EXCELENTÍSSIMO SENHOR DESEMBARGADOR PRESIDENTE DO EGRÉGIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

 

 

 

 

Protocolado n. 157.528/16

 

 

 

 

 

Constitucional. Administrativo. Ação Direta Inconstitucionalidade. Arts. 138, § 1º e 141, “caput” da Lei Orgânica Municipal e Lei Complementar nº 842, de 01 de julho de 2016, ambas do Município de São Vicente. Dispensa de licitação para Concessão de direito real de uso e Permissão de uso de bens imóveis por terceiros. Violação à regra da licitação e à competência legislativa privativa da União para estabelecer regras gerais sobre licitação e contratos. Ofensa ao princípio da separação dos poderes. Delegação inversa de poderes. Ofensa aos princípios da moralidade, impessoalidade e igualdade. 1. Leis que dispõem sobre hipóteses de dispensa à regra da licitação, invadindo competência privativa da União, possibilitando o favorecimento de particulares como permissionários de uso de bens públicos sem que tenham se investido nessa qualidade a partir de processo seletivo objetivo, público e imparcial. 2. Leis que subordinam a permissão e autorização de uso de bens públicos por terceiros a autorização legislativa, violando a regra da separação dos poderes, permitindo delegação de atribuições do Executivo ao Legislativo, expressamente proibida no § 1º do art. 5º da Constituição Paulista. 3. Leis locais que violam os princípios da impessoalidade, igualdade e moralidade na medida em que ensejam a indicação de beneficiários específicos. 4. Constituição Estadual: artigos art. 5º, “caput”, § 1º, art. 47, II e XIV, 111, 117 e 144.

 

 

 

 

O Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, no exercício da atribuição prevista no art. 116, inciso VI, da Lei Complementar Estadual n. 734, de 26 de novembro de 1993, e em conformidade com o disposto no art. 125, § 2º, e no art. 129, inciso IV, da Constituição da República, e ainda no art. 74, inciso VI, e no art. 90, inciso III, da Constituição do Estado de São Paulo, com amparo nas informações colhidas no incluso protocolado, vem perante esse Egrégio Tribunal de Justiça promover a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE em face dos artigos 138, §1º e 141, caput da Lei Orgânica Municipal e do artigo 2º, inciso II da Lei Complementar nº 842, de 1º de julho de 2016, ambas do Município de São Vicente, pelos fundamentos expostos a seguir.

I – DOS DISPOSITIVOS NORMATIVOS IMPUGNADOS

O art. 141 da Lei Orgânica do Município de São Vicente tem a seguinte redação (fls. 467):

“(...)

Art. 141. O uso de bens municipais, por terceiros, só poderá ser feito mediante permissão ou autorização a título precário e por tempo determinado, conforme o interesse público devidamente justificado, com aprovação do Legislativo e obedecidas as normas sanitárias aplicáveis.

§1º. A concessão de uso dos bens públicos de uso especial e dominicais dependerá de lei e licitação e será feita mediante contrato, sob pena de nulidade do ato, ressalvada a hipótese do art. 138, § 1º.

§ 2º. A concessão administrativa de bens públicos de uso comum poderá ser outorgada mediante autorização legislativa.

(...)”

O artigo 138, § 1º, por sua vez, assim estabelece:

“(...)

Art. 138. O Município preferentemente à venda ou doação de seus bens imóveis, outorgará concessão de direito real de uso, mediante prévia autorização e procedimento licitatório.

§ 1º. A licitação poderá ser dispensada, por lei, quando o uso se destinar a concessionária de serviço público, a entidades assistenciais ou quando houver relevante interesse público, devidamente justificado.

(...)

Já a Lei Complementar nº 842, de 1º de julho de 2016, que “dispõe sobre o uso de bens municipais por terceiros, incluindo a área de eventos do Itararé e a Praça Tom Jobim” tem a seguinte redação, apontando-se que somente o art. 2º, inciso II é objeto de impugnação:

(...)

 

(...)

Os artigos 138, §1º e 141, caput da Lei Orgânica Municipal e art. 2º, inciso II da Lei Complementar nº 842, de 1º de julho de 2016 do Município de São Vicente são verticalmente incompatíveis com o ordenamento constitucional, pelas razões a seguir expostas.

