Excelentíssimo
Senhor Doutor Desembargador Presidente do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado
de São Paulo
Protocolado n. 169.783/16
Ementa: Constitucional. Administrativo.
Urbanístico. Lei Complementar n. 228, de 23 de maio de 1997, do Município de Jundiaí.
Ação Direta de Inconstitucionalidade. Instituição de loteamento fechado. Ausência
de participação comunitária. Iniciativa Parlamentar. Invasão da reserva da
Administração. Violação à liberdade de circulação. Ausência de razoabilidade e interesse público. Invasão da esfera
normativa alheia sobre direito civil, direito urbanístico. 1. Lei inconstitucional por não ter sido assegurada a
participação comunitária em seu respectivo processo legislativo (art. 180, II,
CE/89) e cuja iniciativa parlamentar caracteriza violação ao
princípio da separação de poderes por invasão da esfera da reserva da
Administração (art. 5º e 47, II e XIV, CE/89). 2. O fechamento de loteamento, anterior
ou posterior, é restrição incompatível com as funções essenciais da cidade, a
limitação à liberdade de circulação e de acesso e usufruto dos bens públicos de
uso comum do povo (art. 180, I, CE/89). 3.
Legislação a que falta interesse público e razoabilidade (art. 111, CE/89):
aquele significa a garantia do livre acesso e do irrestrito gozo dos bens
públicos de uso comum do povo, não se coadunando com a restrição, discriminação
incompatível com o princípio da igualdade, sem possuir racionalidade, justiça,
bom senso ou amparo em elemento diferencial justificável. 4. Incompatibilidade da lei local com a repartição constitucional
de competências normativas, a que remete o art. 144, CE/89, pela invasão da
competência alheia para legislar sobre direito civil e direito urbanístico, não havendo espaço para invocação de interesse local por não
haver sua predominância nem para suplementação normativa que contraria regras
federais. 5. Violação ao art. 144,
CE/89, também patenteada pela restrição à liberdade de circulação, princípio
estabelecido como direito fundamental.
O
Procurador-Geral
de Justiça do Estado de São Paulo, no exercício da atribuição
prevista no art. 116, VI, da Lei Complementar Estadual n. 734, de 26 de
novembro de 1993 (Lei Orgânica do Ministério Público do Estado de São Paulo),
em conformidade com o disposto no art. 125, § 2º, e no art. 129, IV, da
Constituição Federal, e, ainda, nos arts. 74, VI, e 90, III, da Constituição do
Estado de São Paulo, com amparo nas informações colhidas no incluso
protocolado, vem, respeitosamente, perante esse egrégio Tribunal de Justiça,
promover a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE
em face da Lei Complementar n. 228, de 23 de maio de 1997, do Município de Jundiaí, pelos fundamentos a seguir expostos:
I – O Ato Normativo Impugnado
A Lei
Complementar n. 228, de 23 de maio de 1997, do Município de Jundiaí, que “considera loteamentos fechados Chácara de Recreio Fazenda Malota e
Parque Residencial Malota”, possui a seguinte redação:
Art. 1°. São considerados loteamentos fechados, assinalados nas plantas anexas.
I — Chácaras de Recreio Fazenda Malota.
II — Parque Residencial Malota.
Parágrafo único: Os interessados podem edificar guarita de segurança nas vias de acesso aos loteamentos.
Art. 2° - Esta lei complementar entrará em vigor na data de sua publicação.
Em síntese, a Lei Complementar Municipal n. 228/97 disciplina o fechamento de loteamentos regularmente aprovados como abertos, estabelecendo acesso controlado a bens públicos de uso comum do povo, os quais, como é sabido, são livres, amplos, indistintos e incondicionados.
Não bastasse a inconstitucionalidade material, essa lei também está viciada sob o aspecto formal, vez que resultante de iniciativa parlamentar que não primou pela participação da comunidade (fls. 24/42).
II – O parâmetro da
fiscalização abstrata de constitucionalidade
A lei
municipal impugnada contraria frontalmente a Constituição do Estado de São
Paulo, à qual está subordinada a produção normativa municipal ante a previsão
dos arts. 1º, 18, 29 e 31 da Constituição Federal.
