Excelentíssimo Senhor Doutor Desembargador Presidente do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

 

 

 

 

Protocolado nº 130.977/2016

 

 

 

 

Constitucional. Administrativo. Ação direta de inconstitucionalidade. Art. 11 da Lei nº 6.447, de 28 de dezembro de 2015, do Município de São Bernardo do Campo. Proibição de divulgação de material, nos estabelecimentos de ensino da rede pública, contendo manifestação de ideologia de gênero. Princípio federativo. Usurpação da competência normativa federal exclusiva. Incompatibilidade com os princípios constitucionais da educação. 1. A disciplina do conteúdo daquilo que possa ser veiculado nas atividades escolares é assunto que não se situa no domínio normativo de Estados ou Municípios, pois, reclama uniformidade e centralidade e possui generalidade, cujo trato se radica na competência normativa da União (art. 22, XXIV, CF, c.c. art. 144, CE), caracterizando-se a invasão da esfera de competência normativa federal e extrapolação do domínio normativo municipal. 2. O art. 237 da CE sufraga princípios próprios (e também incorpora os da CF) na educação, direcionando a atividade a valores como pluralismo, alteridade, respeito à dignidade e à liberdade da pessoa humana, cidadania, formação crítica, informação e repulsa a discriminações ou preconceitos de ordem sexual, desenho normativo que não se coaduna com o teor da lei contestada, cuja aplicação é assaz subjetiva e tendente à censura pedagógica. 

 

 

 

            O Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, no exercício da atribuição prevista no art. 116, VI, da Lei Complementar Estadual nº 734, de 26 de novembro de 1993 (Lei Orgânica do Ministério Público de São Paulo), em conformidade com o disposto nos arts. 125, § 2º, e 129, IV, da Constituição Federal, e, ainda, nos arts. 74, VI, e 90, III, da Constituição do Estado de São Paulo, com amparo nas informações colhidas no incluso protocolado, vem, respeitosamente, perante esse Egrégio Tribunal de Justiça, promover a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE, com pedido liminar, em face do art. 11, caput e parágrafo único, da Lei nº 6.447, de 28 de dezembro de 2015, do Município de São Bernardo do Campo, pelos fundamentos a seguir expostos:

I – OS ATOS NORMATIVOS IMPUGNADOS

          A Lei nº 6.447, de 28 de dezembro de 2015, do Município de São Bernardo do Campo, prevê no que interessa:

“Art. 11 – Fica vedada, em todo o Sistema Municipal de Ensino, a implementação de qualquer orientação relacionada à ideologia de gênero ou a categorias associadas, geralmente caracterizadas pelas categorias “diversidade de gênero”, “identidade de gênero”, “gênero” e orientação sexual.

Parágrafo único – Não será permitida a aplicação de práticas pedagógicas e nem a confecção de material didático ou publicitário que induza à prática sexual ou promova a Ideologia de Gênero. (...)”                 

O ato normativo acima transcrito está em flagrante afronta às disposições constitucionais estaduais, conforme será exposto abaixo.

II – O PARÂMETRO DA FISCALIZAÇÃO ABSTRATA DE CONSTITUCIONALIDADE

O ato normativo impugnado não está em consonância com os seguintes preceitos da Constituição do Estado:

“Artigo 144 – Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por Lei Orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.

(...)

Artigo 237 - A educação, ministrada com base nos princípios estabelecidos no artigo 205 e seguintes da Constituição Federal e inspirada nos princípios de liberdade e solidariedade humana, tem por fim:

I - a compreensão dos direitos e deveres da pessoa humana, do cidadão, do Estado, da família e dos demais grupos que compõem a comunidade;

II - o respeito à dignidade e às liberdades fundamentais da pessoa humana;

(...)

VII - a condenação a qualquer tratamento desigual por motivo de convicção filosófica, política ou religiosa, bem como a quaisquer preconceitos de classe, raça ou sexo;

VIII - o desenvolvimento da capacidade de elaboração e reflexão crítica da realidade”.

III – FUNDAMENTAÇÃO

         Em primeiro lugar, importa reconhecer que a norma impugnada viola o princípio federativo.

