Excelentíssimo Senhor Doutor Desembargador Presidente do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

 

 

Protocolado n. 161.307/2016

 

 

 

 

Ementa: Constitucional. Administrativo. Ação Direta de Inconstitucionalidade.  Lei Complementar nº 877, de 09 de novembro de 2016, do Município de Araraquara. Proibição do emprego de veículos de tração animal com carga e o trânsito montado em todas as vias públicas asfaltadas. Ofensa ao princípio de razoabilidade. Lei municipal que proíbe a utilização de animais para condução de carga nas vias públicas asfaltadas ou calçadas, nas áreas definidas por lei como urbana ou em eventos que envolvam risco da ocorrência de maus-tratos e crueldades com animais, no âmbito do Município de Araraquara é incompatível com o princípio de razoabilidade (art. 111, CE/89): despida de lógica, bom senso, racionalidade, ônus excessivo e desnecessário, que inviabiliza um meio de transporte permitido em toda área urbana do Município.  

 

 

 

 

 

 

            O Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, no exercício da atribuição prevista no art. 116, VI, da Lei Complementar Estadual n. 734, de 26 de novembro de 1993 (Lei Orgânica do Ministério Público de São Paulo), em conformidade com o disposto nos arts. 125, § 2º, e 129, IV, da Constituição Federal, e, ainda, nos arts. 74, VI, e 90, III, da Constituição do Estado de São Paulo, com amparo nas informações colhidas no incluso protocolado, vem, respeitosamente, perante esse Egrégio Tribunal de Justiça, promover a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE, com pedido liminar, em face da Lei Complementar nº 877, de 09 de novembro de 2016, do Município de Araraquara, pelos fundamentos a seguir expostos:

I – O ATO NORMATIVO IMPUGNADO

         A Lei Complementar nº 877, de 09 de novembro de 2016, do Município de Araraquara, que Acrescenta à Lei Complementar nº 18, de 22 de dezembro de 1997 – Código de Posturas do Município de Araraquara os arts. 79-A e 79-B, de modo a dispor sobre a proibição do emprego de animais para a condução de carga e dá outras providências”, assim dispõe:

“(...)

Art. 1º - Ficam criados os arts. 79-A e 79-B no Capítulo IV – “Das medidas referentes aos animais”, do Título III – “Da Polícia de Costumes, Segurança e Ordem Pública”, da Lei Complementar nº 18, de 22 de dezembro de 1997, com a seguinte redação:

“Art. 79-A. É proibido o emprego de animais para condução de carga nos seguintes locais e situações existentes no Município de Araraquara:

I – em todas as suas vias públicas asfaltadas ou calçadas;

II – em toda área definida por lei como área urbana do Município;

III – em todo tipo de evento que envolva risco de ocorrer maus-tratos e crueldades para com os animais.

Parágrafo único. Para efeitos desta Lei Complementar consideram-se:

I – animais sujeitos à proibição: equinos, asininos, muares, caprinos e bovinos;

II – condução de animais com cargas: todo deslocamento de animal conduzindo cargas em seu dorso, estando o condutor montado ou não.

Art. 79-B. A infração ao disposto no art. 79-A desta Lei Complementar implicará em multa de 50 UFMs (cinquenta unidades fiscais municipais), a ser dobrada em cada caso de reincidência.”

Art. 2º - Durante o período de adaptação previsto no art. 4º desta Lei Complementar, o Município deverá promover programas e projetos de capacitação e qualificação dos trabalhadores, de modo a garantir a inclusão social e a reinserção do mercado de trabalho, incentivando a instituição de cooperativas e projetos sociais.

Art. 3º - O disposto nesta Lei Complementar será regulamentado por Decreto do Executivo.

Art. 4º - Esta Lei Complementar entrará em vigor na data de sua publicação, produzindo efeitos a partir de 180 (cento e oitenta) dias.

(...)”           

II – O PARÂMETRO DA FISCALIZAÇÃO ABSTRATA DE CONSTITUCIONALIDADE

A Lei Complementar nº 877/2016, do Município de Araraquara é incompatível com o princípio de razoabilidade inscrito no art. 111 da Constituição Estadual, aplicável aos Municípios por força do art. 144, assim previsto:

“Art. 111 – A administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes do estado, obedecerá aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, razoabilidade, finalidade, motivação, interesse público e eficiência.

