EXCELENTÍSSIMO SENHOR
DESEMBARGADOR PRESIDENTE DO E. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
Procedimento nº 159.901/16
Ementa: Constitucional. Administrativo. Ação Direta
Inconstitucionalidade. Leis n. 2.282, de 02 de maio de 2016; n. 2.278, de 12 de
abril de 2016; n. 2.270, de 1º de março de 2016; n. 2.225, de 7 de abril de
2015; n. 2.254, de 12 de novembro de 2015; n. 2.198, de 17 de novembro de 2014;
e n. 2.213, de 12 de dezembro de 2014, todas do Município de Caraguatatuba. Concessão
de uso de imóveis e áreas integrantes do patrimônio municipal para
destinatários específicos. Violação à regra da licitação. Ofensa aos
princípios da moralidade, impessoalidade e igualdade. Delegação inversa de
poderes. Ofensa ao princípio da separação dos poderes. 1. Leis que
criam exceções à regra da licitação ao favorecerem particulares como
concessionários de uso de terrenos públicos que não se investiram nessa
qualidade a partir de processo seletivo objetivo, público e imparcial. 2. Violação ao princípio da impessoalidade,
igualdade e moralidade na medida em que indicaram os beneficiários específicos
do ato de concessão de uso do bem público imóvel. 3. Escolher o destinatário da concessão é decisão que cabe
exclusivamente ao Poder Executivo, daí a violação à regra da separação de
poderes, por delegação de atribuições do Executivo ao Legislativo,
expressamente proibida no § 1º do art. 5º da Constituição Paulista. 4. Constituição Estadual: artigos 5º, caput, § 1º; 47, II e XIV; 111; 117 e 144.
O Procurador-Geral
de Justiça do Estado de São Paulo, no exercício da atribuição prevista no
art. 116, inciso VI, da Lei Complementar Estadual nº 734 de 26 de novembro de
1993, e em conformidade com o disposto no art. 125, § 2º, e art. 129, inciso
IV, da Constituição da República, e ainda art. 74, inciso VI, e art. 90, inciso
III da Constituição do Estado de São Paulo, com amparo nas informações colhidas
no incluso protocolado (PGJ nº 159.901/16), que segue como anexo), vem perante
esse Egrégio Tribunal de Justiça promover a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE em face das Leis n. 2.282, de
02 de maio de 2016; n. 2.278, de 12 de abril de 2016; n. 2.270, de 1º de março
de 2016; n. 2.225, de 7 de abril de 2015; n. 2.254, de 12 de novembro de 2015;
n. 2.198, de 17 de novembro de 2014; e n. 2.213, de 12 de dezembro de 2014,
todas do Município de Caraguatatuba, pelos
fundamentos expostos a seguir.
I - DOS ATOS
NORMATIVOS IMPUGNADOS
As Leis n. 2.282, de 02 de
maio de 2016; n. 2.278, de 12 de abril de 2016; n. 2.270, de 1º de março de
2016; n. 2.225, de 7 de abril de 2015; n. 2.254, de 12 de novembro de 2015; n.
2.198, de 17 de novembro de 2014; e n. 2.213, de 12 de dezembro de 2014, todas
do Município de Caraguatatuba, autorizam o Poder Executivo a alienar por
concessão real de uso áreas integrantes do patrimônio municipal à “Escola
Batista Novo Tempo”, à “Tenda de Umbanda Casa de Caridade Cabloca Anay”, ao
“Sindicato dos Empregados no Comércio de Caraguatatuba”, à “Entidade Augusta e
Respeitável Loja Simbólica ‘Baluartes do Atlântico’ nº 560”, à “Associação
Brasileira Educacional Vivo – ABEV”, à “Augusta Respeitável Loja Simbólica
Renascer nº 3633” e à “Instituição Paulista Adventista de Educação e
Assistência Social”, respectivamente.