O art. 144 da Constituição Estadual, que determina a observância na esfera municipal, além das regras da Constituição Estadual, dos princípios da Constituição Federal, é denominado “norma estadual de caráter remissivo, na medida em que, para a disciplina dos limites da autonomia municipal, remete para as disposições constantes da Constituição Federal”, como averbou o Supremo Tribunal Federal ao credenciar o controle concentrado de constitucionalidade de lei municipal por esse ângulo (STF, Rcl 10.406-GO, Rel. Min. Gilmar Mendes, 31-08-2010, DJe 06-09-2010; STF, Rcl 10.500-SP, Rel. Min. Celso de Mello, 18-10-2010, DJe 26-10-2010).

Disso decorre a possibilidade de contraste da lei local com o art. 144 da Constituição Estadual à vista do princípio federativo por ela acolhido e que alberga a técnica de repartição de competências entre os entes federados, inclusive a regra do art. 22, XXIV, da Constituição de 1988.

A disciplina do conteúdo daquilo que possa ser veiculado nas atividades escolares é assunto que não se situa no domínio normativo periférico de Estados ou Municípios. É tema que reclama uniformidade e centralidade, possuindo generalidade, e cujo trato se radica na competência normativa da União, nos termos do art. 22, XXIV, da Constituição Federal:

“Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:

(...)

XXIV – diretrizes e bases da educação nacional”.

O assunto é da pertença das normas gerais reservadas à União porque não admite tratamento atomizado nos demais entes federados. Portanto, não adquire eficácia a alegação de exercício da competência normativa municipal.

Entretanto, não é só.

O ato normativo implica grave comprometimento à liberdade de orientação sexual e à liberdade de docência, e inclusive ao direito subjetivo de informação no processo educacional, a partir de conduta que manifesta, direta ou indiretamente, censura pedagógica.

A lei municipal impugnada revela inexorável incompatibilidade material com o quanto disposto no art. 237 da Constituição Estadual.

O art. 237 da CE, que encontra correspondências nos arts. 205 e 206 da Constituição Federal, indica que a educação, além de ter como meta o preparo da pessoa para a cidadania e como princípio o pluralismo, vem assentada nos princípios de liberdade e solidariedade humana e visa à compreensão dos direitos e deveres da pessoa humana e dos demais grupos que compõem a comunidade, ao respeito à dignidade e às liberdades fundamentais da pessoa humana e ao desenvolvimento da capacidade de elaboração e reflexão crítica da realidade, passando necessariamente pela repulsa a qualquer tratamento desigual ou preconceituoso inclusive por motivo de sexo.

         Por conseguinte, não se coaduna com os preceitos acima indicados de pluralismo, alteridade e repulsa aos preconceitos de sexo a lei municipal que veda a implementação de qualquer orientação relacionada à ideologia de gênero e não permite a aplicação de práticas pedagógicos e a confecção de material didático ou publicitário que induza à prática sexual ou promova a ideologia de gênero. Na verdade, a lei representa uma censura pedagógica.

Neste passo, cabe lembrar que este Egrégio Órgão Especial já se manifestou em caso análogo, reconhecendo a inconstitucionalidade de lei municipal que também cuidava da divulgação de material, nas unidades escolares, que debatesse comportamento ou orientação homossexual:

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - LEI N° 8.458/11, DO MUNICÍPIO DE SÃO JOSÉ DOS CAMPOS, QUE PROÍBE A DIVULGAÇÃO OU EXIBIÇÃO DE QUALQUER TIPO DE MATERIAL QUE POSSA INDUZIR A CRIANÇA AO COMPORTAMENTO, OPÇÃO OU ORIENTAÇÃO HOMOAFETIVA - USURPAÇÃO DE COMPETÊNCIA PRIVATIVA DA UNIÃO - AUSÊNCIA DE INTERESSE LOCAL - SUBTRAÇÃO DA DISCUSSÃO DA HOMOFOBIA DO ÂMBITO ESCOLAR - CLÁUSULA ABERTA - OFENSA AO PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE - VIOLAÇÃO DOS ARTS. 144, 237, II E VII - DA CONSTITUIÇÃO DO ESTADO DE SÃO PAULO - AÇÃO PROCEDENTE.

