EXCELENTÍSSIMO SENHOR DESEMBARGADOR PRESIDENTE DO E. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

 

 

 

Procedimento nº 159.901/16

 

 

 

Ementa: Constitucional. Administrativo. Ação Direta Inconstitucionalidade. Leis n. 2.282, de 02 de maio de 2016; n. 2.278, de 12 de abril de 2016; n. 2.270, de 1º de março de 2016; n. 2.225, de 7 de abril de 2015; n. 2.254, de 12 de novembro de 2015; n. 2.198, de 17 de novembro de 2014; e n. 2.213, de 12 de dezembro de 2014, todas do Município de Caraguatatuba. Concessão de uso de imóveis e áreas integrantes do patrimônio municipal para destinatários específicos. Violação à regra da licitação. Ofensa aos princípios da moralidade, impessoalidade e igualdade. Delegação inversa de poderes. Ofensa ao princípio da separação dos poderes. 1. Leis que criam exceções à regra da licitação ao favorecerem particulares como concessionários de uso de terrenos públicos que não se investiram nessa qualidade a partir de processo seletivo objetivo, público e imparcial. 2. Violação ao princípio da impessoalidade, igualdade e moralidade na medida em que indicaram os beneficiários específicos do ato de concessão de uso do bem público imóvel. 3. Escolher o destinatário da concessão é decisão que cabe exclusivamente ao Poder Executivo, daí a violação à regra da separação de poderes, por delegação de atribuições do Executivo ao Legislativo, expressamente proibida no § 1º do art. 5º da Constituição Paulista. 4. Constituição Estadual: artigos 5º, caput, § 1º; 47, II e XIV; 111; 117 e 144.

 

 

 

 

O Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, no exercício da atribuição prevista no art. 116, inciso VI, da Lei Complementar Estadual nº 734 de 26 de novembro de 1993, e em conformidade com o disposto no art. 125, § 2º, e art. 129, inciso IV, da Constituição da República, e ainda art. 74, inciso VI, e art. 90, inciso III da Constituição do Estado de São Paulo, com amparo nas informações colhidas no incluso protocolado (PGJ nº 159.901/16), que segue como anexo), vem perante esse Egrégio Tribunal de Justiça promover a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE em face das Leis n. 2.282, de 02 de maio de 2016; n. 2.278, de 12 de abril de 2016; n. 2.270, de 1º de março de 2016; n. 2.225, de 7 de abril de 2015; n. 2.254, de 12 de novembro de 2015; n. 2.198, de 17 de novembro de 2014; e n. 2.213, de 12 de dezembro de 2014, todas do Município de Caraguatatuba, pelos fundamentos expostos a seguir.

 

 

 

I - DOS ATOS NORMATIVOS IMPUGNADOS

As Leis n. 2.282, de 02 de maio de 2016; n. 2.278, de 12 de abril de 2016; n. 2.270, de 1º de março de 2016; n. 2.225, de 7 de abril de 2015; n. 2.254, de 12 de novembro de 2015; n. 2.198, de 17 de novembro de 2014; e n. 2.213, de 12 de dezembro de 2014, todas do Município de Caraguatatuba, autorizam o Poder Executivo a alienar por concessão real de uso áreas integrantes do patrimônio municipal à “Escola Batista Novo Tempo”, à “Tenda de Umbanda Casa de Caridade Cabloca Anay”, ao “Sindicato dos Empregados no Comércio de Caraguatatuba”, à “Entidade Augusta e Respeitável Loja Simbólica ‘Baluartes do Atlântico’ nº 560”, à “Associação Brasileira Educacional Vivo – ABEV”, à “Augusta Respeitável Loja Simbólica Renascer nº 3633” e à “Instituição Paulista Adventista de Educação e Assistência Social”, respectivamente.