A Lei n. 2.282, de 02 de
maio de 2016, de Caraguatatuba, que “autoriza o Poder Executivo a alienar, por
concessão real de uso, área integrante do patrimônio do Município à Escola
Batista Novo Tempo, os imóveis que especifica”, apresenta a seguinte redação:
A Lei n. 2.278, de 12 de
abril de 2016, de Caraguatatuba, que “autoriza o Poder Executivo a alienar, por
concessão real de uso, área integrante do patrimônio do Município à Tenda de
Umbanda Casa de Caridade Cabloca Anay, os imóveis que especifica”, traz a
seguinte redação:
A Lei n. 2.270, de 1º de
março de 2016, de Caraguatatuba, que “autoriza o Poder Executivo a conceder
direito real de uso sobre imóveis integrantes do patrimônio do Município ao
Sindicato dos Empregados no Comércio de Caraguatatuba”, dispõe da seguinte
maneira:
A Lei n. 2.225, de 7 de
abril de 2015, de Caraguatatuba, que “autoriza a concessão de direito real de
uso de área integrante do patrimônio Município à Entidade Augusta e Respeitável
Loja Simbólica ‘Baluartes do Atlântico’ nº 560”, foi assim editada:
A Lei n. 2.254, de 12 de
novembro de 2015, de Caraguatatuba, que “autoriza o Poder Executivo a alienar,
por concessão real de uso, área integrante do patrimônio Município à Associação
Brasileira Educacional Vivo – ABEV, os imóveis que especifica”, apresenta a
seguinte redação:
Já a Lei n. 2.198, de 17 de
novembro de 2014, de Caraguatatuba, que “autoriza a desafetar áreas
institucionais para a classe de bem dominical do município e conceder direito
real de uso de áreas integrantes do patrimônio do município à Augusta
Respeitável Loja Simbólica Renascer nº 3633”, dispôs in verbis:
Por fim, a Lei n. 2.213, de
12 de dezembro de 2014, de Caraguatatuba, que “autoriza o Poder Executivo a
alienar, por concessão real de uso, à Instituição Paulista Adventista de Educação
e Assistência Social, o imóvel que especifica”, apresenta a seguinte redação:
Entretanto, trata-se de diplomas normativos
verticalmente incompatíveis com nossa sistemática constitucional, conforme será
demonstrado a seguir.
II – dO parâmetro da
fiscalização abstrata de constitucionalidade
As Leis n. 2.282, de 02 de maio
de 2016; n. 2.278, de 12 de abril de 2016; n. 2.270, de 1º de março de 2016; n.
2.225, de 7 de abril de 2015; n. 2.254, de 12 de novembro de 2015; n. 2.198, de
17 de novembro de 2014; e n. 2.213, de 12 de dezembro de 2014, todas do
Município de Caraguatatuba,
contrariam frontalmente a Constituição do Estado de São Paulo, à qual está
subordinada a produção normativa municipal, ante a previsão dos arts. 1º, 18,
29 e 31, da Constituição Federal.
Os dispositivos legais mencionados são
incompatíveis com os seguintes preceitos da Constituição Estadual, aplicáveis
aos Municípios por força de seu art. 144:
“Art. 5º - São Poderes do Estado,
independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.
§ 1º - É vedado a qualquer dos
Poderes delegar atribuições.
(...)
Art. 47 -
Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas
nesta Constituição:
(...)
II - exercer, com o auxílio dos
Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;
(...)
XIV - praticar os demais atos de
administração, nos limites da competência do Executivo;
(...)
Art. 111 - A administração pública direta, indireta ou
fundacional, de qualquer dos Poderes do Estado, obedecerá aos princípios de
legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, razoabilidade, finalidade,
motivação, interesse público e eficiência.
(...)
Art. 117 - Ressalvados os casos especificados na legislação, as
obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de
licitação pública, que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes,
com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições
efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências
de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento
das obrigações.
(...)
Art. 144 – Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e
financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios
estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição”.
Note-se que
o art. 144 da Constituição Estadual, que determina a observância na esfera
municipal, além das regras da Constituição Estadual, dos princípios da
Constituição Federal, é denominado “norma estadual de caráter remissivo, na
medida em que, para a disciplina dos limites da autonomia municipal, remete
para as disposições constantes da Constituição Federal”, como averbou o Supremo
Tribunal Federal ao credenciar o controle concentrado de constitucionalidade de
lei municipal por esse ângulo (STF, Rcl 10.406-GO, Rel. Min. Gilmar Mendes,
31-08-2010, DJe 06-09-2010; STF, Rcl 10.500-SP, Rel. Min. Celso de Mello,
18-10-2010, DJe 26-10-2010).