II – O parâmetro da fiscalização abstrata de constitucionalidade

Os dispositivos normativos impugnados contrariam frontalmente a Constituição do Estado de São Paulo, à qual está subordinada a produção normativa municipal ante a previsão dos arts. 1º, 18, 29 e 31 da Constituição Federal.

Os preceitos da Constituição Federal e da Constituição do Estado são aplicáveis aos Municípios por força do art. 29 daquela e do art. 144 desta.

Conforme será demonstrado, a inconstitucionalidade dos artigos 138, §1º e 141, caput da Lei Orgânica Municipal e art. 2º, inciso II da Lei Complementar nº 842, de 1º de julho de 2016, manifesta-se em face dos seguintes preceitos da Constituição Estadual Paulista:

“Artigo  - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

§1º. É vedado a qualquer dos Poderes delegar atribuições.

(...)

Art. 47 - Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:

(...)

II - exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;

(...)

XIV - praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do Executivo;

(...)

Artigo 111 – A administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes do Estado, obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, razoabilidade, finalidade, motivação, interesse público e eficiência.

(...)

Artigo 117 - Ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública, que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.

(...)

Artigo 144 - Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.

(...)”

A – DA VIOLAÇÃO À REGRA DA LICITAÇÃO E DA COMPETÊNCIA  PRIVATIVA DA UNIÃO PARA LEGISLAR SOBRE NORMAS GERAIS DE LICITAÇÕES E CONTRATOS

A ordem constitucional vigente adotou o princípio da predominância do interesse para definir a repartição de competências na federação brasileira. Nessa toada, a competência para dispor sobre assuntos de interesse nacional ou predominantemente geral foi atribuída à União, ao passo que o tratamento das matérias de interesse predominantemente local ficou a cargo do Município, restando aos Estados a competência residual.

Dessa forma, é pertinente assentar que diante do sistema federativo e da repartição constitucional de competências, quando se contraria uma regra de competência estabelecida pela Lei Maior, mais que se descumprir uma simples norma, o que se está a fazer, verdadeiramente, é desrespeitar uma das mais evidentes manifestações do princípio federativo – e, assim, a violar frontalmente a CE/89.   

Pois bem.

Nos termos do art. 22, XXVII da Constituição Federal, o constituinte reservou a disciplina das normas gerais de licitação e contratação para as administrações públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, à competência privativa da União, observado o disposto no artigo 37, XXI.

O artigo 117 da Carta Bandeirante repete o art. 37, XXI da Carta Federal, estabelecendo como regra geral a exigência de licitação para que o poder público contrate com particulares.

A exigência de procedimento licitatório para a contratação pela Administração Pública, portanto, é verdadeiro princípio constitucional estabelecido, que deve, obrigatoriamente, ser observado pelos Estados e Municípios.

No exercício da competência privativa que lhe é assegurada (art. 22, XXVII da CF), a União editou a Lei nº 8.666/93, que dentre outros regramentos, estabeleceu os casos de dispensa e inexigibilidade de licitação.

Com relação à hipótese de permissão de uso de bens imóveis por terceiros, a Lei nº 8.666/93 prevê, especificamente, que a dispensa de licitação apenas poderá ocorrer em situações específicas previstas no art. 17, I, “f”.

Já no que pertine à concessão de direito real de uso de bens imóveis, a dispensa de licitação somente se dará na hipótese do já citado inciso I, letra “f”, mas também nas hipóteses elencadas no art. 17, § 2º, incisos I e II, observados os §§ 2º-A e 2º-B da Lei de Licitações.

Acrescente-se, ademais, que ao tratar da exigência de procedimento licitatório, a Lei nº 8.666/93 aponta os casos em que há formação de contrato entre a Administração Pública e terceiros (art. 2º, “caput” da Lei nº 8.666/93).

O texto normativo assinala, no entanto, que deve ser considerado contrato “todo e qualquer ajuste entre órgãos ou entidades da Administração Pública e particulares, em que haja um acordo de vontades para a formação de vínculo e a estipulação de obrigações recíprocas, seja qual for a denominação utilizada”.