A Lei n. 2.282, de 02 de maio de 2016, de Caraguatatuba, que “autoriza o Poder Executivo a alienar, por concessão real de uso, área integrante do patrimônio do Município à Escola Batista Novo Tempo, os imóveis que especifica”, apresenta a seguinte redação:

 

        

A Lei n. 2.278, de 12 de abril de 2016, de Caraguatatuba, que “autoriza o Poder Executivo a alienar, por concessão real de uso, área integrante do patrimônio do Município à Tenda de Umbanda Casa de Caridade Cabloca Anay, os imóveis que especifica”, traz a seguinte redação:

 

A Lei n. 2.270, de 1º de março de 2016, de Caraguatatuba, que “autoriza o Poder Executivo a conceder direito real de uso sobre imóveis integrantes do patrimônio do Município ao Sindicato dos Empregados no Comércio de Caraguatatuba”, dispõe da seguinte maneira:

A Lei n. 2.225, de 7 de abril de 2015, de Caraguatatuba, que “autoriza a concessão de direito real de uso de área integrante do patrimônio Município à Entidade Augusta e Respeitável Loja Simbólica ‘Baluartes do Atlântico’ nº 560”, foi assim editada:

A Lei n. 2.254, de 12 de novembro de 2015, de Caraguatatuba, que “autoriza o Poder Executivo a alienar, por concessão real de uso, área integrante do patrimônio Município à Associação Brasileira Educacional Vivo – ABEV, os imóveis que especifica”, apresenta a seguinte redação:

 

 

Já a Lei n. 2.198, de 17 de novembro de 2014, de Caraguatatuba, que “autoriza a desafetar áreas institucionais para a classe de bem dominical do município e conceder direito real de uso de áreas integrantes do patrimônio do município à Augusta Respeitável Loja Simbólica Renascer nº 3633”, dispôs in verbis:

Por fim, a Lei n. 2.213, de 12 de dezembro de 2014, de Caraguatatuba, que “autoriza o Poder Executivo a alienar, por concessão real de uso, à Instituição Paulista Adventista de Educação e Assistência Social, o imóvel que especifica”, apresenta a seguinte redação:

Entretanto, trata-se de diplomas normativos verticalmente incompatíveis com nossa sistemática constitucional, conforme será demonstrado a seguir.

II – dO parâmetro da fiscalização abstrata de constitucionalidade

As Leis n. 2.282, de 02 de maio de 2016; n. 2.278, de 12 de abril de 2016; n. 2.270, de 1º de março de 2016; n. 2.225, de 7 de abril de 2015; n. 2.254, de 12 de novembro de 2015; n. 2.198, de 17 de novembro de 2014; e n. 2.213, de 12 de dezembro de 2014, todas do Município de Caraguatatuba, contrariam frontalmente a Constituição do Estado de São Paulo, à qual está subordinada a produção normativa municipal, ante a previsão dos arts. 1º, 18, 29 e 31, da Constituição Federal.

Os dispositivos legais mencionados são incompatíveis com os seguintes preceitos da Constituição Estadual, aplicáveis aos Municípios por força de seu art. 144:

“Art. 5º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

§ 1º - É vedado a qualquer dos Poderes delegar atribuições.

(...)

Art. 47 - Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:

(...)

II - exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;

(...)

XIV - praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do Executivo;

(...)

Art. 111 - A administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes do Estado, obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, razoabilidade, finalidade, motivação, interesse público e eficiência.

(...)

Art. 117 - Ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública, que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.

(...)

Art. 144 – Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição”.

Note-se que o art. 144 da Constituição Estadual, que determina a observância na esfera municipal, além das regras da Constituição Estadual, dos princípios da Constituição Federal, é denominado “norma estadual de caráter remissivo, na medida em que, para a disciplina dos limites da autonomia municipal, remete para as disposições constantes da Constituição Federal”, como averbou o Supremo Tribunal Federal ao credenciar o controle concentrado de constitucionalidade de lei municipal por esse ângulo (STF, Rcl 10.406-GO, Rel. Min. Gilmar Mendes, 31-08-2010, DJe 06-09-2010; STF, Rcl 10.500-SP, Rel. Min. Celso de Mello, 18-10-2010, DJe 26-10-2010).

