EXCELENTÍSSIMO
SENHOR DESEMBARGADOR PRESIDENTE DO E. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO
PAULO
Protocolado nº 134.227/16
Ementa:
1) Ação direta de inconstitucionalidade.
Lei nº 3.407, de 12 de novembro de 2015, do Município de Batatais, que “Dispõe sobre a comercialização de cerveja
nas dependências do Estádio de Futebol “Dr. Oswaldo Scatena”, no Município de
Batatais”.
2) O Município não detém competência
para legislar sobre consumo e desporto, uma vez que esta é atribuída pela
Constituição Federal à União, Estados e ao Distrito Federal (art. 24, V e IX,
Constituição Federal).
3) Existência de normas gerais editadas
pelo legislador federal e estadual, com fundamento na competência concorrente
prevista no art. 24, V e IX, da CR, vedando o porte de bebidas pelo torcedor em
recinto esportivo, com o fim de evitar a prática de atos de violência (art.
13-A, Lei nº 10.671/03 e art. 3º e Anexo I, IV, 13 do Decreto nº 6.117/07), bem
como a proibição de venda de bebidas alcoólicas em estádios de futebol e
ginásios de esportes no Estado de São Paulo (art. 5º, I, da Lei nº 9.470/96).
Produção normativa local não autorizada pela competência suplementar do
Município, prevista no art. 30, II da CR. Violação do princípio federativo
(art. 1º e art. 144, CE) decorrente da repartição constitucional de
competências.
4) Violação do princípio da
proporcionalidade, derivado do postulado do devido processo legal, em sua
dimensão substantiva, na ótica da proibição da proteção insuficiente aos
direitos fundamentais à segurança e à proteção do consumidor (art. 144, CE).
5) Inconstitucionalidade.
O Procurador-Geral de
Justiça do Estado de São Paulo, no exercício da atribuição prevista no art.
116, inciso VI, da Lei Complementar Estadual nº 734 de 26 de novembro de 1993,
e em conformidade com o disposto no art. 125, § 2º, e no art. 129, inciso IV,
da Constituição da República, e ainda no art. 74, inciso VI, e no art. 90,
inciso III, da Constituição do Estado de São Paulo, com amparo nas informações
colhidas no incluso protocolado (PGJ nº 134.227/2016), que segue como anexo),
vem perante esse Egrégio Tribunal de Justiça promover a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE em
face da Lei nº 3.407, de 12 de novembro
de 2015, do Município de Batatais, pelos seguintes fundamentos:
1)
DO ATO NORMATIVO IMPUGNADO
O protocolado que instrui esta inicial de ação direta de inconstitucionalidade e, a cujas folhas reportar-se-á, foi instaurado a partir de representação do Promotor de Justiça de Batatais, fls. 02/06.
A Lei nº 3.407, de 12 de novembro de 2015, do Município de Batatais, que “Dispõe sobre a comercialização de cerveja nas dependências do Estádio de Futebol “Dr. Oswaldo Scatena”, no Município de Batatais, tem a seguinte redação (fls. 47/48):
“(...)
Art. 1º -
Esta Lei regulamenta a comercialização de cerveja no Estádio “Dr. Oswaldo
Scatena” localizado no Município de Batatais.
Art. 2º – A
comercialização e o consumo de cerveja são admitidos o ambiente aludido no art.
1º, exclusivamente em dias de eventos desportivos, espetáculos musicais e
culturais.
§1º - Não
será permitida a comercialização de cerveja em quaisquer recipientes que possam
ocasionar riscos à integridade física ou à saúde dos consumidores.
§2º - Não
será permitida, também, a entrega de recipientes de vidro, ou a entrega de
garrafas ou latas diretamente aos consumidores.
§3º - A
comercialização e o consumo de cerveja serão permitidos apenas a maiores de 18
(dezoito) anos de idade, mediante a exibição de documento de identidade hábil a
comprovar a idade do consumidor.
§4º - Os
responsáveis pela comercialização de cerveja no ambiente aludido no artigo 1º
ficam obrigados a divulgar mensagens de consumo moderado e consciente de
bebidas alcoólicas.
Art. 3º -
Fica vedada a comercialização e o consumo de quaisquer outras bebidas
alcoólicas no local designado no artigo 1º, que não seja cerveja.
Art. 4º -
Revogam-se as disposições em contrário.
Art. 5º -
Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
(...)”