Os preceitos da Constituição Federal e da Constituição do Estado são aplicáveis aos Municípios por força do art. 29 daquela e do art. 144 desta.
Conforme será demonstrado, a inconstitucionalidade da Lei Complementar n. 228, de 23 de maio de 1997, do Município de Jundiaí, manifesta-se em face dos seguintes preceitos da Constituição Estadual Paulista:
“Artigo 5º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.
§ 1º - É vedado a qualquer dos Poderes delegar atribuições.
§ 2º - O cidadão, investido na função de um dos Poderes,
não poderá exercer a de outro, salvo as exceções previstas nesta Constituição.
(...)
Artigo 47 - Compete privativamente ao Governador, além de
outras atribuições previstas nesta Constituição:
(...)
II - exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção
superior da administração estadual;
(...)
XI - iniciar o processo legislativo, na forma e nos casos
previstos nesta Constituição;
(...)
XIV - praticar os demais atos de administração, nos limites da
competência do Executivo;
(...)
Artigo 111 – A administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes do Estado, obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, razoabilidade, finalidade, motivação, interesse público e eficiência.
(...)
Artigo 144 - Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.
(...)
Artigo 180 - No estabelecimento de diretrizes e normas relativas ao desenvolvimento urbano, o Estado e os Municípios assegurarão:
I - o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e a garantia do bem-estar de seus habitantes;
II - a participação das respectivas entidades comunitárias no estudo, encaminhamento e solução dos problemas, planos, programas e projetos que lhes sejam concernentes;
(...)
V - a observância das normas urbanísticas, de segurança, higiene e qualidade de vida;
(...)
Artigo 181 - Lei municipal estabelecerá, em conformidade com as diretrizes do plano diretor, normas sobre zoneamento, loteamento, parcelamento, uso e ocupação do solo, índices urbanísticos, proteção ambiental e demais limitações administrativas pertinentes.
§ 1º - Os planos diretores, obrigatórios a todos os Municípios, deverão considerar a totalidade de seu território municipal”.
A – INCONSTITUCIONALIDADE
FORMAL
A instituição de loteamentos é norma urbanística
e como tal a aprovação de lei que discipline tais matérias depende da participação comunitária em seu respectivo
processo legislativo. No caso, não
foi observada essa
importante formalidade essencial - que aquinhoa legitimidade material ao seu
conteúdo – determinada pelo inciso II do art. 180 da Constituição do Estado de
São Paulo que reproduz o art. 29, XII, da Constituição Federal – como se
verifica da análise do processo legislativo de fls. 24/41, que deu ensejo à Lei Complementar
n. 228/1997, do Município de Jundiaí.
O dispositivo constitucional
parâmetro do controle de constitucionalidade da lei municipal em foco nesta
sede assegura a participação da população em todas as matérias atinentes ao
desenvolvimento urbano e ao meio ambiente, inclusive nos anteprojetos e
projetos de lei, e, são reiteradamente prestigiados pela jurisprudência:
“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - Lei n. 2.786/2005 de São José
do Rio Pardo - Alteração sem plano diretor prévio de área rural em urbana -
Hipótese em que não foi cumprida disposição do art. 180, II, da Constituição do
Estado de São Paulo que determina a participação das entidades comunitárias no
estudo da alteração aprovada pela lei - Ausência ademais de plano diretor - A
participação de Vereadores na votação do projeto não supre a necessidade de que
as entidades comunitárias se manifestem sobre o projeto - Clara ofensa ao art.
180, II, da Constituição Estadual - Ação julgada procedente.” (TJSP, ADI
169.508.0/5, Rel. Des. Aloísio de Toledo César, 18-02-2009).
“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - Leis n°s. 11.764/2003,
11.878/2004 e 12.162/2004, do município de Campinas - Legislações, de
iniciativa parlamentar, que alteram regras de zoneamento em determinadas áreas
da cidade - Impossibilidade - Planejamento urbano - Uso e ocupação do solo -
Inobservância de disposições constitucionais - Ausente participação da
comunidade, bem como prévio estudo técnico que indicasse os benefícios e
eventuais prejuízos com a aplicação da medida - Necessidade manifesta em
matéria de uso do espaço urbano, independentemente de compatibilidade com plano
diretor - Respeito ao pacto federativo com a obediência a essas exigências -
Ofensa ao princípio da impessoalidade - Afronta, outrossim, ao princípio da
separação dos Poderes - Matéria de cunho eminentemente administrativo - Leis
dispuseram sobre situações concretas, concernentes à organização administrativa
- Ação direta julgada procedente, para declarar a inconstitucionalidade das
normas.” (ADI 163.559-0/0-00).
