta por ela determinada – em violação de uma norma preceptiva. Porque assim é, a Constituição é suscetível de violação tanto por ação como por omissão. (Luís Roberto Barroso, O controle de constitucionalidade no direito brasileiro, São Paulo, Saraiva, 2012, p. 279).

Na hipótese que se apresenta, a omissão normativa municipal de iniciativa do Chefe do Poder Executivo, no que diz respeito ao quadro funcional da Administração Direta e da Indireta, e de iniciativa do Poder Legislativo, no que toca à estrutura da Câmara Municipal, reclamam intervenção excepcional do Judiciário para a realização da vontade constitucional.

A propósito, já decidiu o Supremo Tribunal Federal que:

“Se o Estado deixar de adotar as medidas necessárias à realização concreta dos preceitos da Constituição, em ordem a torná-los efetivos, operantes e exeqüíveis, abstendo-se, em conseqüência, de cumprir o dever de prestação que a Constituição lhe impôs, incidirá em violação negativa do texto constitucional. Desse non facere ou non praestare, resultará a inconstitucionalidade por omissão, que pode ser total, quando é nenhuma a providência adotada, ou parcial, quando é insuficiente a medida efetivada pelo Poder Público.” (STF. ADIn 1.439-DF, Rel Min. Celso de Mello, DJ 30.05.2003)

Observe-se que a referida norma constitucional não possui eficácia imediata, pois exige que a lei estabeleça as condições e os percentuais mínimos dos cargos em comissão que serão preenchidos por servidores públicos efetivos.

Assim, a fixação de percentual de cargos de comissão a serem preenchidos por servidores público efetivos é necessária para que se torne efetivo o art. 115, V, da Constituição Estadual que garante ao servidor público efetivo acesso aos cargos da administração superior do município.

Lembremos que, embora existam outras classificações quanto à eficácia das normas constitucionais, ou seja, sua aptidão para produção de efeitos no mundo jurídico, é convincente aquela proposta por José Afonso da Silva, que as separa em: (a) normas de eficácia plena (self-executing ou “autoexecutáveis”); (b) normas de eficácia contida (ou de conteúdo “restringível”); (c) normas de eficácia limitada (not self-executing, ou “não autoexecutáveis”).

Sabe-se que somente as primeiras, nessa classificação (normas de eficácia plena) produzem efeitos imediatos, independentemente de edição de normas infraconstitucionais. As da segunda categoria, por sua vez, são aquelas que produzem efeitos imediatos mesmo sem serem regulamentadas, mas estão sujeitas a delimitação ou restrições por norma infraconstitucional. As da última categoria são esvaziadas de eficácia imediata, só concretizando a promessa constitucional nelas contida com a edição da legislação infraconstitucional pertinente ao tema (autor citado, Aplicabilidade das normas constitucionais, 3. ed., São Paulo, Malheiros, 1998, p. 63 e ss).

Naquilo que interessa ao caso específico, não há dúvida de que o dispositivo constitucional mencionado assegura a acessibilidade dos servidores públicos aos cargos em comissão. A concretização dessa diretriz constitucional está nitidamente vinculada ou condicionada à edição de ato normativo de escalão inferior para a fixação do seu percentual e condições.

Desse modo, tratando-se de matéria subordinada à iniciativa legislativa do Prefeito Municipal, nos termos do art. 24, § 2º, 1, da Constituição Estadual, quanto aos servidores que compõe a Administração Direta e a Indireta, e à iniciativa da Câmara Municipal, quanto ao seu quadro de servidores, verificada a inércia, fica absoluta e incontestavelmente configurada a omissão normativa, a exigir a intervenção do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, através do exercício da jurisdição constitucional.

C.    A OMISSÃO NORMATIVA INFRACONSTITUCIONAL E SUA SOLUÇÃO

A superlativa gravidade da omissão normativa inconstitucional se evidencia, na medida da constatação de que ela perdura por mais de seis anos, considerada a data da redação dada ao inciso V do art. 115 da Constituição Estadual. E, por mais de 14 anos, tomando por base a redação do art. 37, V, da Constituição Federal.

Com efeito, ao prestar informações o Prefeito Municipal alegou a edição da Lei nº 1.884, de 29 de abril de 2015, do Município de Cotia, que dispõe, dentre outros temas, sobre o percentual mínimo de 10% (dez por cento) dos cargos de provimento em comissão a serem preenchidos por servidores de carreira da Prefeitura (fls. 10/13), que conforme afirmado em tópico anterior não supre a exigência plasmada no art. 115, V, da Constituição Estadual.

Não bastasse, ainda que fosse constitucional referido percentual, não houve estabelecimento daquele para os cargos de provimento em comissão a serem preenchidos no âmbito da administração indireta.