(...)

Art. 144 - Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto organizarão por Lei Orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.”

           Tal diploma, conhecido como “Lei das Carroças”, proíbe a utilização de animais para condução de carga numa série de situações, a saber: nas vias públicas asfaltadas ou calçadas, nas áreas definidas por lei como urbana ou em eventos que envolvam risco da ocorrência de maus-tratos e crueldades com animais.

           Sabe-se que os atos normativos devem ser presididos por cânones de isonomia, coerência lógica, racionalidade, razão, equidade, bom senso, que informam o princípio da razoabilidade. Salienta o Supremo Tribunal Federal que “cabe ao Poder Judiciário verificar a regularidade dos atos normativos e de administração do Poder Público em relação às causas, aos motivos e à finalidade que os ensejam” (RTJ 204/385). A Suprema Corte censura a irrazoabilidade das normas, limitando o poder de legislar ao enunciar que:

“(...) O Estado não pode legislar abusivamente. A atividade legislativa está necessariamente sujeita à rígida observância de diretriz fundamental, que, encontrando suporte teórico no princípio da proporcionalidade, veda os excessos normativos e as prescrições irrazoáveis do Poder Público. O princípio da proporcionalidade - que extrai a sua justificação dogmática de diversas cláusulas constitucionais, notadamente daquela que veicula a garantia do substantive due process of law - acha-se vocacionado a inibir e a neutralizar os abusos do Poder Público no exercício de suas funções, qualificando-se como parâmetro de aferição da própria constitucionalidade material dos atos estatais. A norma estatal, que não veicula qualquer conteúdo de irrazoabilidade, presta obséquio ao postulado da proporcionalidade, ajustando-se à cláusula que consagra, em sua dimensão material, o princípio do substantive due process of law (CF, art. 5º, LIV). Essa cláusula tutelar, ao inibir os efeitos prejudiciais decorrentes do abuso de poder legislativo, enfatiza a noção de que a prerrogativa de legislar outorgada ao Estado constitui atribuição jurídica essencialmente limitada, ainda que o momento de abstrata instauração normativa possa repousar em juízo meramente político ou discricionário do legislador” (STF, ADI-MC 1.407-DF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, 07-03-1996, DJ 24-11-2000, m.v., p. 86).

A lei em cena proíbe a utilização de animais para condução de carga nas vias públicas asfaltadas ou calçadas, nas áreas definidas por lei como urbana ou em eventos que envolvam risco da ocorrência de maus-tratos e crueldades com animais, no âmbito do Município de Araraquara.

Evidencie-se que embora o Código de Trânsito tenha estabelecido em seu art. 24, inciso II, a competência do Município de “planejar, projetar, regulamentar e operar o trânsito de veículos, de pedestres e de animais” no âmbito de sua circunscrição, esta competência não pode exercida suprimindo direitos e garantias individuais, como o direito de ir e vir.

Sobre tal prisma, conclui-se que a relatividade dos direitos fundamentais não pode ensejar sejam eles violados por atos administrativos, legislativos ou judiciários, mas, sim, possam sofrer certas limitações, quando isso for imprescindível para resguardar outros direitos ou garantias de igual ou superior importância. 

E a aferição de tal relatividade e confronto entre os princípios se faz pela aplicação dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade. Este último, implícito na Constituição Federal e expresso na Carta Paulista, no seu art. 111.

Como anota Diogo de Figueiredo Moreira Neto, o princípio da razoabilidade “visa a afastar o arbítrio que decorrerá da desadequação entre meios e fins”, tendo importância tanto quando da criação da norma, como quando de sua aplicação” (Curso de direito administrativo, 14. ed., Rio de Janeiro, Forense, 2006, p. 101). Também nesse sentido Maria Sylvia Zanella Di Pietro (Direito administrativo, 19. ed., São Paulo, Atlas, 2006, p. 95).