“ação direta de inconstitucionalidade – lei complementar disciplinando
o uso e ocupação do solo – processo legislativo submetido À participação
popular – votação, contudo, de projeto
substitutivo que, a despeito de alterações significativas do projeto
inicial, não foi levado ao conhecimento dos munícipes – vício insanável – inconstitucionalidade
declarada.
‘O projeto de lei apresentado para apreciação popular atendia aos
interesses da comunidade local, que atuava ativamente a ponto de formalizar
pedido exigindo o direito de participar em audiência pública. Nada obstante, a
manobra política adotada subtraiu dos interessados a possibilidade de discutir
assunto local que lhes era concernente, causando surpresa e indignação. Cumpre
ressaltar que a participação popular na criação de leis versando sobre política
urbana local não pode ser concebida como mera formalidade ritual passível de
convalidação. Trata-se de instrumento democrático onde o móvel do legislador
ordinário é exposto e contrastado com idéias opostas que, se não vinculam a
vontade dos representantes eleitos no momento da votação, ao menos lhe expõem
os interesses envolvidos e as conseqüências práticas advindas da aprovação ou
rejeição da norma, tal como proposta” (TJSP, ADI 994.09.224728-0, Rel. Des.
Artur Marques, m.v., 05-05-2010).
“Ação Direta de Inconstitucionalidade. Leis Municipais de Guararema,
que tratam do zoneamento urbano sem a participação comunitária. Violação aos
artigos 180, II e 191 da Constituição Estadual. Ação procedente para declarar a
inconstitucionalidade das leis nº 2.661/09 e 2.738/10 do Município de Guararema”
(TJSP, ADI 0194034-92.2011.8.26.0000, Rel. Des. Ruy Coppola, v.u., 29-02-2012).
A
democracia participativa decorrente do art. 180, II, da Constituição Estadual,
alcança a elaboração da lei antes e durante o trâmite de seu processo
legislativo até o estágio final de sua produção. Ela permite que a população
participe da produção de normas que afetarão a estética urbana, a qualidade de
vida e os usos urbanísticos.
Sem
embargo da inobservância do devido processo legislativo, a edição da Lei n. 228/1997
deflagrada pela iniciativa parlamentar também é fundamento
suficiente para sua inconstitucionalidade formal.
A
iniciativa parlamentar da lei caracteriza violação ao princípio
da separação de poderes por invasão da
esfera da reserva da Administração (art.
5º e 47, II e XIV, Constituição do Estado), isto é, daquele espaço reservado
privativamente ao Chefe do Poder Executivo para edição de atos normativos sem
possibilidade de interferência do Poder Legislativo.
A
disciplina da utilização de bens
públicos de uso comum do povo é reservada ao Chefe
do Poder Executivo porque se compreende em sua prerrogativa de gestão
patrimonial, sendo com ela incompatível a iniciativa parlamentar
da lei em questão.
Neste
sentido, invoca-se decisão deste colendo Órgão Especial:
“Ação direta de inconstitucionalidade. Lei nº
15.002, de 22 de outubro de 2009, do Município de São Paulo. Fechamento de ruas
sem saída e de vilas ao fluxo de trânsito. Matéria de interesse local e por
isso inserida na competência do município. Disciplinamento do sistema viário
que cabe, porém, privativamente ao chefe do Executivo, eis que a ele compete
administrar a cidade (artigo 47, inciso XIV, da Constituição paulista).
Inconstitucionalidade por esse fundamento reconhecida, assim como por
arrastamento do Decreto regulamentador nº 51.541/2010. Vício que se repete nas
leis anteriores (Leis nºs 10.898/90, 12.138/96, 13.209/01 e 14.113/2005).
Necessidade de modulação. Ação procedente” (ADI 2036925-73.2014.8.26.0000, Rel.