Por sua vez, houve expedição de ofício ao Presidente da Câmara Municipal de Cotia às fls. 08, para que informasse se há ato normativo estabelecendo referido percentual, porém até a presente data não houve resposta.

A omissão do Prefeito Municipal e da Câmara Municipal, respectivamente, em dar início ao processo legislativo, em conformidade com os parâmetros constitucionais, estabelecendo percentual mínimo de cargos em comissão a serem ocupados por servidores público efetivos, indica de modo claro a prevalência da omissão legislativa, levando-nos a concluir que sem a intervenção jurisdicional, com o reconhecimento da inconstitucionalidade por omissão, a lacuna infraconstitucional não encontrará solução.

A omissão do legislador para tornar efetiva norma constitucional de eficácia limitada encontra reparo através da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão. É o que dispõe o art. 90, § 4º, da Constituição Estadual (que reproduz, com adaptações, a previsão contida no art. 103, § 2º, da CF):

“(...)

Art. 90.

(...)

§ 4º. Declarada a inconstitucionalidade por omissão de medida para tornar efetiva norma desta Constituição, a decisão será comunicada ao Poder competente para a adoção das providências necessárias à prática do ato que lhe compete ou início do processo legislativo, e, em se tratando de órgão administrativo, para a sua ação em trinta dias, sob pena de responsabilidade.

(...)”.

O Col. Supremo Tribunal Federal tem, há muito, reafirmado a necessidade de firme combate às omissões normativas inconstitucionais, que se revelam tanto na ausência de norma infraconstitucional como na sua insuficiência para dar concretude às diretrizes estabelecidas na Constituição Federal (ADI 1.458-MC, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 23-5-96, DJ de 29-9-96. No mesmo sentido: ADI 1.439-MC, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 22-5-96, DJ de 30-5-03).

A propósito do tema, inclusive, esse Colendo Órgão Superior decidiu recentemente que:

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE POR OMISSÃO. Alegação de ofensa ao Art. 115, inciso V, da Constituição Estadual, que dispõe que os cargos em comissão (destinados apenas às atribuições de direção, chefia e assessoramento) devem ser preenchidos por servidores de carreira nos casos, condições e percentuais mínimos previstos em lei.

Reconhecimento de inconstitucionalidade em razão da inexistência de norma disciplinando a questão no âmbito do município de Nova Campina. Mora legislativa configurada. Ação procedente com fixação do prazo de 180 (cento e oitenta) dias para que a omissão seja suprida.

Estabelecimento, ainda, do percentual mínimo de 50 % (cinquenta por cento) para preenchimento dos cargos em comissão por servidores públicos efetivos, na hipótese de persistência da omissão normativa além do prazo fixado. (Ação Declaratória de Inconstitucionalidade por Omissão nº 0140894-75.2013.8.26.0000, Rel. Des. Ferreira Rodrigues, j. 20 de agosto de 2014).”

A doutrina, do mesmo modo, anota que a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão é instrumento de “defesa da integralidade da vontade constitucional. É procedimento apropriado para a declaração da mora do legislador, com o consequente desencadeamento, por iniciativa do próprio órgão remisso, do processo de suprimento da omissão inconstitucional” (Clèmerson Merlin Clève, A fiscalização abstrata da constitucionalidade no direito brasileiro, 2. ed., São Paulo, RT, 2000, p. 339/340).

Confira-se ainda: Luís Roberto Barroso, O controle de constitucionalidade no direito brasileiro, São Paulo, Saraiva, 2004, p. 195/198; Oswaldo Luiz Palu, Controle de constitucionalidade, 2. ed., São Paulo, RT, 2001, p. 285/291.

Tendo presente que o processo objetivo de controle de constitucionalidade tem como finalidade assentada na Constituição Federal assegurar sua eficácia normativa, a interpretação finalista e sistemática para tal instituto deve conduzir à conclusão de que a mera determinação de suprimento da omissão legislativa não será suficiente no caso concreto aqui examinado, pois seguramente haverá manutenção da situação de omissão inconstitucional.

Esse quadro demonstra o acerto da solução da doutrina e da jurisprudência que vislumbram a possibilidade de suprimento da omissão normativa infraconstitucional pela própria decisão proferida no controle concentrado.

Dirley da Cunha Júnior (Controle judicial das omissões do poder público, São Paulo, Saraiva, 2004, p. 547) põe a questão em destaque, observando que:

“(...)

para além da ciência da declaração da inconstitucionalidade aos órgãos do Poder omissos, é necessário que se estipule um prazo razoável para o suprimento da omissão. Mas não é só. A depender do caso, expirado esse prazo sem que qualquer providência seja adotada, cumprirá ao Poder Judiciário, se a hipótese for de omissão de medida de índole normativa, dispor normativamente sobre a matéria constante da norma constitucional não regulamentada. Essa decisão, acentue-se, será provisória, terá efeitos gerais (erga omnes) e prevalecerá enquanto não for realizada a medida concretizadora pelo poder público omisso (...)”. (g.n.)