Por cautela, esclarece-se que estas leis, ainda se reputem de efeitos concretos, são suscetíveis de controle jurisdicional de constitucionalidade por via de ação, uma vez que trazem em si e revestem formalmente de atos normativos determinações com clara violação a princípios constitucionais.

A jurisprudência constitucional vem flexibilizando a denegação de trânsito da sindicância de constitucionalidade dos denominados atos normativos de efeitos concretos, especialmente quando veiculam questões sensíveis ou uma controvérsia constitucional suscitada em abstrato – como no presente caso, em que ela consiste em grave violação aos princípios da licitação, moralidade, impessoalidade e igualdade, bem como de conflito institucional envolvendo o princípio da separação de poderes e os limites da competência do Poder Legislativo.

Neste sentido, já se decidiu:

“(...) 4. Preliminar de não-cabimento rejeitada: o Supremo Tribunal Federal deve exercer sua função precípua de fiscalização da constitucionalidade das leis e dos atos normativos quando houver um tema ou uma controvérsia constitucional suscitada em abstrato, independente do caráter geral ou específico, concreto ou abstrato de seu objeto. Possibilidade de submissão das normas de diretrizes orçamentárias ao controle abstrato de constitucionalidade. Precedentes. (...)” (RTJ 212/372).

“(...) II. CONTROLE ABSTRATO DE CONSTITUCIONALIDADE DE NORMAS ORÇAMENTÁRIAS. REVISÃO DE JURISPRUDÊNCIA. O Supremo Tribunal Federal deve exercer sua função precípua de fiscalização da constitucionalidade das leis e dos atos normativos quando houver um tema ou uma controvérsia constitucional suscitada em abstrato, independente do caráter geral ou específico, concreto ou abstrato de seu objeto. Possibilidade de submissão das normas orçamentárias ao controle abstrato de constitucionalidade. (...)” (RTJ 206/232, g.n.).

“AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. REPRESENTAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE DE LEIS OU ATOS NORMATIVOS ESTADUAIS OU MUNICIPAIS. VEDAÇÃO CONSTITUCIONAL DE ATRIBUIR A LEGITIMAÇÃO PARA AGIR A UM ÚNICO ÓRGÃO. PARTIDO POLÍTICO SEM REPRESENTAÇÃO NO PODER LEGISLATIVO LOCAL. POSSIBILIDADE.

CONTROLE ABSTRATO DE CONSTITUCIONALIDADE. LEIS DE EFEITOS CONCRETOS. VIABILIDADE. CONTRATO DE CONCESSÃO DE SERVIÇO PÚBLICO. PRORROGAÇÃO POR PERÍODO ALÉM DO PRAZO RAZOÁVEL PARA A REALIZAÇÃO DE NOVO PROCEDIMENTO LICITATÓRIO. VIOLAÇÃO À EXIGÊNCIA CONSTITUCIONAL DE PRÉVIA LICITAÇÃO PÚBLICA. AGRAVO IMPROVIDO. I – A exigência do art. 125, § 2º, da Constituição Federal, pertinente aos legitimados para a representação de inconstitucionalidade de leis ou atos normativos estaduais ou municipais em face da Constituição Estadual, é que a Carta Estadual não os restrinja a um único órgão legitimado. Precedente. II – No julgamento da ADI 4.048-MC/DF, Rel. Min. Gilmar Mendes, esta Corte admitiu o exercício de controle abstrato de leis de efeitos concretos. III – A prorrogação não razoável de concessão de serviço público ofende a exigência constitucional de que ela deve ser precedida de licitação pública. Precedentes. IV – Agravo regimental improvido” (STF, AgR-RE 412.921-MG, 1ª Turma, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, 22-02-2011, v.u., DJe 15-03-2011, grifo nosso).

Fixada a premissa acerca da viabilidade do controle concentrado de constitucionalidade de lei de efeitos concretos, mister apontar que a controvérsia constitucional oferecida (ofensa aos princípios da moralidade, impessoalidade, licitação e separação de poderes) autoriza o trâmite da presente ação.