Des. Arantes Theodoro, v.u., 30-07-2014).
A instituição de loteamento fechado mescla normas de Direito Urbanístico (loteamento) e Direito Civil (condomínio).
Há
outros fundamentos.
A
legislação impugnada não se atém aos limites do interesse local,
círculo da competência normativa dos Municípios, incompatibilizando-se com o princípio
federativo que impõe a observância das balizas constitucionais
destinadas a delimitar as competências legislativas dos entes federativos, sob
pena de atentar ao princípio federativo, e cuja sindicância é viável nesta via
por caracterizar-se ofensa ao art. 144 da Constituição Estadual.
Com
efeito, o texto normativo impugnado contrasta com o art. 144 da Constituição
Estadual, norma que determina a observância da Constituição Federal e da Constituição
Estadual pelos Municípios no exercício de sua autonomia, reproduzindo o caput do art. 29 da Constituição
Federal.
O art. 144 da Constituição Estadual impondo a observância na esfera municipal, além das regras da Constituição Estadual, dos princípios da Constituição Federal, é denominado “norma estadual de caráter remissivo, na medida em que, para a disciplina dos limites da autonomia municipal, remete para as disposições constantes da Constituição Federal”, como decidiu o Supremo Tribunal Federal ao admitir o controle concentrado de constitucionalidade de lei municipal por esse ângulo (STF, Rcl 10.406-GO, Rel. Min. Gilmar Mendes, 31-08-2010, DJe 06-09-2010; STF, Rcl 10.500-SP, Rel. Min. Celso de Mello, 18-10-2010, DJe 26-10-2010).
Destarte, é possível examinar o preceito legal municipal impugnado à
luz das normas constitucionais centrais, viabilizando por força da mencionada
norma remissiva o seu contraste com a repartição constitucional de competências
legislativas inerentes ao princípio federativo. Conforme os arts.
22, I, e 24, I, da Constituição Federal, reservou-se a disciplina
normativa do direito civil à competência privativa da União, enquanto que o direito
urbanístico foi inserido no rol de competência concorrente da União,
Estados e Distrito Federal.
Diante desse quadro, ao Município caberia
exercer a sua autonomia legislativa tão-somente se presente interesse local na
matéria urbanística a ser regulada e, ainda, em conformidade com o arcabouço
normativo nacional e estadual já existentes sobre o tema.
Segundo
José dos Santos Carvalho Filho, em matéria de urbanismo, a competência do ente
municipal consiste em, verbis:
“1ª)
suplementar a legislação federal e estadual urbanística, quando couber (art.
30, II);
2ª)
promoção do adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle
do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano (art. 30, VIII);
3ª)
estabelecimento da política de desenvolvimento urbano, observadas as regras de
lei federal (art. 182, caput);
4ª)
elaboração do plano diretor, obrigatório para cidades de mais de vinte mil
habitantes (art. 182, §1º);
5ª)
exigibilidade, em face de proprietários do solo urbano, de adequação de sua
propriedade imobiliária ao plano diretor da cidade (art. 182, §4º);
6ª)
aplicação das medidas punitivas de parcelamento e edificação compulsórios; IPTU
progressivo no tempo; e desapropriação urbanística sancionatória (art. 182,
§4º, I a III)” (José dos Santos Carvalho
Filho, Comentários ao Estatuto da Cidade, Lumen Juris, 4ªed, Rio de Janeiro:
2011, p. 17).
Reconhecida a regulamentação de loteamento fechado como matéria
inerente aos direitos civil e urbanístico, conclui-se que o Município não detém
competência normativa, pois, estando a matéria inserida no âmbito do direito
civil, de competência privativa da União, não há espaço sequer para
suplementação.
Tampouco é possível que o legislador municipal se ampare no inciso II,
do art. 30, da CF/88, vale dizer, em sua competência suplementar, a fim de
justificar a elaboração dos preceitos legais impugnados. Isto porque não há
espaço para invocação de interesse local por não haver sua predominância nem
para suplementação normativa que contraria regras federais. Nesse sentido,
colaciona-se o seguinte julgado:
“Ora, em se tratando de competência privativa
da União, e competência essa que não pode ser exercida pelos Estados se não
houver lei complementar – que não existe – que a autorize a legislar sobre
questões específicas dessa matéria (artigo 22 da Constituição), não há como
pretender-se que a competência suplementar dos Municípios prevista no inciso II
do artigo 30, com base na expressa vaga aí constante ‘no que couber’ se possa
exercitar para a suplementação dessa legislação da competência privativa da
União (...)” (STF, RE 227.384-SP).