A lei, entretanto, é verticalmente incompatível com nosso ordenamento constitucional, como será demonstrado a seguir.
2) DA FUNDAMENTAÇÃO
O ato normativo ora impugnado viola o princípio federativo que se manifesta na repartição constitucional de competências (art. 1º, CE), de observância obrigatória por força do disposto no art. 144 da Constituição Paulista. A lei impugnada viola também o princípio da proporcionalidade, derivado do postulado do devido processo legal (art. 5º, LIV, CF), em sua dimensão substantiva, na ótica da proibição da proteção insuficiente aos direitos fundamentais à segurança e à proteção do consumidor, igualmente de observância necessária por força do art. 144 da Constituição Estadual.
A Lei Municipal nº 3.407, de 12 de novembro de 2015, do Município de Batatais, dispõe sobre a comercialização de cerveja nas dependências do estádio de futebol “Dr. Oswaldo Scatena”, exclusivamente em dias de eventos desportivos, espetáculos musicais e culturais. Estabelece que a venda não pode ser feita em recipientes de vidro, em garrafas, latas ou outros recipientes que possam gerar risco à integridade física ou à saúde e determina que os comerciantes divulguem mensagens de consumo moderado e consciente de bebidas alcoólicas.
Disciplina, portanto, matéria relacionada a consumo e a desporto.
Nos termos do que determina o artigo 217 da Constituição Federal, “é dever do Estado fomentar práticas desportivas formais e não-formais, como direito de cada um”.
Da norma constitucional é possível extrair que o esporte é direito de todos, ficando a cargo do Poder Público a fixação de políticas e o estabelecimentos de regras voltados a fomentar o desporto e o consumo dentro de locais destinados a práticas esportivas, a fim de dar cumprimento ao comando constitucional.
Nos termos
do art. 24, incisos V e IX, da Constituição Federal compete à União, aos
Estados, e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre consumo e
desporto.
Para
exercício legítimo dessa competência, cabe à União editar normas gerais, e aos
Estados e ao Distrito Federal complementá-las ou, na ausência daquelas, exercer
competência legislativa plena para atender suas peculiaridades (art. 24, §§ 1º
e 3º, CF).
No uso da prerrogativa que lhe foi conferida, a União editou a Lei nº 10.671, de 15 de maio de 2003, conhecida como Estatuto do Torcedor, por meio da qual dispôs sobre normas gerais de proteção e defesa do consumidor torcedor no desporto profissional.
O Estatuto do Torcedor foi posteriormente alterado pela Lei federal nº 12.299, de 27 de julho de 2010, que dispõe sobre medidas de prevenção e repressão a fenômenos de violência por ocasião de competências esportivas, acrescendo-lhe o art. 13-A, por meio do qual proibiu o porte de bebidas alcoólicas em recintos esportivos. A lei federal estabeleceu comando proibitivo, condicionando o acesso do torcedor a recinto esportivo, a não portar bebidas que possam incitar a prática de atos de violência:
“(...)
Art. 13-A. São condições de acesso e permanência do torcedor no
recinto esportivo, sem prejuízo de outras condições previstas em lei: (Incluído pela Lei nº 12.299, de 2010).
(...)
II - não
portar objetos, bebidas ou substâncias proibidas ou suscetíveis de gerar ou
possibilitar a prática de atos de violência; (Incluído pela Lei nº 12.299, de 2010).
Parágrafo único. O não
cumprimento das condições estabelecidas neste artigo implicará a
impossibilidade de ingresso do torcedor ao recinto esportivo, ou, se for o
caso, o seu afastamento imediato do recinto, sem prejuízo de outras sanções
administrativas, civis ou penais eventualmente cabíveis. (Incluído pela Lei nº 12.299, de 2010).
(...)”
É despiciendo destacar que a palavra “bebidas”, constante da redação do art. 13-A, II não foi incluída com o fim de criar regra inútil, referindo-se obviamente a bebidas alcoólicas. É princípio básico de hermenêutica que a lei não deve ser interpretada como se contivesse termos inúteis (verba cum effectu sunt accipienda).
A vedação estabelecida pelo Estatuto do Torcedor adveio das consequências desastrosas que envolvem o consumo de bebidas alcoólicas em estádios de futebol, sendo certo que a associação de violência e consumo de álcool também acabou por resultar na edição do Decreto nº 6.117/07, que aprovou a Política Nacional sobre Álcool, dispondo sobre medidas para redução do uso indevido e de sua associação com violência e criminalidade.