Ou seja, o negócio jurídico bilateral (contrato público) estará caracterizado sempre que houver ajuste e obrigações recíprocas entre a Administração Pública e o particular, ainda que não tenham elas sido formalizadas em instrumento escrito.

É pacífico o entendimento doutrinário segundo o qual permissão de uso é ato administrativo unilateral, discricionário e precário, pelo qual a administração autoriza a utilização privativa de bem público, atendendo ao mesmo tempo interesse público e privado.

A precariedade do ato é relativizada, no entanto, na hipótese de permissão qualificada ou condicionada, isto é, a prazo determinado. Nessa circunstância, a permissão assemelha-se muito à concessão, na medida que, em ambos os casos, a rescisão prematura do negócio acarreta direito subjetivo à indenização, titularizado pelo permissionário. Daí a razão de se exigir licitação sempre que a permissão esboçar forma contratual. 

“É verdade que a Lei 8.666/93, no artigo 2º, inclui a permissão entre os ajustes que, quando contratados com terceiros, serão necessariamente precedidos de licitação. Tem-se, no entanto, que entender a norma em seus devidos termos. Em primeiro lugar, deve-se atentar para o fato de que a Constituição Federal, no artigo 175, parágrafo único, I, refere-se a permissão de serviço público como contrato; talvez por isso se justifique a norma do artigo 2º da Lei nº 8.666/93. Em segundo lugar, deve-se considerar também que este dispositivo, ao mencionar os vários tipos de ajustes em que a licitação é obrigatória, acrescenta a expressão quando contratados com terceiros, o que faz supor a existência de um contrato. Além disso, a permissão de uso, embora seja ato unilateral, portanto excluído da abrangência do artigo 2º, às vezes assume a forma contratual, com características iguais ou semelhantes à concessão de uso; é o que ocorre na permissão qualificada, com prazo estabelecido. Neste caso, a licitação torna-se obrigatória. A Lei 8.666/93 parece ter em vista precisamente essa situação quando, no artigo 2º, parágrafo único, define o contrato como “todo e qualquer ajuste entre órgãos ou entidades da Administração Pública e particulares, em que haja acordo de vontades para a formação de vínculo e a estipulação de obrigações recíprocas, seja qual for a denominação utilizada”. Quer dizer: ainda que se fale em permissão, a licitação será obrigatória se a ela for dada forma contratual (...)” (Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Direito Administrativo, 23ªed., São Paulo: Atlas, 2010, p. 697).         

Celso Antônio adota postura ainda mais rígida, exigindo procedimento licitatório para toda permissão de uso, qualificada ou não.

  “Sempre que possível, será outorgada mediante licitação, ou no mínimo, como obediência a procedimento em que se assegure tratamento isonômico aos administrados (como, por exemplo, outorga na conformidade de ordem de inscrição)”.

No Município de São Vicente, verifica-se que a permissão de uso de bens públicos a termo vem sendo “autorizada” por lei a uma associação sem fins lucrativos específica, conforme se extrai das leis municipais nº 2822/12, 2849/12, 2864/12, 3014/13, 3201/14, 3270/14, 3330/15, 3361/15 e 3466/16 (fls. 61/68). Referida associação, por sua vez, vem locando o espaço público a terceiros, conforme contratos de fls. 72/94.

Quanto à concessão de direito real de uso de bens imóveis, a Lei de Licitações estabelece que a dispensa de licitação somente ocorrerá na hipótese do já citado inciso I, letra “f”, do art. 17, mas também nas hipóteses elencadas no § 2º, incisos I e II, observados os §§ 2º-A e 2º-B.

Nítido, portanto, o caráter contratual das permissões e concessões de direito real de uso outorgadas com amparo nas disposições constantes da Lei Orgânica Municipal.