 No mesmo sentido, é o pensamento de Luís Roberto Barroso, formulando críticas à interpretação restritiva do alcance do instituto aqui empregado (O controle de constitucionalidade no direito brasileiro, cit., p. 208/214), bem como a doutrina de Clèmerson Merlin Clève (A fiscalização abstrata da constitucionalidade no direito brasileiro, cit., p. 349/350).

Em suma, com o esperado acolhimento desta ação, será pertinente a fixação de prazo para que a lacuna legislativa seja eliminada, bem como a determinação de que, na hipótese de persistência da omissão normativa, como decorrência da eficácia vinculante da decisão proferida pelo Tribunal de Justiça, seja fixado percentual mínimo para os comissionamentos do pessoal com vínculo efetivo com a municipalidade.

Apenas a título de ilustração e como parâmetro para a fixação do percentual mínimo por esse Colendo Órgão Especial necessária para conferir eficácia vinculante à decisão a ser proferida, importante apontar a proporção de cargos em comissão existentes no Governo Federal, tradicionalmente apontado como fonte inesgotável de funções comissionadas, verificada no  Boletim Estatístico de Pessoal, publicado no mês de janeiro de 2013, (http://www.servidor.gov.br/publicacao/boletim_estatistico/bol_estatistico_13/Bol201_Jan2013.pdf).

De acordo com o referido documento, havia, em dezembro de 2012, 90.173 servidores exercendo funções comissionadas na União (em um universo de 999.661 servidores). O grupo mais significativo e com maior evidência dentre essas funções refere-se os cargos de DAS (Cargo de Direção e Assessoramento Superiores). O número de servidores enquadrados nesse quadro corresponde a 24,85 % do total de comissionados da União (22.417 funcionários) e, dentre esses, apenas 26,4% (5.930) são comissionados puros que não tem qualquer vínculo com a Administração Pública. Ainda que não seja vinculante, o comportamento da União, que conta com a maior arrecadação dentre os entes federativos, deve ser espelho para as demais, sobretudo os menores - inclusive do ponto de vista fiscal - que são os Municípios.

III.     DO PEDIDO

Face ao exposto, requer-se o recebimento e o processamento da presente ação para que, ao final, seja julgada procedente para:

a)                       declarar a inconstitucionalidade do art. 7º da Lei nº 1.884, de 29 de abril de 2015, do Município de Cotia, responsável por fixar o percentual para preenchimento de cargos em comissão na estrutura administrativa da Prefeitura;

      b) a declaração da existência de mora legislativa, quanto à edição de lei específica (Poder Executivo) e ato normativo específico (Câmara Municipal), para fixação de percentual mínimo dos cargos em comissão a serem preenchidos por servidores públicos de carreira, em relação à estrutura administrativa do Poder Executivo (inclusive da administração descentralizada) e a do Poder Legislativo, do Município de Cotia;

         c) seja dada ciência à Câmara Municipal e ao Prefeito Municipal de Cotia, fixando-se prazo sucessivo para o encaminhamento de proposta legislativa (Prefeito Municipal) e para a edição dos atos normativos (Câmara Municipal), imprescindíveis à concretização das diretrizes constitucionais já consignadas;

         d) seja fixado percentual mínimo dos cargos em comissão para preenchimento por servidores públicos efetivos, a ser observado pelo município, na hipótese de persistência da omissão normativa além do prazo fixado no item anterior.

Requer-se, ainda, que sejam requisitadas informações à Câmara Municipal e ao Prefeito Municipal de Cotia, bem como posteriormente citado o Procurador-Geral do Estado para manifestar-se sobre o ato normativo impugnado.

 Posteriormente, aguarda-se vista para fins de manifestação final.

 Termos em que,

 Aguarda-se deferimento.

São Paulo, 21 de março de 2017.

 

Gianpaolo Poggio Smanio

Procurador-Geral de Justiça

 

wpmj/mi

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Protocolado n. 162.621/2016

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

1.     Distribua-se a inicial da Ação Direta de Inconstitucionalidade cumulada com Inconstitucionalidade por Omissão em relação ao Município de Cotia.

2.     Providenciem-se as anotações e comunicações de praxe aos interessados.

3.     Cumpra-se.

 

São Paulo, 21 de março de 2017.

 

Gianpaolo Poggio Smanio

Procurador-Geral de Justiça

 

 

wpmj/mi