O Decreto nº 6.117/07 tem como diretriz o estímulo a medidas de restrição, espacial e temporal, do consumo de bebidas alcoólicas em locais de maior vulnerabilidade a situações de violência, como é o caso de locais destinados a competições esportivas de massa:
“(...)
Art. 3º Os
órgãos e entidades da administração pública federal deverão considerar em seus
planejamentos as ações de governo para reduzir e prevenir os danos à saúde e à
vida, bem como as situações de violência e criminalidade associadas ao uso
prejudicial de bebidas alcoólicas na população brasileira.
(...)
ANEXO I –
POLÍTICA NACIONAL SOBRE O ÁLCOOL
(...)
IV –
DIRETRIZES
(...)
13 –
estimular e fomentar medidas que restrinjam, espacial e temporalmente, os
pontos de venda e consumo de bebidas alcoólicas, observando os contextos de
maior vulnerabilidade às situações de violência e danos sociais;
(...).”
A validade das disposições do Estatuto do Torcedor foi reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADI nº 2.937/DF, no qual se pronunciou sobre a compatibilidade do caráter geral e principiológico da norma com seus efeitos práticos e concretos:
INCONSTITUCIONALIDADE.
Ação direta. Arts. 8º, I, 9º, § 5º, incs. I e II, e § 4º, 11, caput e §§ 1º,
2º, 3º, 4º, 5º e 6º, 12, 19, 30, § único, 32, caput e §§ 1º e 2º, 33, § único,
incs. II e III, e 37, caput, incs. I e II, § 1º e inc. II, e § 3º, da Lei
federal nº 10.671/2003. Estatuto de Defesa do Torcedor. Esporte. Alegação de
incompetência legislativa da União, ofensa à autonomia das entidades
desportivas, e de lesão a direitos e garantias individuais. Vulneração dos
arts. 5º, incs. X, XVII, XVIII, LIV, LV e LVII, e § 2º, 18, caput, 24, inc. IX
e § 1º, e 217, inc. I, da CF. Não ocorrência. Normas de caráter geral, que
impõem limitações válidas à autonomia relativa das entidades de desporto, sem
lesionar direitos e garantias individuais. Ação julgada improcedente. São
constitucionais as normas constantes dos arts. 8º, I, 9º, § 5º, incs. I e II, e
§ 4º, 11, caput e §§ 1º, 2º, 3º, 4º, 5º e 6º, 12, 19, 30, § único, 32, caput e
§§ 1º e 2º, 33, § único, incs. II e III, e 37, caput, incs. I e II, § 1º e inc.
II, e § 3º, da Lei federal nº 10.671/2003, denominada Estatuto de Defesa do
Torcedor.
No âmbito estadual, o Estado de São Paulo editou a Lei nº 9.470/96, que seguindo o regramento estabelecido pela União, proíbe a venda, distribuição ou consumo de bebidas alcoólicas nos estádios de futebol e ginásios de esportes:
“(...)
Art .5.º - Nos
estádios de futebol e ginásios de esportes mencionados no Artigo 1.° ficam
proibidas a venda, a distribuição ou utilização de:
I - bebidas alcoólicas;
II - fogos de artifício de qualquer
natureza;
III - hastes ou suportes de bandeiras;
e
IV - copos e garrafas de vidro
e bebidas acondicionadas em lata.
Artigo 6.º - A proibição aludida no
inciso I do artigo anterior estende-se, nos dias de jogos, a um raio de 200
metros de distância das entradas dos estádios e ginásios de esporte.
(...)”.
Desta forma, a União, exercendo sua competência concorrente para disciplinar consumo e desporto (art. 24, V e XII, da Constituição Federal) proibiu o acesso e a permanência de qualquer torcedor que porte bebidas alcoólicas em qualquer recinto esportivo.
O Estado, do mesmo modo, proibiu expressamente a venda, distribuição e utilização de qualquer tipo de bebida alcoólica em estádios de futebol e ginásios esportivos.
Porém, a Lei nº 3.407, de 12 de novembro de 2015, do Município de Batatais, ora impugnada, contrariando as disposições mencionadas, permite a comercialização de cerveja no estádio de futebol “Dr. Oswaldo Scatena”, em dias de eventos desportivos, espetáculos musicais e culturais.