Portanto,
a legislação municipal contestada é incompatível com o art. 144 da Constituição
Estadual.
B
– INCONSTITUCIONALIDADE MATERIAL
Não obstante a inconstitucionalidade apontada, o ato normativo objurgado
também está maculado por inconstitucionalidade
material.
Por força dos
incisos I e V do art. 180 da Constituição Paulista e dos incisos II, XV e
LXVIII da Constituição Federal, aos quais a produção normativa municipal está subordinada,
o Município, ao traçar as normas de desenvolvimento urbanístico, tem o dever de
assegurar “o pleno desenvolvimento das
funções sociais da cidades”, às quais está associado o direito à
circulação.
A implementação
do sistema viário urbano é um meio de efetivação do direito à circulação e decorre
da própria atividade urbanística – conceituada por José Afonso como “(a) o planejamento urbanístico; (b) a
ordenação do solo; (c) a ordenação urbanística de áreas de interesse especial;
(d) a ordenação urbanística da atividade edilícia; (e) os instrumentos de
intervenção urbanística” - cuja natureza é pública. Sem sistema viário, a integração e o acesso
aos bairros, a circulação, a ventilação e todo o mais que necessita dessa
mínima infraestrutura estarão prejudicadas.
Sobre o
assunto, José Afonso assevera que uma vez instituído o sistema viário, por meio
da afetação do bem, o acesso público a ele torna-se um poder legal exercitável
erga omnes, em face do qual não se opõe nenhum limite – configurado, por
exemplo, pela exigência de identificação para ingresso no loteamento fechado.
“O sistema viário é o meio pelo qual se realiza o direito à
circulação, que é a manifestação mais característica do direito de locomoção,
direito de ir e vir e também de ficar (estacionar, parar), assegurado na
Constituição Federal. Pedro Escribano Collado, em excelente monografia sobre as
vias urbanas, coloca muito bem o problema, nas seguintes palavras: `De maneira
ampla, e do ponto de vista do usuário, pode definir-se o direito à circulação
como a faculdade, enquanto perdure a afetação da via, de deslocar-se através
dela de um lugar para outro do núcleo urbano. Enquanto se tratar de bem afetado, a utilização não constituirá uma
mera possibilidade, mas um poder legal exercitável erga omnes. Em consequência, a Administração não
poderá impedir, nem geral nem singularmente, o trânsito de pessoas de maneira
estável, a menos que desafete a via, já que, de outro modo, se
produziria uma transformação da afetação por meio de uma simples atividade de
polícia`” (José Afonso da Silva, Direito Urbanístico Brasileiro, Malheiros,
5ªed., p. 183-184).
A Lei Complementar
n. 228, de 23 de maio de 1997, do Município de Jundiaí, ao restringir a
liberdade de circulação e de usufruto dos bens públicos de uso comum do povo, colidiu com o art. 144 da Constituição Estadual, na medida
que suprimiu o direito fundamental à liberdade tal como previsto no art. 5º, caput e seu inciso XV da Carta Magna.
O Supremo
Tribunal Federal examinando questão similar assim se pronunciou:
“AÇÃO DIRETA
DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI DISTRITAL N. 1.713, DE 3 DE SETEMBRO DE 1.997.
QUADRAS RESIDENCIAIS DO PLANO PILOTO DA ASA NORTE E DA ASA SUL.
ADMINISTRAÇÃO POR PREFEITURAS OU ASSOCIAÇÕES DE MORADORES. TAXA DE MANUTENÇÃO E
CONSERVAÇÃO. SUBDIVISÃO DO DISTRITO FEDERAL. FIXAÇÃO DE OBSTÁCULOS QUE
DIFICULTEM O TRÂNSITO DE VEÍCULOS E PESSOAS. BEM DE USO COMUM. TOMBAMENTO.