III – DA VIOLAÇÃO À REGRA DA LICITAÇÃO

Como se sabe, o art. 117 da Constituição Estadual (que reproduz o art. 37, XXI da Constituição Federal), estabelece como regra geral a exigência de licitação para que o poder público contrate com particulares.

A exigência de procedimento licitatório para a contratação pela Administração Pública é verdadeiro princípio constitucional estabelecido, que deve, obrigatoriamente, ser seguido pelos Estados e Municípios.

Tanto assim que o artigo 175 da Constituição Federal, ao tratar especificamente da concessão de serviços públicos, previu expressamente a necessidade de licitação.

Por outro lado, é necessário lembrar que é da competência do legislador federal estabelecer normas gerais a respeito de licitação (art. 22, XXVII da Constituição Federal), competência esta efetivamente exercida com a edição da Lei nº 8.666/93, que prevê a obrigatoriedade de licitação (art. 2º), estabelecendo casos de dispensa e inexigibilidade.

As hipóteses de dispensa e inexigibilidade de licitação, como é cediço, estão previstas nos arts. 24 e 25 da Lei nº 8.666/93, e, quando presentes, exigem a justificação formal, em processo administrativo, nos termos do art. 26 da referida lei, a partir de hipóteses de dispensa ou inexigibilidade previstas na própria Lei de Licitações.

Acrescente-se, ademais, que ao tratar da exigência de procedimento licitatório, a Lei nº 8.666/93 se refere aos casos em que há formação de contrato entre a Administração Pública e terceiros (art. 2º, “caput” da Lei nº 8.666/93).

Esclarece, entretanto, que deve ser considerado contrato “todo e qualquer ajuste entre órgãos ou entidades da Administração Pública e particulares, em que haja um acordo de vontades para a formação de vínculo e a estipulação de obrigações recíprocas, seja qual for a denominação utilizada”.

Ou seja, o negócio jurídico bilateral (contrato público) estará caracterizado sempre que houver ajuste e obrigações recíprocas entre a Administração Pública e o particular, ainda que não tenham elas sido formalizadas em instrumento escrito.

As leis objeto desta ação direta tratam de concessão de uso de bem público, que são formas de utilização de bens públicos dependentes de licitação e autorização legislativa.

A título de esclarecimento e zelo pela melhor técnica e pelo preciosismo vocabular, embora o legislador, ao editá-las, tenha utilizado a expressão “concessão real de uso”, trata-se do instituto da “concessão de uso”, que não se pode confundir com a “concessão de direito real de uso”. Ambas, porém, devem ser precedidas de licitação.

Vejamos como Celso Antônio Bandeira de Mello diferencia os institutos da concessão:

“A concessão de uso de bem público é o contrato administrativo pelo qual, como o nome já o indica, a Administração trespassa a alguém o uso de um bem público para uma finalidade específica”. Já a “Concessão de direito real de uso, instituto previsto no art. 7º do decreto-lei 271, de 28.2.67, com a redação que lhe foi dada pela Medida Provisória 335, de 23.12.2006, convertida na Lei 11.481, de 31.5.2007, é o contrato pelo qual a Administração transfere, por tempo certo ou por prazo indeterminado, como direito real resolúvel, o uso remunerado ou gratuito de terreno público para que seja utilizado com fins específicos de regularização fundiária de interesse social, urbanização, industrialização, edificação, cultivo de terra, aproveitamento sustentável das várzeas, preservação das comunidades tradicionais e seus meios de subsistência ou outras modalidades de interesse social” (“Curso de Direito Administrativo”, 27ª ed., São Paulo, Malheiros, 2010, p. 930).

A concessão de uso de bem públicos é um contrato administrativo pelo qual a Administração Pública autoriza ao particular a utilização privativa de bem público.

Assim, “deve tomar-se em vista, como ponto de partida, a previsão constitucional de que todas as contratações administrativas serão precedidas de licitação. (...) Logo, a concessão de uso de bem público demandará a adoção de um procedimento licitatório” (“Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos”, Marçal Justen Filho, 14ª ed., São Paulo, Dialética, 2010, p. 52).