Desse modo, o legislador municipal, ao estabelecer no artigo 138, § 1º da Lei Orgânica Municipal, a dispensa de licitação para a concessão de direito real de uso de bens públicos, quando destinadas a entidades assistenciais ou quando houver relevante interesse público, e, no art. 141, “caput”, ao não prever – e com isso consequentemente dispensar - a licitação para a hipótese de permissão de uso de bens municipais por terceiros, acabou por criar exceções à regra da licitação prestigiada no art. 117 da Constituição Estadual, e afrontou a competência legislativa da União para editar normas gerais sobre licitação e contrato administrativo (arts. 22, XXVII, 37, XXI), patenteando ofensa à competência normativa alheia, sindicável por força do art. 144 da Constituição Estadual.

As exceções à licitação (inexigibilidade, dispensa, dispensabilidade, proibição) constituem matérias da essência das normas gerais de licitações e contratações públicas, não sendo lícito aos Municípios disciplinarem o assunto em lei para além das prescrições contidas em lei federal. Neste sentido:

MEDIDA CAUTELAR EM AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEGITIMIDADE DE AGREMIAÇÃO PARTIDÁRIA COM REPRESENTAÇÃO NO CONGRESSO NACIONAL PARA DEFLAGRAR O PROCESSO DE CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE EM TESE. INTELIGÊNCIA DO ART. 103, INCISO VIII, DA MAGNA LEI. REQUISITO DA PERTINÊNCIA TEMÁTICA ANTECIPADAMENTE SATISFEITO PELO REQUERENTE. IMPUGNAÇÃO DA LEI Nº 11.871/02, DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL, QUE INSTITUIU, NO ÂMBITO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA SUL-RIO-GRANDENSE, A PREFERENCIAL UTILIZAÇÃO DE SOFTWARES LIVRES OU SEM RESTRIÇÕES PROPRIETÁRIAS. PLAUSIBILIDADE JURÍDICA DA TESE DO AUTOR QUE APONTA INVASÃO DA COMPETÊNCIA LEGIFERANTE RESERVADA À UNIÃO PARA PRODUZIR NORMAS GERAIS EM TEMA DE LICITAÇÃO, BEM COMO USURPAÇÃO COMPETENCIAL VIOLADORA DO PÉTREO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA SEPARAÇÃO DOS PODERES. RECONHECE-SE, AINDA, QUE O ATO NORMATIVO IMPUGNADO ESTREITA, CONTRA A NATUREZA DOS PRODUTOS QUE LHES SERVEM DE OBJETO NORMATIVO (BENS INFORMÁTICOS), O ÂMBITO DE COMPETIÇÃO DOS INTERESSADOS EM SE VINCULAR CONTRATUALMENTE AO ESTADO-ADMINISTRAÇÃO. MEDIDA CAUTELAR DEFERIDA” (RTJ 192/163).

“Ação direta de inconstitucionalidade: L. Distrital 3.705, de 21.11.2005, que cria restrições a empresas que discriminarem na contratação de mão-de-obra: inconstitucionalidade declarada. 1. Ofensa à competência privativa da União para legislar sobre normas gerais de licitação e contratação administrativa, em todas as modalidades, para as administrações públicas diretas, autárquicas e fundacionais de todos os entes da Federação (CF, art. 22, XXVII) e para dispor sobre Direito do Trabalho e inspeção do trabalho (CF, arts. 21, XXIV e 22, I). 2. Afronta ao art. 37, XXI, da Constituição da República - norma de observância compulsória pelas ordens locais - segundo o qual a disciplina legal das licitações há de assegurar a ‘igualdade de condições de todos os concorrentes’, o que é incompatível com a proibição de licitar em função de um critério - o da discriminação de empregados inscritos em cadastros restritivos de crédito -, que não tem pertinência com a exigência de garantia do cumprimento do contrato objeto do concurso” (STF, ADI 3.670-DF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, 02-04-2007, v.u., DJe 18-05-2007).