Sabe-se que a competência legislativa do município é suplementar à da União e dos Estados, consoante dispõe o art. 30, I e II, da Carta Federal.
Sobre o tema, Alexandre de Moraes afirma que “a Constituição Federal prevê a chamada competência suplementar dos municípios consistente na autorização de regulamentar as normas legislativas federais ou estaduais, para ajustar sua execução a peculiaridades locais, sempre em concordância com aquelas e desde que presente o requisito primordial de fixação de competência desse ente federativo: interesse local”. (Constituição do Brasil Interpretada, São Paulo, Atlas, 2002, p. 743)
Porém, a pretexto de exercer competência suplementar com fundamento no art. 30, II, da Constituição Federal, não há espaço para o legislador municipal excepcionar as regras federais e estaduais, sob pena de converter a competência suplementar do Município em competência concorrente, da qual a comuna não dispõe.
A competência suplementar do Município aplica-se, nos assuntos que são da competência legislativa da União ou dos Estados, àquilo que seja secundário ou subsidiário relativamente à temática essencial tratada na norma superior.
Logo, na hipótese em análise, seria admissível, por exemplo, que o Município legislasse de modo suplementar a respeito do horário de funcionamento dos estabelecimentos comerciais que vendam bebidas alcoólicas no entorno, por tratar-se de assunto de interesse local, sendo pacífico o entendimento do Col. STF nesse particular: AI 622.405-AgR, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 22-5-2007, Segunda Turma, DJ de 15-6-2007; AI 729.307-ED, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgamento em 27-10-2009, Primeira Turma, DJE de 4-12-2009; RE 189.170, Rel. p/ o ac. Min. Maurício Corrêa, julgamento em 1º-2-2001, Plenário, DJ de 8-8-2003; RE 321.796-AgR, Rel. Min. Sydney Sanches, julgamento em 8-10-2002, Primeira Turma, DJ de 29-11-2002; RE 237.965-AgR, Rel. Min. Moreira Alves, julgamento em 10-2-2000, Plenário, DJ de 31-3-2000; RE 182.976, Rel. Min. Carlos Velloso, julgamento em 12-12-1997, Segunda Turma, DJ de 27-2-1998; ADI 3.731-MC, Rel. Min. Cezar Peluso, julgamento em 29-8-2007, Plenário, DJ de 11-10-2007.
Não pode o legislador municipal, contudo, a pretexto de legislar sobre assuntos de interesse local ou suplementar a legislação Federal ou Estadual de ordem geral, invadir a competência legislativa destes entes federativos superiores (RE 313.060, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em 29-11-2005, Segunda Turma, DJ de 24-2-2006).
Pela técnica de repartição de competências adotada na Lei Maior, aos Municípios somente cumpre regular tais matérias de modo específico, atendendo às suas particularidades locais (competência suplementar).
Quando definiu as competências dos entes municipais, o constituinte houve por deferir-lhes de modo suplementar relativamente à legislação federal e estadual, sempre para a disciplina de assuntos de interesse meramente local, ou seja, que se circunscrevam aos limites do território da Comuna.
A União e o Estado de São Paulo, exercendo sua competência concorrente para legislar sobre consumo e desporto (CF, art. 24, V e IX) proibiram a comercialização de bebidas alcoólicas em locais destinados a eventos esportivos de massa.
Desse modo, pode-se afirmar que a lei municipal objurgada, ao tratar de matéria cuja competência é do legislador federal ou estadual, desrespeitou a repartição constitucional de competências, violando o princípio federativo.
O princípio federativo está assentado nos arts. 1º e 18 da Constituição da República, bem como no art. 1º da Constituição Paulista.
Referindo-se aos princípios
fundamentais da Constituição, que revelam as opções políticas essenciais do
Estado, José Afonso da Silva aponta que entre eles podem ser inseridos, entre
outros, “os princípios relativos à
existência, forma, estrutura e tipo de Estado: República Federativa do Brasil, soberania, Estado Democrático de
Direito (art. 1º)” (Curso de direito
constitucional positivo, 13. ed., São Paulo, Malheiros, 1997, p.
Um dos aspectos de maior
relevo, que representa a dimensão e alcance do princípio do pacto federativo
adotado pelo Constituinte em 1988, é justamente o que se assenta nos critérios
adotados pela Constituição Federal para a repartição de competências entre os
entes federativos, bem como a fixação da autonomia e dos respectivos limites,
dos Estados, Distrito Federal e Municípios, em relação à União.