Dessa forma, esclarecido sobre a imprescindibilidade da licitação, conclui-se que as leis impugnadas criam exceção à regra da licitação, ao favorecer como “concessionárias” de uso de bem público aqueles que não se investiram nessa qualidade a partir de processo seletivo objetivo, público e imparcial.

Ao conceder à “Escola Batista Novo Tempo”, à “Tenda de Umbanda Casa de Caridade Cabloca Anay”, ao “Sindicato dos Empregados no Comércio de Caraguatatuba”, à “Entidade Augusta e Respeitável Loja Simbólica ‘Baluartes do Atlântico’ nº 560”, à “Associação Brasileira Educacional Vivo – ABEV”, à “Augusta Respeitável Loja Simbólica Renascer nº 3633” e à “Instituição Paulista Adventista de Educação e Assistência Social” o uso de bens públicos do patrimônio público municipal, criando uma hipótese sui generis de dispensa, o legislador municipal violou o princípio constitucional estabelecido, por força do qual a licitação é a regra na Administração Pública (art. 117 e 144 da Constituição Paulista).

IV – DA VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DE PODERES

Ainda que a iniciativa legislativa das leis ora impugnadas tenha partido do Poder Executivo, o fato é que significam, na prática, violação da regra da separação de poderes, por delegação de atribuições do Executivo ao Legislativo, expressamente proibida no § 1º do art. 5º da Constituição Paulista.

Escolher o destinatário da concessão é decisão que cabe exclusivamente ao Poder Executivo. Ao indicá-lo, a lei assume feição de ato administrativo, embora se trate do ponto de vista meramente formal, de ato normativo. Daí a quebra da regra da separação de poderes.

É ponto pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público. De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

O legislador municipal, nas hipóteses analisadas, praticou verdadeiro ato materialmente administrativo, ao escolher os destinatários da concessão de uso do imóvel público. E o fato de se tratar de projetos de lei de iniciativa do Executivo não altera tal quadro, dada a vedação à delegação de poder do Executivo ao Legislativo.

Referidos diplomas, na prática, invadiram a esfera da gestão administrativa, que cabe ao Poder Executivo, e envolve o planejamento, a direção, a organização e a execução de atos de governo. Isso equivale à prática de ato de administração, de sorte a malferir a separação dos poderes.

Cumpre recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. Cada um dos órgãos tem missão própria e privativa: a Câmara estabelece regra para a Administração; a Prefeitura a executa, convertendo o mandamento legal, genérico e abstrato, em atos administrativos, individuais e concretos. O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art. 2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”. Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art. 2º c/c o art. 31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (“Direito Municipal Brasileiro”, 15ªed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p. 708 e 712).

Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e independência que deve existir entre os poderes estatais.

Esse E. Tribunal de Justiça tem declarado a inconstitucionalidade de leis municipais de iniciativa parlamentar que interferem na gestão administrativa, com amparo na violação da regra da separação de poderes. Confiram-se os seguintes julgados: ADI 149.044-0/8-00, rel. des. Armando Toledo, j.20.02.2008, v.u.; ADI 134.410-0/4, rel. des. Viana Santos, j. 05.03.2008; ADI 142.496-0/9-00, rel. Junqueira Sangirardi, j. 07.05.08, v.u.; ADI ° 154.411-0/5-00, rel. Walter Swensson, j.02.04.08, v.u..

V – DA VIOLAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DA MORALIDADE, IMPESSOALIDADE E IGUALDADE

Não bastasse isso, as leis ora impugnadas violaram os princípios previstos no art. 111 da Constituição do Estado, aplicável ao Município por força do art. 144 da mesma Carta, na medida em que indicaram os beneficiários específicos dos atos de concussão de uso de bem público imóvel.