Por cautela, esclarece-se que estas leis, ainda se reputem de efeitos concretos, são suscetíveis de controle jurisdicional de constitucionalidade por via de ação, uma vez que trazem em si e revestem formalmente de atos normativos determinações com clara violação a princípios constitucionais.
A jurisprudência constitucional vem flexibilizando a denegação de trânsito da sindicância de constitucionalidade dos denominados atos normativos de efeitos concretos, especialmente quando veiculam questões sensíveis ou uma controvérsia constitucional suscitada em abstrato – como no presente caso, em que ela consiste em grave violação aos princípios da licitação, moralidade, impessoalidade e igualdade, bem como de conflito institucional envolvendo o princípio da separação de poderes e os limites da competência do Poder Legislativo.
Neste sentido, já se decidiu:
“(...) 4. Preliminar de não-cabimento rejeitada: o
Supremo Tribunal Federal deve exercer sua função precípua de fiscalização da
constitucionalidade das leis e dos atos normativos quando houver um tema ou uma
controvérsia constitucional suscitada em abstrato, independente do caráter
geral ou específico, concreto ou abstrato de seu objeto. Possibilidade de
submissão das normas de diretrizes orçamentárias ao controle abstrato de
constitucionalidade. Precedentes. (...)” (RTJ 212/372).
“(...) II. CONTROLE ABSTRATO DE CONSTITUCIONALIDADE DE
NORMAS ORÇAMENTÁRIAS. REVISÃO DE JURISPRUDÊNCIA. O Supremo Tribunal Federal deve exercer sua função precípua de
fiscalização da constitucionalidade das leis e dos atos normativos quando
houver um tema ou uma controvérsia constitucional suscitada em abstrato,
independente do caráter geral ou específico, concreto ou abstrato de seu objeto.
Possibilidade de submissão das normas orçamentárias ao controle abstrato de
constitucionalidade. (...)” (RTJ 206/232, g.n.).
“AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO.
REPRESENTAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE DE LEIS OU ATOS NORMATIVOS ESTADUAIS OU
MUNICIPAIS. VEDAÇÃO CONSTITUCIONAL DE ATRIBUIR A LEGITIMAÇÃO PARA AGIR A UM
ÚNICO ÓRGÃO. PARTIDO POLÍTICO SEM REPRESENTAÇÃO NO PODER LEGISLATIVO LOCAL.
POSSIBILIDADE.
CONTROLE ABSTRATO DE CONSTITUCIONALIDADE. LEIS DE EFEITOS CONCRETOS. VIABILIDADE.
CONTRATO DE CONCESSÃO DE SERVIÇO PÚBLICO. PRORROGAÇÃO POR PERÍODO ALÉM DO PRAZO
RAZOÁVEL PARA A REALIZAÇÃO DE NOVO PROCEDIMENTO LICITATÓRIO. VIOLAÇÃO À
EXIGÊNCIA CONSTITUCIONAL DE PRÉVIA LICITAÇÃO PÚBLICA. AGRAVO IMPROVIDO. I – A
exigência do art. 125, § 2º, da Constituição Federal, pertinente aos
legitimados para a representação de inconstitucionalidade de leis ou atos
normativos estaduais ou municipais em face da Constituição Estadual, é que a
Carta Estadual não os restrinja a um único órgão legitimado. Precedente. II –
No julgamento da ADI 4.048-MC/DF, Rel. Min. Gilmar Mendes, esta Corte admitiu o exercício de controle abstrato de
leis de efeitos concretos. III – A prorrogação não razoável de concessão de
serviço público ofende a exigência
constitucional de que ela deve ser precedida de licitação pública.
Precedentes. IV – Agravo regimental improvido” (STF, AgR-RE 412.921-MG, 1ª
Turma, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, 22-02-2011, v.u., DJe 15-03-2011, grifo
nosso).
Fixada
a premissa acerca da viabilidade do
controle concentrado de constitucionalidade de lei de efeitos concretos,
mister apontar que a controvérsia constitucional oferecida (ofensa aos
princípios da moralidade, impessoalidade, licitação e separação de poderes)
autoriza o trâmite da presente ação.