Anota a propósito Fernanda
Dias Menezes de Almeida que “avulta,
portanto, sob esse ângulo, a importância da repartição de competências, já que
a decisão tomada a respeito é que condiciona a feição do Estado Federal,
determinando maior ou menor grau de descentralização.” Daí a afirmação de
doutrinadores no sentido de que a repartição de competências é “’a chave da estrutura do poder federal’, ‘o
elemento essencial da construção federal’, ‘a grande questão do federalismo’,
‘o problema típico do Estado Federal’” (Competências
na Constituição Federal de 1988, 4. ed., São Paulo, Atlas, 2007, p. 19/20).
Desse modo, a autonomia das entidades federativas pressupõe repartição de competências legislativas, administrativas e tributárias. Trata-se de um dos pontos caracterizadores e asseguradores da existência e de harmonia do Estado Federal.
A base do conceito do Estado Federal reside exatamente na repartição de poderes autônomos, que, na concepção tridimensional do Estado Federal Brasileiro, se dá entre União, Estado e Município. É através desta distribuição de competências que a Constituição Federal garante o princípio federativo. O respeito à autonomia dos entes federativos é imprescindível para a manutenção do Estado Federal.
A preservação do princípio
federativo tem contado com a anuência do C. Supremo Tribunal Federal, pois como
destacado em julgado relatado pelo Min. Celso de Mello:
"(...)
a idéia de Federação — que tem, na autonomia dos
Estados-membros, um de seus cornerstones
— revela-se elemento cujo sentido de fundamentalidade a torna imune, em sede de
revisão constitucional, à própria ação reformadora do Congresso Nacional, por
representar categoria política inalcançável, até mesmo, pelo exercício do poder
constituinte derivado (CF, art. 60, § 4º, I). (HC 80.511, voto do Min. Celso de
Mello, julgamento em 21-8-01, DJ de 14-9-01).
(...)”
Por essa linha de raciocínio, pode-se afirmar que a lei municipal que trate de matéria cuja competência é do legislador federal ou estadual, ao desrespeitar a repartição constitucional de competências, a viola o princípio federativo.
A prescrição de que os
Municípios devem observar os princípios constitucionais estabelecidos não se
encontra apenas no art. 144 da Constituição Paulista. O art. 29, caput, da CR/88, prevê que os
Municípios, ao editarem suas leis orgânicas deverão respeitar os “princípios estabelecidos nesta Constituição,
na Constituição do respectivo Estado”.
Dessa forma, no conflito normativo aqui analisado, conclui-se que a Lei nº 3.407, de 12 de novembro de 2015, do Município de Batatais, violou a repartição constitucional de competências, que é a manifestação mais contundente do princípio federativo, operando, por consequência, desrespeito a princípio constitucional estabelecido.
Essa é a razão pela qual restou configurada, no caso, a ofensa ao disposto no art. 144, da Constituição do Estado de São Paulo.
Mas não é só.
O ato normativo impugnado violou o princípio da proporcionalidade, derivado do postulado do devido processo legal, em sua dimensão substantiva (art. 5º, LIV, CF, aplicável por força dos arts. 4º e 144 da CE).
De fato, as normas federais e estaduais de restrição à comercialização e ao consumo de bebidas alcoólicas em recintos esportivos (Estatuto do Torcedor, art. 13-A; Decreto federal nº 6.117/07, art. 3º e Anexo I, IV e Lei Estadual nº 9.470/96, art. 5º, I) encerram medidas voltadas a ampliar a segurança de torcedores em eventos e competições esportivas, bem como assegurar a promoção de sua defesa como consumidores (art. 5º, caput, XXXII, CF).
Referidas normas protegem não apenas os torcedores, mas todo um conjunto indeterminado e amplo de pessoas direta ou indiretamente envolvidas na realização de competições esportivas.
Os atos normativos expedidos pela União e pelo Estado de São Paulo se mostraram fundamentais para viabilizar a efetividade das normas constitucionais, sob pena de se incorrer em violação ao princípio da proibição de proteção insuficiente de direitos constitucionalmente tutelados, que representa uma das facetas do princípio da proporcionalidade (art. 5º, LIV, CF).