Note-se que, ao indicarem a “Escola Batista Novo Tempo”, a “Tenda de Umbanda Casa de Caridade Cabloca Anay”, o “Sindicato dos Empregados no Comércio de Caraguatatuba”, a “Entidade Augusta e Respeitável Loja Simbólica ‘Baluartes do Atlântico’ nº 560”, a “Associação Brasileira Educacional Vivo – ABEV”, a “Augusta Respeitável Loja Simbólica Renascer nº 3633” e a “Instituição Paulista Adventista de Educação e Assistência Social”, os atos normativos não deixaram qualquer espaço para decisão por parte da Administração, violando a impessoalidade que deve imperar na esfera da atividade legislativa.

A respeito do princípio da impessoalidade, anota Edmir Netto de Araújo que seu sentido é o da “imparcialidade, significando que a Administração não pode agir motivada por interesses particulares, interesses políticos, de grupos, por animosidades ou simpatias pessoais, políticas, ideológicas, etc., implicando sempre em regra de agir objetiva para o administrador” (Curso de direito Administrativo, São Paulo, Saraiva, 2005, p. 56).

Ou então, como pontua Maria Sylvia Zanella Di Pietro, “o princípio estaria relacionado com a finalidade pública que deve nortear toda a atividade administrativa. Significa que a Administração não pode atuar com vistas a prejudicar ou beneficiar pessoas determinadas, uma vez que é sempre o interesse público que tem que nortear o seu comportamento” (“Direito Administrativo”, 19ª ed., São Paulo, Atlas, 2006, p. 85).

É assente no E. Supremo Tribunal Federal ser imperativo o respeito aos princípios constitucionais da Administração, tendo ficado assentado que:

"A Administração Pública é norteada por princípios conducentes à segurança jurídica — da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da publicidade e da eficiência. A variação de enfoques, seja qual for a justificativa, não se coaduna com os citados princípios, sob pena de grassar a insegurança." (MS 24.872, voto do Min. Marco Aurélio, julgamento em 30-6-05, DJ de 30-9-05).

"Não podem a lei, o decreto, os atos regimentais ou instruções normativas, e muito menos acordo firmado entre partes, superpor-se a preceito constitucional, instituindo privilégios para uns em detrimento de outros, posto que além de odiosos e iníquos, atentam contra os princípios éticos e morais que precipuamente devem reger os atos relacionados com a administração pública. O art. 37, XXI, da CF, de conteúdo conceptual extensível primacialmente aos procedimentos licitatórios, insculpiu o princípio da isonomia assecuratória da igualdade de tratamento entre todos os concorrentes, em sintonia com o seu caput – obediência aos critérios da legalidade, impessoalidade e moralidade – e ao de que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza." (MS 22.509, Rel. Min. Maurício Corrêa, julgamento em 26-9-1996, Plenário, DJ de 4-12-1996.)

“Recurso extraordinário. Ação direta de inconstitucionalidade de artigos de lei municipal. Normas que determinam prorrogação automática de permissões e autorizações em vigor, pelos períodos que especifica. (...) Prorrogações que efetivamente vulneram os princípios da legalidade e da moralidade, por dispensarem certames licitatórios previamente à outorga do direito de exploração de serviços públicos” (RE 422.591, Rel. Min. Dias Toffoli, julgamento em 1º-12-2010, Plenário, DJE de 11-3-2011.)

E mutatis mutandis, os princípios constitucionais da Administração Pública são aplicáveis ao Poder Legislativo quando da elaboração de leis. Não é aceitável que determinado diploma legal estabeleça cláusula que crie favorecimento a particular determinado, sob pena de violar os princípios da moralidade, impessoalidade e igualdade.

Daí a inconstitucionalidade da regra, tomando como parâmetro o art. 111 da Constituição do Estado.

VI - DA LIMINAR

Estão presentes os pressupostos para a concessão da liminar, determinando-se a suspensão dos atos normativos hostilizados.

A razoável fundamentação jurídica evidencia-se pelos motivos que lastreiam a propositura desta ação direta, antes declinados.

Quanto ao perigo da demora, evidencia-se pelo fato de que, a prevalecer, por ora, a presunção de constitucionalidade das leis glosadas nesta ação direta, atos materiais serão realizados no sentido de concretização de suas previsões normativas, gerando situações cuja reversão ao status quo ante, futuramente, será de considerável grau de dificuldade.