III – DA VIOLAÇÃO À REGRA DA LICITAÇÃO
Como se sabe, o art. 117 da Constituição Estadual (que reproduz o art. 37, XXI da Constituição Federal), estabelece como regra geral a exigência de licitação para que o poder público contrate com particulares.
A exigência de procedimento licitatório para a contratação pela Administração Pública é verdadeiro princípio constitucional estabelecido, que deve, obrigatoriamente, ser seguido pelos Estados e Municípios.
Tanto assim que o artigo 175 da Constituição Federal, ao tratar especificamente da concessão de serviços públicos, previu expressamente a necessidade de licitação.
Por outro lado, é necessário lembrar que é da competência do legislador federal estabelecer normas gerais a respeito de licitação (art. 22, XXVII da Constituição Federal), competência esta efetivamente exercida com a edição da Lei nº 8.666/93, que prevê a obrigatoriedade de licitação (art. 2º), estabelecendo casos de dispensa e inexigibilidade.
As hipóteses de dispensa e
inexigibilidade de licitação, como é cediço, estão previstas nos arts. 24 e 25
da Lei nº 8.666/93, e, quando presentes, exigem a justificação formal, em
processo administrativo, nos termos do art. 26 da referida lei, a partir de
hipóteses de dispensa ou inexigibilidade previstas na própria Lei de
Licitações.
Acrescente-se, ademais, que ao tratar da exigência de procedimento licitatório, a Lei nº 8.666/93 se refere aos casos em que há formação de contrato entre a Administração Pública e terceiros (art. 2º, “caput” da Lei nº 8.666/93).
Esclarece, entretanto, que deve ser considerado contrato “todo e qualquer ajuste entre órgãos ou entidades da Administração Pública e particulares, em que haja um acordo de vontades para a formação de vínculo e a estipulação de obrigações recíprocas, seja qual for a denominação utilizada”.
Ou seja, o negócio jurídico bilateral (contrato público) estará caracterizado sempre que houver ajuste e obrigações recíprocas entre a Administração Pública e o particular, ainda que não tenham elas sido formalizadas em instrumento escrito.
As leis objeto desta ação direta tratam de concessão de uso de bem público, que são formas de utilização de bens públicos dependentes de licitação e autorização legislativa.
A título de esclarecimento e zelo pela melhor técnica e pelo preciosismo vocabular, embora o legislador, ao editá-las, tenha utilizado a expressão “concessão real de uso”, trata-se do instituto da “concessão de uso”, que não se pode confundir com a “concessão de direito real de uso”. Ambas, porém, devem ser precedidas de licitação.
Vejamos como Celso Antônio Bandeira de Mello
diferencia os institutos da concessão:
“A
concessão de uso de bem público é o contrato administrativo pelo qual, como o
nome já o indica, a Administração trespassa a alguém o uso de um bem público
para uma finalidade específica”. Já a “Concessão de direito real de uso,
instituto previsto no art. 7º do decreto-lei 271, de 28.2.67, com a redação que
lhe foi dada pela Medida Provisória 335, de 23.12.2006, convertida na Lei
11.481, de 31.5.2007, é o contrato pelo qual a Administração transfere, por
tempo certo ou por prazo indeterminado, como direito real resolúvel, o uso
remunerado ou gratuito de terreno público para que seja utilizado com fins
específicos de regularização fundiária de interesse social, urbanização,
industrialização, edificação, cultivo de terra, aproveitamento sustentável das
várzeas, preservação das comunidades tradicionais e seus meios de subsistência
ou outras modalidades de interesse social” (“Curso de Direito Administrativo”,
27ª ed., São Paulo, Malheiros, 2010, p. 930).
A concessão de uso de bem públicos é um contrato
administrativo pelo qual a Administração Pública autoriza ao particular a
utilização privativa de bem público.
Assim, “deve tomar-se em vista, como ponto de
partida, a previsão constitucional de que todas as contratações administrativas
serão precedidas de licitação. (...) Logo, a concessão de uso de bem público
demandará a adoção de um procedimento licitatório” (“Comentários à Lei de
Licitações e Contratos Administrativos”, Marçal
Justen Filho, 14ª ed., São Paulo, Dialética, 2010, p. 52).