Por força do princípio da proibição de proteção insuficiente, nem a lei nem o Estado pode apresentar insuficiência em relação à tutela dos direitos fundamentais. O postulado cria um dever de proteção para o Estado (isto é, para o legislador e para o juiz), que não pode simplesmente ignorar ou se desfazer de mecanismos de tutela para o fim de garantir a proteção a direitos fundamentais.
O princípio em questão já foi considerado pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do Recurso Extraordinário nº 418.376, em que se afastou a extinção da punibilidade de réu acusado de estupro, pela celebração posterior de união estável com a vítima menor.
O Ministro
Gilmar Mendes, em seu voto-vista, discorreu a respeito da proibição à proteção
insuficiente, consignando:
"Quanto à proibição de
proteção deficiente, a doutrina vem apontando para uma espécie de garantismo
positivo, ao contrário do garantismo negativo (que se consubstancia na proteção
contra os excessos do Estado) já consagrado pelo princípio da
proporcionalidade. A proibição de proteção deficiente adquire importância na
aplicação dos direitos fundamentais de proteção, ou seja, na perspectiva do
dever de proteção, que se consubstancia naqueles casos em que o Estado não pode
abrir mão da proteção do direito penal para garantir a proteção de um direito
fundamental. Nesse sentido, ensina o Professor Lênio Streck:
"Trata-se de entender, assim, que a
proporcionalidade possui uma dupla face: de proteção positiva e de proteção de
omissões estatais. Ou seja, a inconstitucionalidade pode ser decorrente de
excesso do Estado, caso em que determinado ato é desarrazoado, resultando
desproporcional o resultado do sopesamento (Abwägung) entre fins e meios; de
outro, a inconstitucionalidade pode advir de proteção insuficiente de um
direito fundamental-social, como ocorre quando o Estado abre mão do uso de
determinadas sanções penais ou administrativas para proteger determinados bens
jurídicos. Este duplo viés do princípio da proporcionalidade decorre da
necessária vinculação de todos os atos estatais à materialidade da
Constituição, e que tem como conseqüência a sensível diminuição da
discricionariedade (liberdade de conformação) do legislador."(Streck,
Lênio Luiz. A dupla face do princípio da proporcionalidade: da proibição de
excesso (Übermassverbot) à proibição de proteção deficiente (Untermassverbot)
ou de como não há blindagem contra normas penais inconstitucionais. Revista da
Ajuris, Ano XXXII, nº 97, marco/2005, p.180).
No mesmo
sentido, o Professor Ingo Sarlet:
"A
noção de proporcionalidade não se esgota na categoria da proibição de excesso,
já que abrange, (...), um dever de proteção por parte do Estado, inclusive
quanto a agressões contra direitos fundamentais provenientes de terceiros, de
tal sorte que se está diante de dimensões que reclamam maior densificação,
notadamente no que diz com os desdobramentos da assim chamada proibição de
insuficiência no campo jurídico-penal e, por conseguinte, na esfera da política
criminal, onde encontramos um elenco significativo de exemplos a serem
explorados." (Sarlet, Ingo Wolfgang.
Constituição e proporcionalidade: o direito penal e os direitos fundamentais
entre a proibição de excesso e de insuficiência. Revista da Ajuris, ano XXXII,
nº 98, junho/2005, p. 107.)
E continua
o Professor Ingo Sarlet:
"A
violação da proibição de insuficiência, portanto, encontra-se habitualmente
representada por uma omissão (ainda que parcial) do poder público, no que diz
com o cumprimento de um imperativo constitucional, no caso, um imperativo de
tutela ou dever de proteção, mas não se esgota nesta dimensão (o que bem
demonstra o exemplo da descriminalização de condutas já tipificadas pela
legislação penal e onde não se trata, propriamente, duma omissão no sentido
pelo menos habitual do termo)." (Sarlet,
Ingo Wolfgang. Constituição e proporcionalidade: o direito penal e os direitos
fundamentais entre a proibição de excesso e de insuficiência. Revista da
Ajuris, ano XXXII, nº 98, junho/2005, p. 132)”
Desse modo, além da compreensão sedimentada do princípio da proporcionalidade sob o viés da proibição de excesso, amplamente acolhida pela doutrina e jurisprudência, pelo qual o Estado tem o dever de não violar bens jurídicos de índole constitucionais, tem igual importância a outra faceta do princípio da proporcionalidade, pelo qual o Estado tem o dever de protegê-los e promovê-los.