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI DISTRITAL N. 1.713, DE 3 DE SETEMBRO DE 1.997. QUADRAS RESIDENCIAIS DO PLANO PILOTO DA ASA NORTE E DA ASA SUL. ADMINISTRAÇÃO POR PREFEITURAS OU ASSOCIAÇÕES DE MORADORES. TAXA DE MANUTENÇÃO E CONSERVAÇÃO. SUBDIVISÃO DO DISTRITO FEDERAL. FIXAÇÃO DE OBSTÁCULOS QUE DIFICULTEM O TRÂNSITO DE VEÍCULOS E PESSOAS. BEM DE USO COMUM. TOMBAMENTO. COMPETÊNCIA DO PODER EXECUTIVO PARA ESTABELECER AS RESTRIÇÕES DO DIREITO DE PROPRIEDADE. VIOLAÇÃO DO DISPOSTO NOS ARTIGOS 2º, 32 E 37, INCISO XXI, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. (...) 2. Afronta a Constituição do Brasil o preceito que permite que os serviços públicos sejam prestados por particulares, independentemente de licitação [artigo 37, inciso XXI, da CB/88]. (...)” (STF, ADI 1.706-DF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Eros Grau, 09-04-2008, v.u., DJe 12-09-2008).

“SERVIÇO PÚBLICO CONCEDIDO. TRANSPORTE INTERESTADUAL DE PASSAGEIROS. AÇÃO DECLARATÓRIA. PEDIDO DE RECONHECIMENTO DE DIREITO DE EMPRESA TRANSPORTADORA DE OPERAR PROLONGAMENTO DE TRECHO CONCEDIDO. AUSÊNCIA DE LICITAÇÃO. Afastada a alegação do recorrido de ausência de prequestionamento dos preceitos constitucionais invocados no recurso. Os princípios constitucionais que regem a administração pública exigem que a concessão de serviços públicos seja precedida de licitação pública. Contraria os arts. 37 e 175 da Constituição federal decisão judicial que, fundada em conceito genérico de interesse público, sequer fundamentada em fatos e a pretexto de suprir omissão do órgão administrativo competente, reconhece ao particular o direito de exploração de serviço público sem a observância do procedimento de licitação. Precedentes. Recurso extraordinário conhecido e a que se dá provimento” (RT 837/125).

“ADMINISTRATIVO. AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO DE INSTRUMENTO. CONTRATAÇÃO DE SERVIÇO DE TRANSPORTE COLETIVO. NECESSIDADE DE LICITAÇÃO. ARTIGO 37 DA CONSTITUIÇÃO. PRECEDENTES. AGRAVO IMPROVIDO. I - O acórdão recorrido está em consonância com a jurisprudência desta Corte no sentido de que a partir da vigência da Constituição de 1988, a licitação passou a ser indispensável à Administração Pública, consoante art. 37, da mesma Carta, por garantir a igualdade de condições e oportunidades para aqueles que pretendem contratar obras e serviços com a Administração. II – Agravo regimental improvido” (STF, AgR-AI 792.149-MG, 1ª Turma, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, 19-10-2010, v.u., DJe 16-11-2010).

Desta forma, os dispositivos normativos impugnados violaram:

(a) o princípio federativo, exorbitando sua autonomia normativa, imiscuindo-se na competência legislativa privativa da União para disciplinar regras gerais de licitação (arts. 22, XXVII CF/88), produzindo legislação avessa ao interesse local. Violado, assim, o art. 144, da Constituição Estadual, norma remissiva que incorpora o princípio federativo;

(b) o princípio constitucional estabelecido, por força do qual a licitação é a regra na Administração Pública, inclusive nos casos de permissão de uso de bens públicos por particulares e concessão de direito real de uso (art. 117 e 144 da Constituição Paulista).

Em apoio ao quanto vem sendo aqui sustentado, confiram-se os seguintes precedentes do STF, aplicáveis à hipótese em exame mutatis mutandis:

“Impugnação da Lei 11.871/2002, do Estado do Rio Grande do Sul, que instituiu, no âmbito da administração pública sul-rio-grandense, a preferencial utilização de softwares livres ou sem restrições proprietárias. Plausibilidade jurídica da tese do autor que aponta invasão da competência legiferante reservada à União para produzir normas gerais em tema de licitação, bem como usurpação competencial violadora do pétreo princípio constitucional da separação dos poderes.” (ADI 3.059-MC, Rel. Min. Ayres Britto, julgamento em 15-4-2004, Plenário, DJ de 20-8-2004)

"Ação direta de inconstitucionalidade: Lei distrital 3.705, de 21-11-2005, que cria restrições a empresas que discriminarem na contratação de mão de obra: inconstitucionalidade declarada. Ofensa à competência privativa da União para legislar sobre normas gerais de licitação e contratação administrativa, em todas as modalidades, para as administrações públicas diretas, autárquicas e fundacionais de todos os entes da Federação (CF, art. 22, XXVII) e para dispor sobre direito do trabalho e inspeção do trabalho (CF, art. 21, XXIV, e art. 22, I)." (ADI 3.670, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 2-4-2007, Plenário, DJ de 18-5-2007.)