Dessa forma, esclarecido sobre a
imprescindibilidade da licitação, conclui-se que as leis impugnadas criam exceção à regra da
licitação, ao favorecer como “concessionárias” de uso de bem público aqueles
que não se investiram nessa qualidade a partir de processo seletivo objetivo,
público e imparcial.
Ao conceder à “Escola Batista Novo Tempo”, à “Tenda de Umbanda Casa de Caridade Cabloca Anay”, ao “Sindicato dos Empregados no Comércio de Caraguatatuba”, à “Entidade Augusta e Respeitável Loja Simbólica ‘Baluartes do Atlântico’ nº 560”, à “Associação Brasileira Educacional Vivo – ABEV”, à “Augusta Respeitável Loja Simbólica Renascer nº 3633” e à “Instituição Paulista Adventista de Educação e Assistência Social” o uso de bens públicos do patrimônio público municipal, criando uma hipótese sui generis de dispensa, o legislador municipal violou o princípio constitucional estabelecido, por força do qual a licitação é a regra na Administração Pública (art. 117 e 144 da Constituição Paulista).
IV – DA VIOLAÇÃO DO
PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DE PODERES
Ainda que a iniciativa
legislativa das leis ora impugnadas tenha partido do Poder Executivo, o fato é
que significam, na prática, violação da regra da separação de poderes, por
delegação de atribuições do Executivo ao Legislativo, expressamente proibida no
§ 1º do art. 5º da Constituição Paulista.
Escolher o destinatário da
concessão é decisão que cabe exclusivamente ao Poder Executivo. Ao indicá-lo, a
lei assume feição de ato administrativo, embora se trate do ponto de vista
meramente formal, de ato normativo. Daí a quebra da regra da separação de
poderes.
É ponto pacífico na
doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe
primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento,
organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público. De
outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar
leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.
O legislador municipal, nas
hipóteses analisadas, praticou verdadeiro ato materialmente administrativo, ao
escolher os destinatários da concessão de uso do imóvel público. E o fato de se
tratar de projetos de lei de iniciativa do Executivo não altera tal quadro,
dada a vedação à delegação de poder do Executivo ao Legislativo.
Referidos diplomas, na
prática, invadiram a esfera da gestão
administrativa, que cabe ao Poder Executivo, e envolve o planejamento, a direção, a organização e a
execução de atos de governo. Isso equivale à prática de ato de
administração, de sorte a malferir a separação dos poderes.
Cumpre recordar aqui o
ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar.
Cada um dos órgãos tem missão própria e privativa: a Câmara estabelece regra
para a Administração; a Prefeitura a executa, convertendo o mandamento legal,
genérico e abstrato, em atos administrativos, individuais e concretos. O
Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta
sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes,
princípio constitucional (art. 2º) extensivo ao governo local. Qualquer
atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e
inoperante”. Sintetiza, ademais, que “todo
ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda
deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do
Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos
do governo local (CF, art. 2º c/c o art. 31), podendo ser invalidado pelo Poder
Judiciário” (“Direito Municipal Brasileiro”, 15ªed., atualizada por Márcio
Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p. 708 e
712).
Deste modo, quando a
pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando leis que
equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e
independência que deve existir entre os poderes estatais.
Esse E. Tribunal de Justiça tem declarado a
inconstitucionalidade de leis municipais de iniciativa parlamentar que
interferem na gestão administrativa, com amparo na violação da regra da
separação de poderes. Confiram-se os seguintes julgados: ADI 149.044-0/8-00, rel.
des. Armando Toledo, j.20.02.2008, v.u.; ADI 134.410-0/4, rel. des. Viana Santos,
j. 05.03.2008; ADI 142.496-0/9-00, rel. Junqueira Sangirardi, j. 07.05.08,
v.u.; ADI ° 154.411-0/5-00, rel. Walter Swensson, j.02.04.08, v.u..
V – DA VIOLAÇÃO DOS
PRINCÍPIOS DA MORALIDADE, IMPESSOALIDADE E IGUALDADE
Não bastasse isso, as leis ora impugnadas violaram os
princípios previstos no art. 111 da Constituição do Estado, aplicável ao
Município por força do art. 144 da mesma Carta, na medida em que indicaram os
beneficiários específicos dos atos de concussão de uso de bem público imóvel.