Com base nesse postulado, a doutrina vem firmando o entendimento de que a violação à proporcionalidade ocorre não apenas no excesso da ação estatal, mas também na ação estatal que se mostre gravemente insuficiente.
Desse modo, a Lei nº 3.407, de 12 de novembro de 2015, do Município de Batatais, ora impugnada, ofende o princípio da proporcionalidade, conferindo proteção insuficiente aos torcedores-consumidores, ao permitir a comercialização e o consumo de cerveja no estádio de futebol “Dr. Oswaldo Sacatena”, em dias de eventos desportivos, espetáculos musicais e culturais.
A permissão conferida pelo ato normativo impugnado expõe a riscos a integridade, assim como a segurança dos torcedores e dos consumidores, obstaculizando a prevenção de episódios de violência e sua consequente repressão.
O ato normativo põe em
risco, da mesma forma, os familiares dos torcedores, que rotineiramente os
acompanham em eventos esportivos, assim como as pessoas que neles prestam
serviços.
Logo, a lei nº 3.407, de 12 de novembro de 2015, do Município de Batatais, viola o princípio da proporcionalidade, sob a ótica da proibição da proteção insuficiente aos direitos fundamentais à segurança e à proteção do consumidor.
Em casos idênticos, assim se pronunciou esse egrégio Tribunal de Justiça:
“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE
- Lei n. 6.158, de 02 de maio de 2.016, que dispõe sobre a permissão de
comercialização de cerveja nas dependências de estádio de
futebol, conjuntos poliesportivos e praças desportivas no Município de Assis -
Usurpação de competência legislativa concorrente da União e do Estado para
legislar sobre consumo e desporto (artigo 24, incisos V e IX, da Constituição
Federal) - O Município, a pretexto de exercer atuação legislativa suplementar
(art. 30, I e II, da Constituição Federal), não pode abrandar a proibição, como
o fez, sob justificativa de interesse local, pois assim estaria a converter a
competência suplementar em competência concorrente, em afronta ao princípio
federativo (artigos 1º e 18 da Constituição Federal e artigo 144 da Carta
Bandeirante) - Ofensa, também, ao princípio da proporcionalidade, derivado do
postulado do devido processo legal, em sua dimensão substantiva (art. 5º, LIV,
CF, aplicável por força dos arts. 4º e 144 da CE) - Inconstitucionalidade
declarada – Ação procedente”. (TJ/SP, ADI nº 2218022-35.2016.8.26.0000, Rel.
Des. Salles Rossi, julgada em 31 de maio de 2017)
“AÇÃO DIRETA
DE INCONSTITUCIONALIDADE Lei Municipal nº 4.797, de 19.04.2016, que permite a venda
e consumo de cerveja nas dependências do Estádio Municipal
'Alonso Carvalho Braga', no Município de Tupã. Lei municipal tratando de
consumo e desporto, reduzindo proteção existente a favor de torcedores e
consumidores, invade esfera de competência concorrente da União e Estados (art.
24, V e IX, CF). Precedente deste C. Órgão Especial. Procedente a ação”.
(TJ/SP, ADI nº 2216837-59.2016.8.26.0000, Rel. Des. Evaristo dos Santos,
julgada em 15 de março de 2017)
“AÇÃO DIRETA
DE INCONSTITUCIONALIDADE. Lei nº 8.639, de 03 de fevereiro de 2016, do
Município de Araraquara, que "dispõe sobre a comercialização
de cerveja nas dependências de estádios de futebol,
conjuntos poliesportivos e praças desportivas no Município e dá outras providências".
Usurpação da competência concorrente da União, Estados e Distrito Federal para
legislar sobre produção e consumo. Ausência, ademais, de interesse local
específico a justificar a edição da norma municipal impugnada. Afronta aos
artigos 24, inciso V, e 29, "caput", ambos da Constituição Federal, e
144, da Constituição do Estado de São Paulo. Ação procedente para declaração da
inconstitucionalidade da Lei nº 8.639, de 03 de fevereiro de 2016, do Município
de Araraquara”. (TJ/SP, ADI nº 2099116-86.2016.8.26.0000, Rel. Des. Tristão
Ribeiro, julgada em 15 de fevereiro de 2017)
“AÇÃO DIRETA
DE INCONSTITUCIONALIDADE Lei Municipal nº 3.899, de 25.04.2016, que
"dispõe sobre a comercialização e o consumo de bebidas alcoólicas nas
dependências do Estádio Municipal José Maria de Campos Maia, no
Município de Mirassol, nos dias de jogos e eventos". Competência
legislativa. Lei municipal tratando de consumo e desporto, reduzindo proteção
existente a favor de torcedores e consumidores, invade esfera de competência
concorrente da União e Estados (art. 24, V e IX, CF). Precedente deste C. Órgão
Especial. Fonte de custeio. Possível a indicação de fonte de custeio genérica
(art. 4º).Inconstitucionalidade inocorrente quanto a esse aspecto. Precedentes.