"Não podem a lei, o decreto, os atos regimentais ou instruções normativas, e muito menos acordo firmado entre partes, superpor-se a preceito constitucional, instituindo privilégios para uns em detrimento de outros, posto que além de odiosos e iníquos, atentam contra os princípios éticos e morais que precipuamente devem reger os atos relacionados com a administração pública. O art. 37, XXI, da CF, de conteúdo conceptual extensível primacialmente aos procedimentos licitatórios, insculpiu o princípio da isonomia assecuratória da igualdade de tratamento entre todos os concorrentes, em sintonia com o seu caput – obediência aos critérios da legalidade, impessoalidade e moralidade – e ao de que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza." (MS 22.509, Rel. Min. Maurício Corrêa, julgamento em 26-9-1996, Plenário, DJ de 4-12-1996.)

“Recurso extraordinário. Ação direta de inconstitucionalidade de artigos de lei municipal. Normas que determinam prorrogação automática de permissões e autorizações em vigor, pelos períodos que especifica. (...) Prorrogações que efetivamente vulneram os princípios da legalidade e da moralidade, por dispensarem certames licitatórios previamente à outorga do direito de exploração de serviços públicos” (RE 422.591, Rel. Min. Dias Toffoli, julgamento em 1º-12-2010, Plenário, DJE de 11-3-2011.)”

B – DA VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES

O artigo 141, caput da Lei Orgânica Municipal de São Vicente, e o art. 2º, inciso II da Lei Complementar nº 842, de 1ª de julho de 2016, ao estabelecerem que as permissões e autorizações a título precário de bens municipais, por terceiros, dependem de aprovação do Poder Legislativo, viola a regra da separação de poderes, por delegarem atribuições do Poder Executivo ao Poder Legislativo, violando a proibição expressa contida no § 1º do art. 5º da Constituição Paulista.

Com efeito, escolher o destinatário da permissão e da autorização é decisão que cabe exclusivamente ao Poder Executivo, não se submetendo a revisão ou autorização do Poder Legislativo.

Tanto a autorização de uso como a permissão de uso de bens públicos são atos administrativos, de competência do administrador, de modo que subordiná-los a autorização legislativa viola o princípio da separação dos poderes.

É ponto pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público. De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

O legislador municipal, na hipótese analisada, acaba por estabelecer delegação inversa de competências em violação ao art. 5º, § 1º da Constituição Estadual.

Observe-se que a disposição normativa impugnada acaba por ensejar a edição de leis de efeito concreto, tais quais as Leis Municipais nº 2822/12, 2849/12, 2864/12, 3014/13, 3201/14, 3270/14, 3330/15, 3361/15 e 3466/16, acostadas a fls. 61/68.

Com isso, o Poder Legislativo praticou verdadeiros atos materialmente administrativos, escolhendo o destinatário da permissão de uso do imóvel público.

Referidos diplomas, na prática, invadiram a esfera da gestão administrativa, que cabe ao Poder Executivo, e envolveram o planejamento, a direção, a organização e a execução de atos de governo. Isso equivale à prática de ato de administração, de sorte a malferir a separação dos poderes.

Cumpre recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. Cada um dos órgãos tem missão própria e privativa: a Câmara estabelece regra para a Administração; a Prefeitura a executa, convertendo o mandamento legal, genérico e abstrato, em atos administrativos, individuais e concretos. O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art. 2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”. Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art. 2º c/c o art. 31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15ªed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p. 708 e 712).

Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e independência que deve existir entre os poderes estatais.