Note-se que, ao indicarem a
“Escola Batista Novo Tempo”, a “Tenda de Umbanda Casa de Caridade Cabloca
Anay”, o “Sindicato dos Empregados no Comércio de Caraguatatuba”, a “Entidade
Augusta e Respeitável Loja Simbólica ‘Baluartes do Atlântico’ nº 560”, a
“Associação Brasileira Educacional Vivo – ABEV”, a “Augusta Respeitável Loja
Simbólica Renascer nº 3633” e a “Instituição Paulista Adventista de Educação e
Assistência Social”, os atos normativos não deixaram qualquer espaço para
decisão por parte da Administração, violando a impessoalidade que deve imperar
na esfera da atividade legislativa.
A respeito do princípio da
impessoalidade, anota Edmir Netto de Araújo que seu sentido é o da “imparcialidade, significando que a
Administração não pode agir motivada por interesses particulares, interesses
políticos, de grupos, por animosidades ou simpatias pessoais, políticas,
ideológicas, etc., implicando sempre em regra de agir objetiva para o
administrador” (Curso de direito
Administrativo, São Paulo, Saraiva, 2005, p. 56).
Ou então, como pontua Maria
Sylvia Zanella Di Pietro, “o princípio
estaria relacionado com a finalidade pública que deve nortear toda a atividade
administrativa. Significa que a Administração não pode atuar com vistas a
prejudicar ou beneficiar pessoas determinadas, uma vez que é sempre o interesse
público que tem que nortear o seu comportamento” (“Direito Administrativo”,
19ª ed., São Paulo, Atlas, 2006, p. 85).
É assente no E. Supremo
Tribunal Federal ser imperativo o respeito aos princípios constitucionais da
Administração, tendo ficado assentado que:
"A
Administração Pública é norteada por princípios conducentes à segurança
jurídica — da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da publicidade e da
eficiência. A variação de enfoques, seja qual for a justificativa, não se
coaduna com os citados princípios, sob pena de grassar a insegurança." (MS
24.872, voto do Min. Marco Aurélio, julgamento em 30-6-05, DJ de 30-9-05).
"Não
podem a lei, o decreto, os atos regimentais ou instruções normativas, e muito
menos acordo firmado entre partes, superpor-se a preceito constitucional,
instituindo privilégios para uns em detrimento de outros, posto que além de
odiosos e iníquos, atentam contra os princípios éticos e morais que
precipuamente devem reger os atos relacionados com a administração pública. O
art. 37, XXI, da CF, de conteúdo conceptual extensível primacialmente aos
procedimentos licitatórios, insculpiu o princípio da isonomia assecuratória da
igualdade de tratamento entre todos os concorrentes, em sintonia com o seu
caput – obediência aos critérios da legalidade, impessoalidade e moralidade – e
ao de que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza." (MS 22.509, Rel. Min. Maurício Corrêa, julgamento em 26-9-1996,
Plenário, DJ de 4-12-1996.)
“Recurso extraordinário. Ação direta de inconstitucionalidade
de artigos de lei municipal. Normas que determinam prorrogação automática de
permissões e autorizações em vigor, pelos períodos que especifica. (...)
Prorrogações que efetivamente vulneram os princípios da legalidade e da
moralidade, por dispensarem certames licitatórios previamente à outorga do
direito de exploração de serviços públicos” (RE 422.591, Rel. Min. Dias
Toffoli, julgamento em 1º-12-2010, Plenário, DJE de 11-3-2011.)
E mutatis mutandis, os princípios constitucionais da Administração
Pública são aplicáveis ao Poder Legislativo quando da elaboração de leis. Não é
aceitável que determinado diploma legal estabeleça cláusula que crie
favorecimento a particular determinado, sob pena de violar os princípios da
moralidade, impessoalidade e igualdade.
Daí a inconstitucionalidade da regra, tomando como
parâmetro o art. 111 da Constituição do Estado.
VI - DA LIMINAR
Estão presentes os
pressupostos para a concessão da liminar, determinando-se a suspensão dos atos
normativos hostilizados.
A razoável fundamentação
jurídica evidencia-se pelos motivos que lastreiam a propositura desta ação
direta, antes declinados.