COMPETÊNCIA DO PODER EXECUTIVO PARA ESTABELECER AS RESTRIÇÕES DO DIREITO DE
PROPRIEDADE. VIOLAÇÃO DO DISPOSTO NOS ARTIGOS 2º, 32 E 37, INCISO XXI, DA
CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. 1. A Lei n. 1.713 autoriza a divisão do Distrito
Federal em unidades relativamente autônomas, em afronta ao texto da
Constituição do Brasil --- artigo 32 --- que proíbe a subdivisão do Distrito
Federal em Municípios. 2. Afronta a Constituição do Brasil o preceito que permite
que os serviços públicos sejam prestados por particulares, independentemente de
licitação [artigo 37, inciso XXI, da CB/88]. 3. Ninguém é obrigado a
associar-se em ‘condomínios’ não regularmente instituídos. 4. O artigo 4º da
lei possibilita a fixação de obstáculos a fim de dificultar a entrada e saída
de veículos nos limites externos das quadras ou conjuntos. Violação do direito
à circulação, que é a manifestação mais característica do direito de locomoção.
A Administração não poderá impedir o trânsito de pessoas no que toca aos bens
de uso comum. 5. O tombamento é constituído mediante ato do Poder Executivo que
estabelece o alcance da limitação ao direito de propriedade. Incompetência do
Poder Legislativo no que toca a essas restrições, pena de violação ao disposto
no artigo 2º da Constituição do Brasil. 6. É incabível a delegação da execução
de determinados serviços públicos às ‘Prefeituras’ das quadras, bem como a
instituição de taxas remuneratórias, na medida em que essas ‘Prefeituras’ não
detêm capacidade tributária. 7. Ação direta julgada procedente para declarar a
inconstitucionalidade da Lei n. 1.713/97 do Distrito Federal” (STF, ADI
1.706-DF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Eros Grau, 09-04-2008, v.u., DJe
12-09-2008).
Gizado nesse
venerando aresto que:
“(...) 2.
Afronta a Constituição do Brasil o preceito que permite que os serviços
públicos sejam prestados por particulares, independentemente de licitação
[artigo 37, inciso XXI, da CB/88]. (...) 4. O artigo 4º da lei possibilita a
fixação de obstáculos a fim de dificultar a entrada e saída de veículos nos
limites externos das quadras ou conjuntos. Violação do direito à circulação,
que é a manifestação mais característica do direito de locomoção. A
Administração não poderá impedir o trânsito de pessoas no que toca aos bens de
uso comum”.
Ademais, não há falar que a restrição
de circulação alia-se ao interesse público, nem tampouco à razoabilidade. O
interesse público, ao contrário da providência legislativa adotada, é a
garantia do livre acesso e do irrestrito gozo dos bens públicos de uso comum do
povo, não se coadunando com a restrição instituída na lei que, além de
irrazoável, é desprovida de racionalidade, justiça e bom senso.
Não se deve olvidar que vias e praças, espaços livres e áreas destinadas a edifícios
públicos e outros equipamentos urbanos, passam a integrar o patrimônio público
municipal pelo registro do loteamento. Aliás, o ente administrativo só confere
autorização ao loteador porque no projeto que lhe é apresentado há o
comprometimento do particular em participar do desenvolvimento urbanístico
(construção de ruas, praças, áreas verdes, etc), cujos frutos serão
aproveitados por toda a coletividade. Se essa participação afigura-se como
requisito essencial do parcelamento do solo, as benfeitorias devem permanecer à
disposição da coletividade.
Diferente do loteamento, no condomínio o particular não está
a serviço da administração, mas a serviço próprio; nada é feito em favor da
coletividade, trata-se de investimentos privados destinados a seus titulares.
Vale dizer que o raciocínio desenvolvido até o momento não é
avesso à utilização de bens públicos por particulares - situação disciplinada
pela autorização, permissão e concessão de uso - o que se pretende combater é a
instituição de condomínios em áreas públicas, visto que contrária ao interesse
público, à função social da cidade e à ordem jurídica. No estágio atual da
civilização, todos os cidadãos encontram-se vulneráveis (em diferentes graus) a
crescente onda de violência, e a decisão de privilegiar determinado bairro
(possivelmente, com cidadãos mais abastados) em detrimento de outros nada mais
é do que um ato arbitrário e pessoal, que, se levado ao extremo, pode
inviabilizar a locomoção na cidade.