Esse E. Tribunal de Justiça tem declarado a inconstitucionalidade de leis municipais de iniciativa parlamentar que interferem na gestão administrativa, com amparo na violação da regra da separação de poderes. Confiram-se os seguintes julgados: ADI 149.044-0/8-00, rel. des. Armando Toledo, j.20.02.2008, v.u.; ADI 134.410-0/4, rel. des. Viana Santos, j. 05.03.2008; ADI 142.496-0/9-00, rel. Junqueira Sangirardi, j. 07.05.08, v.u.; ADI ° 154.411-0/5-00, rel. Walter Swensson, j.02.04.08, v.u.

C – DA VIOLAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DA MORALIDADE, IMPESSOALIDADE E IGUALDADE

Não bastasse isso, os artigos 138, §1º e 141, caput da Lei Orgânica Municipal e art. 2º, inciso II da Lei Complementar nº 842, de 1º de julho de 2016, violam os princípios previstos no art. 111 da Constituição do Estado, aplicável ao Município por força do art. 144 da mesma Carta, na medida em que permitem a indicação de beneficiários específicos do ato de permissão de uso de bem público imóvel, da autorização de uso de bens imóveis e da concessão de direito real de uso.

Essa violação se materializou, inclusive, conforme visto, na edição das Leis nº 2822/12, 2849/12, 2864/12, 3014/13, 3201/14, 3270/14, 3330/15, 3361/15 e 3466/16 do Município de São Vicente.

Note-se que ao indicar a associação sem fins lucrativos como beneficiário da permissão, os atos normativos não deixaram qualquer espaço para decisão por parte da Administração, violando a impessoalidade que deve imperar na esfera da atividade legislativa.

A respeito do princípio da impessoalidade, anota Edmir Netto de Araújo que seu sentido é o da “imparcialidade, significando que a Administração não pode agir motivada por interesses particulares, interesses políticos, de grupos, por animosidades ou simpatias pessoais, políticas, ideológicas, etc., implicando sempre em regra de agir objetiva para o administrador” (Curso de direito Administrativo, São Paulo, Saraiva, 2005, p. 56).

Ou então, como pontua Maria Sylvia Zanella Di Pietro, “o princípio estaria relacionado com a finalidade pública que deve nortear toda a atividade administrativa. Significa que a Administração não pode atuar com vistas a prejudicar ou beneficiar pessoas determinadas, uma vez que é sempre o interesse público que tem que nortear o seu comportamento” (Direito administrativo, 19ª ed., São Paulo, Atlas, 2006, p. 85).

É assente no E. STF, ser imperativo o respeito aos princípios constitucionais da Administração, tendo ficado assentado que:

"A Administração Pública é norteada por princípios conducentes à segurança jurídica — da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da publicidade e da eficiência. A variação de enfoques, seja qual for a justificativa, não se coaduna com os citados princípios, sob pena de grassar a insegurança." (MS 24.872, voto do Min. Marco Aurélio, julgamento em 30-6-05, DJ de 30-9-05).

"Não podem a lei, o decreto, os atos regimentais ou instruções normativas, e muito menos acordo firmado entre partes, superpor-se a preceito constitucional, instituindo privilégios para uns em detrimento de outros, posto que além de odiosos e iníquos, atentam contra os princípios éticos e morais que precipuamente devem reger os atos relacionados com a administração pública. O art. 37, XXI, da CF, de conteúdo conceptual extensível primacialmente aos procedimentos licitatórios, insculpiu o princípio da isonomia assecuratória da igualdade de tratamento entre todos os concorrentes, em sintonia com o seu caput – obediência aos critérios da legalidade, impessoalidade e moralidade – e ao de que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza." (MS 22.509, Rel. Min. Maurício Corrêa, julgamento em 26-9-1996, Plenário, DJ de 4-12-1996.)

“Recurso extraordinário. Ação direta de inconstitucionalidade de artigos de lei municipal. Normas que determinam prorrogação automática de permissões e autorizações em vigor, pelos períodos que especifica. (...) Prorrogações que efetivamente vulneram os princípios da legalidade e da moralidade, por dispensarem certames licitatórios previamente à outorga do direito de exploração de serviços públicos” (RE 422.591, Rel. Min. Dias Toffoli, julgamento em 1º-12-2010, Plenário, DJE de 11-3-2011.)