Quanto ao perigo da demora,
evidencia-se pelo fato de que, a prevalecer, por ora, a presunção de
constitucionalidade das leis glosadas nesta ação direta, atos materiais serão
realizados no sentido de concretização de suas previsões normativas, gerando
situações cuja reversão ao status quo
ante, futuramente, será de considerável grau de dificuldade.
As situações consolidadas,
muitas vezes, criam espaço para argumentação no sentido da improcedência da
ação, ou mesmo afastamento de seus efeitos concretos, desprestigiando, em
última análise, o próprio sistema de controle concentrado de constitucionalidade,
bem como esvaziando a autoridade da Corte Constitucional, seja no plano
federal, como no estadual.
De resto, ainda que não
houvesse essa singular situação de risco, restaria, ao menos, a excepcional
conveniência da medida. Com efeito, no contexto das ações diretas e da outorga
de provimentos cautelares para defesa da Constituição, o juízo de conveniência
é um critério relevante, que vem condicionando os pronunciamentos mais recentes
do Supremo Tribunal Federal, preordenados à suspensão liminar de leis
aparentemente inconstitucionais (cf. ADIN-MC 125, j. 15.2.90, DJU de 4.5.90, p.
3.693, rel. Min. Celso de Mello; ADIN-MC 568, RTJ 138/64; ADIN-MC 493, RTJ
142/52; ADIN-MC 540, DJU de 25.9.92, p. 16.182).
Requer-se, destarte, a concessão da liminar,
determinando-se a suspensão da eficácia das Leis n. 2.282, de 02 de maio de
2016; n. 2.278, de 12 de abril de 2016; n. 2.270, de 1º de março de 2016; n.
2.225, de 7 de abril de 2015; n. 2.254, de 12 de novembro de 2015; n. 2.198, de
17 de novembro de 2014; e n. 2.213, de 12 de dezembro de 2014, todas do
Município de Caraguatatuba, até o julgamento definitivo desta ação.
VII – PEDIDO
Diante de todo o exposto,
aguarda-se o recebimento e processamento da presente ação declaratória, para
que ao final seja ela julgada procedente, reconhecendo-se a
inconstitucionalidade das Leis n. 2.282, de 02 de maio de 2016; n. 2.278, de 12
de abril de 2016; n. 2.270, de 1º de março de 2016; n. 2.225, de 7 de abril de
2015; n. 2.254, de 12 de novembro de 2015; n. 2.198, de 17 de novembro de 2014;
e n. 2.213, de 12 de dezembro de 2014, todas do Município de Caraguatatuba.
Requer-se ainda sejam
requisitadas informações à Câmara Municipal e ao Senhor Prefeito Municipal de
Caraguatatuba, bem como posteriormente citado o Procurador-Geral do Estado para
manifestar-se sobre o ato normativo impugnado.
Posteriormente, aguarda-se
vista para fins de manifestação final.
São Paulo, 19 de maio de
2017.
Gianpaolo Poggio Smanio
Procurador-Geral de Justiça
efjs/mam
Protocolado nº 159.901/16
1. Distribua-se a petição inicial da ação direta de inconstitucionalidade, em face das Leis n. 2.282, de 02 de maio de 2016; n. 2.278, de 12 de abril de 2016; n. 2.270, de 1º de março de 2016; n. 2.225, de 7 de abril de 2015; n. 2.254, de 12 de novembro de 2015; n. 2.198, de 17 de novembro de 2014; e n. 2.213, de 12 de dezembro de 2014, todas do Município de Caraguatatuba, junto ao Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.
2. Arquive-se o protocolado no que se refere:
i) à Lei n. 2.223, de 20 de março de 2015, de Caraguatatuba, que apenas revoga a Lei n. 1.911, de 18 de fevereiro de 2011, que autorizava a concessão de direito real de uso de área à “Loja Maçônica Renascer nº 3633”, não apresentando vício de constitucionalidade;
ii) à Lei n. 2.269, de 22 de fevereiro de 2016, de Caraguatatuba, que concedeu direito de uso sobre imóveis à União para utilização pela Marinha do Brasil, hipótese que dispensa a licitação e atende o interesse público.
3. Oficie-se ao interessado, informando-lhe a propositura da ação, com cópia da petição inicial.
São Paulo, 19 de maio de
2017.
Gianpaolo Poggio Smanio
Procurador-Geral de Justiça
efjs/mam