Destaca-se que
as próprias vias e logradouros públicos (internos do loteamento) são áreas
institucionais e o respectivo fechamento é incompatível com a natureza pública
de uso comum.
Específico
precedente deste colendo Órgão Especial do egrégio Tribunal de Justiça do
Estado de São Paulo censura a instituição de loteamento fechado, como se
constata da ementa do seguinte aresto:
“AÇÃO DIRETA DE
INCONSTITUCIONALIDADE – LEI MUNICIPAL QUE AUTORIZA O FECHAMENTO NORMALIZADO DE
RUAS SEM SAÍDA, VILAS E LOTEAMENTOS SITUADOS EM ÁREAS RESIDENCIAIS, INCLUSIVE
COM ACESSO CONTROLADO - VÍCIO DE INICIATIVA PATENTE - INTELIGÊNCIA DOS ARTS. 21
E 30, I, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 - AÇÃO PROCEDENTE AÇÃO DIRETA DE
INCONSTITUCIONALIDADE – LEI MUNICIPAL
QUE AUTORIZA O FECHAMENTO NORMALIZADO DE RUAS SEM SAÍDA, VILAS E LOTEAMENTOS
SITUADOS EM ÁREAS RESIDENCIAIS, INCLUSIVE COM ACESSO CONTROLADO - INADMISSIBILIDADE
- NÚCLEO SEMÂNTICO DO DIREITO À CIDADE QUE NÃO HARMONIZA COM A LEGISLAÇÃO
QUESTIONADA - O DIREITO FUNDAMENTAL À CIDADE NÃO PODE SER CONFUNDIDO COM
INEXISTENTE DIREITO FUNDAMENTAL A SE CRIAR ESPAÇOS SEGREGADOS NA CIDADE - INCIDÊNCIA
DO PRINCÍPIO DA VEDAÇÃO DE RETROCESSO - PRECEDENTES DOUTRINÁRIOS - AÇÃO
PROCEDENTE” (ADI 9055901-19.2008.8.26.0000, Rel. Des. Renato Nalini, m.v.,
04-05-2011).
Nesse sentido, vetusto acórdão do
Supremo Tribunal Federal bem fixou que o interesse público é a livre utilização
de bem público de uso comum do povo:
“Loteamento. Fechamento de acesso a ruas que
interligam lotes e conduzem à orla marítima. - Legalidade de ato
da Prefeitura Municipal, removendo obstáculos que impediam aquele livre acesso.
- Inconstitucionalidade inocorrente da Lei Municipal nº 557/79, de Ubatuba:
assegura direito à utilização de bem público de uso
comum do povo. Recurso Extraordinário não conhecido” (STF, RE 94.253-SP, 1ª
Turma, Rel. Min. Oscar Correa, 12-11-1982, v.u., DJ 17-12-1982, p. 13.209).
Por todas essas razões, a Lei Complementar Municipal n. 228/97 é inconstitucional formal e materialmente.
III – Pedido
Face ao exposto, requer-se o
recebimento e o processamento da presente ação para que, ao final, seja julgada
procedente para declarar a inconstitucionalidade da Lei Complementar n. 228, de 23 de maio de 1997,
do Município de Jundiaí.
Requer-se ainda sejam requisitadas informações
ao Prefeito e à Câmara Municipal de Jundiaí, bem como posteriormente citado o
Procurador-Geral do Estado para se manifestar sobre os atos normativos
impugnados, protestando por nova vista, posteriormente, para manifestação
final.
Termos em que pede deferimento.
São
Paulo, 23 de março de 2017.
Gianpaolo Poggio Smanio
Procurador-Geral de Justiça
efrco/sh
Protocolado
nº 169.783/16
1.
Distribua-se a petição inicial da ação direta de inconstitucionalidade
em face da Lei Complementar n. 228, de 23 de maio de 1997, do Município de
Jundiaí, junto ao
Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.
2.
Oficie-se ao representante, informando a propositura da ação, com cópia da
petição inicial.
São Paulo, 23 de março de 2017.
Gianpaolo Poggio Smanio
Procurador-Geral de Justiça
efrco/sh