Em sede doutrinária, Gilmar Ferreira Mendes, examinando a aplicação do princípio da razoabilidade ou proporcionalidade pelo Col. Supremo Tribunal Federal, anotou “de maneira inequívoca a possibilidade de se declarar a inconstitucionalidade da lei em caso de sua dispensabilidade (inexigibilidade), inadequação (falta de utilidade para o fim perseguido) ou de ausência de razoabilidade em sentido estrito (desproporção entre o objetivo perseguido e o ônus imposto ao atingido)” (cf. A proporcionalidade na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, publicado em Direitos Fundamentais e Controle de Constitucionalidade, São Paulo, Instituto Brasileiro de Direito Constitucional e Celso Bastos Editor, 1998, p. 83).

Para superar o denominado “teste de razoabilidade”, é necessário que a lei preencha, em síntese, três requisitos: (a) necessidade; (b) adequação; e (c) proporcionalidade em sentido estrito.

Em outras palavras, é imperativo que o diploma legal se mostre efetivamente indispensável (necessidade), que se apresente apropriado aos fins a que se destina (adequação), e, por último, que os sacrifícios ou encargos dele decorrentes sejam aceitáveis do ponto de vista dos benefícios que produzirá (proporcionalidade em sentido estrito).

Em que pese o escopo seja de preservação dos animais e de regulação do trânsito, proibir a utilização de animais para transporte de carga, como no caso em exame, não passa pelo “teste de razoabilidade”.

Trata-se, em verdade, de ônus excessivo e desnecessário, que inviabiliza um meio de transporte permitido em toda área urbana do Município. 

Nítido, portanto, que se trata de obrigação desarrazoada e que por sua onerosidade tem a potencialidade de embaraçar totalmente direito de locomoção dos cidadãos.

A ofensa ao princípio da razoabilidade tem servido, em julgados desse C. Órgão Especial, ao reconhecimento da inconstitucionalidade de leis que criam ônus excessivos e desnecessários para seus destinatários ou para o próprio Poder Público. Confira-se: ADI 0136976-34.2011.8.26.0000, Rel. Des. Renato Nalini, j. 16 de novembro de 2011, ADI 152.442-0/1-00, j. 07.05.08, v.u., Rel. Des. Penteado Navarro; ADI 150.574-0/9-00, j. 07.05.08, v.u., Rel. Des. Debatin Cardoso.

III – Pedido liminar

         À saciedade demonstrado o fumus boni iuris, pela ponderabilidade do direito alegado, soma-se a ele o periculum in mora. A atual tessitura dos preceitos legais do Município de Araraquara apontados como violadores de princípios e regras da Constituição do Estado de São Paulo é sinal, de per si, para suspensão de sua eficácia até final julgamento desta ação, de maneira a evitar oneração do erário irreparável ou de difícil reparação.

         À luz deste perfil, requer a concessão de liminar para suspensão da eficácia, até final e definitivo julgamento desta ação da Lei Complementar nº 877, de 09 de novembro de 2016, do Município de Araraquara.

IV – Pedido

         Face ao exposto, requerendo o recebimento e o processamento da presente ação para que, ao final, seja julgada procedente para declarar a inconstitucionalidade da Lei Complementar nº 877, de 09 de novembro de 2016, do Município de Araraquara.

         Requer-se ainda sejam requisitadas informações à Câmara Municipal e ao Prefeito Municipal de Araraquara, bem como citado o Procurador-Geral do Estado para se manifestar sobre os atos normativos impugnados, protestando por nova vista, posteriormente, para manifestação final.

 

Termos em que, pede deferimento.

 

São Paulo, 05 de maio de 2017.

 

 

 

 

Gianpaolo Poggio Smanio

Procurador-Geral de Justiça

 

efrco/dcm


Protocolado n. 161.307/2016

Assunto: Análise de Ação de Inconstitucionalidade

 

 

 

 

1.                Distribua-se a petição inicial da ação direta de inconstitucionalidade da Lei Complementar nº 877, de 09 de novembro de 2016, do Município de Araraquara junto ao Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

2.                Oficie-se ao interessado, informando-lhe a propositura da ação, com cópia da petição inicial.

 

São Paulo, 05 de maio de 2017.

 

 

Gianpaolo Poggio Smanio

Procurador-Geral de Justiça

 

efrco/dcm