As situações consolidadas, muitas vezes, criam espaço para argumentação no sentido da improcedência da ação, ou mesmo afastamento de seus efeitos concretos, desprestigiando, em última análise, o próprio sistema de controle concentrado de constitucionalidade, bem como esvaziando a autoridade da Corte Constitucional, seja no plano federal, como no estadual.

De resto, ainda que não houvesse essa singular situação de risco, restaria, ao menos, a excepcional conveniência da medida. Com efeito, no contexto das ações diretas e da outorga de provimentos cautelares para defesa da Constituição, o juízo de conveniência é um critério relevante, que vem condicionando os pronunciamentos mais recentes do Supremo Tribunal Federal, preordenados à suspensão liminar de leis aparentemente inconstitucionais (cf. ADIN-MC 125, j. 15.2.90, DJU de 4.5.90, p. 3.693, rel. Min. Celso de Mello; ADIN-MC 568, RTJ 138/64; ADIN-MC 493, RTJ 142/52; ADIN-MC 540, DJU de 25.9.92, p. 16.182).

Requer-se, destarte, a concessão da liminar, determinando-se a suspensão da eficácia das Leis n. 2.282, de 02 de maio de 2016; n. 2.278, de 12 de abril de 2016; n. 2.270, de 1º de março de 2016; n. 2.225, de 7 de abril de 2015; n. 2.254, de 12 de novembro de 2015; n. 2.198, de 17 de novembro de 2014; e n. 2.213, de 12 de dezembro de 2014, todas do Município de Caraguatatuba, até o julgamento definitivo desta ação.

 

 

VII – PEDIDO

Diante de todo o exposto, aguarda-se o recebimento e processamento da presente ação declaratória, para que ao final seja ela julgada procedente, reconhecendo-se a inconstitucionalidade das Leis n. 2.282, de 02 de maio de 2016; n. 2.278, de 12 de abril de 2016; n. 2.270, de 1º de março de 2016; n. 2.225, de 7 de abril de 2015; n. 2.254, de 12 de novembro de 2015; n. 2.198, de 17 de novembro de 2014; e n. 2.213, de 12 de dezembro de 2014, todas do Município de Caraguatatuba.

Requer-se ainda sejam requisitadas informações à Câmara Municipal e ao Senhor Prefeito Municipal de Caraguatatuba, bem como posteriormente citado o Procurador-Geral do Estado para manifestar-se sobre o ato normativo impugnado.

Posteriormente, aguarda-se vista para fins de manifestação final.

 

São Paulo, 19 de maio de 2017.

 

         Gianpaolo Poggio Smanio

         Procurador-Geral de Justiça

efjs/mam


 

Protocolado nº 159.901/16

 

1.     Distribua-se a petição inicial da ação direta de inconstitucionalidade, em face das Leis n. 2.282, de 02 de maio de 2016; n. 2.278, de 12 de abril de 2016; n. 2.270, de 1º de março de 2016; n. 2.225, de 7 de abril de 2015; n. 2.254, de 12 de novembro de 2015; n. 2.198, de 17 de novembro de 2014; e n. 2.213, de 12 de dezembro de 2014, todas do Município de Caraguatatuba, junto ao Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

2.     Arquive-se o protocolado no que se refere:

i) à Lei n. 2.223, de 20 de março de 2015, de Caraguatatuba, que apenas revoga a Lei n. 1.911, de 18 de fevereiro de 2011, que autorizava a concessão de direito real de uso de área à “Loja Maçônica Renascer nº 3633”, não apresentando vício de constitucionalidade;

ii) à Lei n. 2.269, de 22 de fevereiro de 2016, de Caraguatatuba, que concedeu direito de uso sobre imóveis à União para utilização pela Marinha do Brasil, hipótese que dispensa a licitação e atende o interesse público.

3.     Oficie-se ao interessado, informando-lhe a propositura da ação, com cópia da petição inicial.

São Paulo, 19 de maio de 2017.

 

         Gianpaolo Poggio Smanio

         Procurador-Geral de Justiça

efjs/mam