1. Ainda que inegavelmente seja interesse também do Município o de zelar pela boa educação de seus cidadãos, não há, no que respeita à educação para a prevenção da homofobia, para o respeito e tolerância da diversidade sexual, e para a discussão sobre a liberdade de orientação sexual, qualquer caractere de preponderância de interesse em seu favor. Inexistindo qualquer peculiaridade no Município de São José dos Campos envolvendo o tema, tem seque ele transcende o interesse local, do que deriva a usurpação de competência legislativa.

2. O debate acerca da homofobia e a educação para o respeito e tolerância do indivíduo homossexual estão calcados na própria Constituição do Estado de São Paulo. As tentativas de se subtrair do âmbito escolar a discussão desta questão social viola o art. 237, II e VII, da Constituição do Estado de São Paulo, posto que a educação é dever conjunto do Estado e da família, e não apenas desta.

3. Ainda que se entendesse como legítima a ratio eleita pelo Legislativo Municipal, qual seja, impedir a veiculação de material que estimulasse determinado comportamento, a lei não traz qualquer delineamento do que seria "material que possa induzir a criança ao homossexualismo". Esse defeito, longe de ocasionar a ineficácia da norma, termina por ampliar os poderes das autoridades municipais, as quais estariam então autorizadas a selecionar os livros, informes, vídeos, conteúdos programáticos a serem ministrados nas escolas municipais, mediante apreciação subjetiva e aberta quanto ao suposto potencial de "induzir ao homossexualismo (sic)". Patente, portanto, a ofensa ao princípio da razoabilidade.

4. Ação procedente”. (ADIN n° 0296371-62.2011.8.26.0000, julgamento no dia 1º de agosto de 2012).

Portanto, infere-se que o ato normativo impugnado viola o princípio federativo, a repartição constitucional de competências e os princípios constitucionais relativos à educação.

IV – Pedido liminar

         À saciedade demonstrado o fumus boni iuris, pela ponderabilidade do direito alegado, soma-se a ele o periculum in mora. A atual tessitura dos preceitos legais do Município de São Bernardo do Campo apontados como violadores de princípios e regras da Constituição do Estado de São Paulo é sinal, de per si, para suspensão de sua eficácia até final julgamento desta ação, de maneira a evitar oneração do erário irreparável ou de difícil reparação.

         À luz deste perfil, requer a concessão de liminar para suspensão da eficácia, até final e definitivo julgamento desta ação do art. 11, caput e parágrafo único, da Lei nº 6.447, de 28 de dezembro de 2015, do Município de São Bernardo do Campo.

IV – Pedido

         Face ao exposto, requerendo o recebimento e o processamento da presente ação para que, ao final, seja julgada procedente para declarar a inconstitucionalidade do art. 11, caput e parágrafo único, da Lei nº 6.447, de 28 de dezembro de 2015, do Município de São Bernardo do Campo.

         Requer-se ainda sejam requisitadas informações à Câmara Municipal e ao Prefeito Municipal de São Bernardo do Campo, bem como citado o Procurador-Geral do Estado para se manifestar sobre os atos normativos impugnados, protestando por nova vista, posteriormente, para manifestação final.

Termos em que, pede deferimento.

São Paulo, 18 de julho de 2017.

 

 

 

Gianpaolo Poggio Smanio

Procurador-Geral de Justiça

 

pss/dcm

 

 

Protocolado nº 130.977/2016

Assunto: Trata-se de representação para análise de eventual inconstitucionalidade da Lei Municipal n. 6.447, de 28 de dezembro de 2015, que aprovou o Plano Municipal de Educação de São Bernardo do Campo, em atenção ao disposto no art. 8º, caput, da Lei federal n.13.05/2014, que aprovou o Plano Nacional de Educação

 

 

 

 

1.                Distribua-se a petição inicial da ação direta de inconstitucionalidade do art. 11, caput e parágrafo único, da Lei nº 6.447, de 28 de dezembro de 2015, do Município de São Bernardo do Campo junto ao Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

2.                Oficie-se ao interessado, informando-lhe a propositura da ação, com cópia da petição inicial.

 

São Paulo, 18 de julho de 2017.

 

 

Gianpaolo Poggio Smanio

Procurador-Geral de Justiça

 

pss/dcm