E mutatis mutandis, os princípios constitucionais da Administração Pública são aplicáveis ao Poder Legislativo quando da elaboração de leis. Não é aceitável que determinado diploma legal estabeleça cláusulas que permitam o favorecimento a particular determinado, sob pena de violar os princípios da moralidade, impessoalidade e igualdade.

Daí a inconstitucionalidade dos artigos 138, §1º e 141, caput da Lei Orgânica Municipal e art. 2º, inciso II da Lei Complementar nº 842, de 1º de julho de 2016, tomando como parâmetro o art. 111 da Constituição do Estado.

Não bastasse o quanto foi anteriormente exposto, os dispositivos legais questionados, ao dispensarem indevidamente a realização de licitação em casos em que é perfeitamente possível a competição para a utilização de bens públicos, e subordinarem a permissão e a autorização de uso de bens a autorização legislativa, ofendem o princípio da impessoalidade, previsto no art. 111 da Constituição do Estado (reprodução do art. 37, “caput” da CF), que deve ser respeitado pelos Municípios, por força do art. 144 da Carta Estadual, e tem a seguinte redação:

“Artigo 111 - A administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes do Estado, obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, razoabilidade, finalidade, motivação, interesse público e eficiência. (...)”

III - DO PEDIDO LIMINAR

À saciedade demonstrado o fumus boni iuris, pela ponderabilidade do direito alegado, soma-se a ele o periculum in mora.

A atual redação dos preceitos normativos municipais apontados como violadores de princípios e regras da Constituição do Estado de São Paulo é sinal, de per si, para suspensão de sua eficácia até final julgamento desta ação, evitando-se atuação desconforme o ordenamento jurídico, criadora de lesão irreparável ou de difícil reparação, consistente emissão de atos de permissão de uso de bens municipais sem a realização de licitação.

À luz desse quadro, requer-se a concessão de liminar para suspensão da eficácia dos dispositivos hostilizados, até final e definitivo julgamento desta ação.

 

 

IV - DO PEDIDO FINAL

Diante de todo o exposto, aguarda-se o recebimento e processamento da presente ação declaratória, para que, ao final, seja ela julgada procedente, reconhecendo-se a inconstitucionalidade dos artigos 138, §1º e 141, caput da Lei Orgânica Municipal e art. 2º, inciso II da Lei Complementar nº 842, de 1º de julho de 2016 do Município de São Vicente.

Requer-se, ainda, que sejam requisitadas informações à Câmara Municipal e ao Prefeito Municipal de São Vicente, bem como posteriormente citado o Procurador-Geral do Estado para manifestar-se sobre o ato normativo impugnado.

Posteriormente, aguarda-se vista para fins de manifestação final.

Termos em que,

Aguarda-se deferimento.

São Paulo, 04 de maio de 2017.

 

 

Gianpaolo Poggio Smanio

Procurador-Geral de Justiça

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Protocolado n. 157.528/2016

Interessado:  Promotoria de Justiça de São Vicente

Assunto: Inconstitucionalidade dos artigos 138, §1º e 141, caput da Lei Orgânica Municipal e art. 2º, inciso II da Lei Complementar nº 842, de 1º de julho de 2016

 

 

 

 

 

 

 

1.     Distribua-se a petição inicial da ação direta de inconstitucionalidade, em face dos artigos 138, §1º e 141, caput da Lei Orgânica Municipal e art. 2º, inciso II da Lei Complementar nº 842, de 1º de julho de 2016, ambas do Município de São Vicente, junto ao Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

2.     Observo que a Lei nº 758, de 13 de agosto de 2014, objeto inicial do procotolado, foi expressamente revogada pela Lei Complementar nº 842/16.

3.     Oficie-se ao interessado, informando-lhe a propositura da ação, com cópia da petição inicial.

         São Paulo, 04 de maio de 2017.

 

 

 

Gianpaolo Poggio Smanio

                           Procurador-Geral de Justiça

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