Procedente a ação”. (TJ/SP, ADI nº 2104650-11.2016.8.26.0000, Rel. Des.
Evaristo dos Santos, julgada em 07 de dezembro de 2016)
3) DOS PEDIDOS
3.1.) DO PEDIDO LIMINAR
À saciedade demonstrado o fumus
boni iuris, pela ponderabilidade do direito alegado, soma-se a ele o periculum in mora.
A atual tessitura dos preceitos legais do Município de Batatais,
apontados como violadores de princípios e regras da Constituição do Estado de
São Paulo é sinal, de per si, para
suspensão de sua eficácia até final julgamento desta ação, evitando-se a
comercialização de cerveja nas dependências do estádio de futebol “Dr. Oswaldo
Scatena”, durante os dias de eventos desportivos, espetáculos musicais e
culturais.
O perigo da demora decorre, especialmente, da ideia de que, sem a imediata suspensão da vigência e da eficácia do ato normativo questionado, poderão advir episódios de violência que colocarão em risco a segurança de torcedores-consumidores.
A ideia do fato consumado, com repercussão concreta, guarda relevância para a apreciação da necessidade da concessão da liminar na ação direta de inconstitucionalidade.
Note-se que, com a procedência da ação, pelas razões declinadas, não será possível restabelecer o status quo ante.
Assim, a imediata suspensão da eficácia do diploma normativo impugnado evitará a ocorrência de maiores prejuízos.
De resto, ainda que não houvesse essa singular situação de risco, restaria, ao menos, a excepcional conveniência da medida.
Com efeito,
no contexto das ações diretas e da outorga de provimentos cautelares para
defesa da Constituição, o juízo de conveniência é um critério relevante, que
vem condicionando os pronunciamentos do Supremo Tribunal Federal, preordenados
à suspensão liminar de leis aparentemente inconstitucionais (cf. ADIN-MC 125,
j. 15.2.90, DJU de 4.5.90, p. 3.693, rel. Min. Celso de Mello; ADIN-MC 568, RTJ
138/64; ADIN-MC 493, RTJ 142/52; ADIN-MC 540, DJU de 25.9.92, p. 16.182).
À luz deste perfil, requer-se a concessão de liminar para a suspensão imediata, até o final e definitivo julgamento desta ação, da Lei nº 3.407, de 12 de novembro de 2015, do Município de Batatais.
3.2.) DO PEDIDO PRINCIPAL
Diante de todo o exposto,
aguarda-se o recebimento e processamento da presente ação declaratória, para
que ao final seja ela julgada procedente, reconhecendo-se a
inconstitucionalidade da Lei nº 3.407,
de 12 de novembro de 2015, do Município de Batatais.
Requer-se ainda que sejam
requisitadas informações à Câmara Municipal e ao Prefeito Municipal de Batatais,
bem como que seja citado o Procurador-Geral do Estado para manifestar-se sobre o
ato normativo impugnado.
Posteriormente, aguarda-se
vista para fins de manifestação final.
Termos em que,
Aguarda-se deferimento.
São Paulo, 03 de julho de
2017.
Gianpaolo
Poggio Smanio
Procurador-Geral
de Justiça
blo/mi
Protocolado nº 134.227/16
Interessado: Dr. Hilton Maurício de Araújo Filho – 1º
Promotor de Justiça de Batatais
1. Distribua-se a inicial da ação direta de inconstitucionalidade em face da Lei nº 3.407, de 12 de novembro de 2015, do Município de Batatais, junto ao egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.
2. Comunique-se a propositura da ação ao interessado.
3. Cumpra-se.
São Paulo, 03 de julho de 2017.
Gianpaolo
Poggio Smanio
Procurador-Geral
de Justiça
blo/mi