Excelentíssimo Senhor Doutor Desembargador Presidente do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

 

Protocolado n. 168.059/2016

 

 

Ementa: Constitucional. Administrativo. Ação Direta de Inconstitucionalidade. Lei n° 4.010, de 20 de outubro de 2016, do Município de São Manuel, que “Dispõe sobre a proibição do comércio, manuseio, a queima e a soltura de fogos de artifício no âmbito do Município de São Manuel e dá outras providências”. 1. Lei municipal que, ao proibir todo e qualquer comércio, manuseio e queima de fogos de artifício, acabou por invadir a esfera de competência legislativa concorrente da União e dos Estados-membros para dispor sobre produção e consumo. 2. Ofensa, ademais, à livre iniciativa e ao princípio da razoabilidade. 3. Ofensa ao artigo 144 da CE/89 (artigos 1º, IV, 24, V e 170, caput, da CF/88).

 

 

 

O Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, no exercício da atribuição prevista no art. 116, VI, da Lei Complementar Estadual n. 734, de 26 de novembro de 1993 (Lei Orgânica do Ministério Público do Estado de São Paulo), em conformidade com o disposto no art. 125, § 2º, e no art. 129, IV, da Constituição Federal, e, ainda, nos arts. 74, VI, e 90, III, da Constituição do Estado de São Paulo, com amparo nas informações colhidas no incluso protocolado (Pt. n. 168.059/2016), vem, respeitosamente, perante esse Egrégio Tribunal de Justiça, promover a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE em face da Lei n° 4.010, de 20 de outubro de 2016, do Município de São Manuel, pelos fundamentos a seguir expostos:

I – O Ato Normativo Impugnado

A Lei n° 4.010, de 20 de outubro de 2016, do Município de São Manuel, que “dispõe sobre a proibição do comércio, manuseio, a queima e a soltura de fogos de artifício no âmbito do Município de São Manuel e dá providências”, ora impugnada, possui a seguinte redação, verbis:

“Art. 1º.  Fica terminantemente proibido o comércio, manuseio, a queima e a soltura de fogos de artifício e artefatos pirotécnicos no Município de São Manuel.

Parágrafo único: Para efeito dos dispositivos constantes no “caput” deste artigo são considerados fogos e artefatos pirotécnicos: a) os fogos de vista com estampido; b) os fogos de estampido de qualquer natureza; c) os foguetes, com ou sem flecha, de apito ou de lágrimas, com bomba; d) os chamados “morterinhos de jardim”, serpentes voadoras ou similares; e) baterias; f) os morteiros com tubos de ferro; g) os demais fogos de artifício com estampido, inclusive os chamados “rojões”.

 

Art. 2º.  O manuseio, a utilização, a comercialização e a soltura de fogos de artifício descrita na presente lei sujeitará os responsáveis à punição progressiva com pagamento de multa e as seguintes sanções:

I-                   Multa de R$ 5.000,00 (cinco mil reais) ao estabelecimento comercial que descumprir o disposto nesta lei;

II-                 Dobrar o valor da multa na reincidência;

III-               Multa no valor de R$ 2.000,00 (dois mil reais) à pessoa física pelo descumprimento desta lei, dobrando o valor da multa na reincidência;

IV-              Interdição das atividades comerciais, combinada com a multa revista com a cassação do alvará de funcionamento.

Parágrafo único: O valor da multa previsto neste artigo deve ser corrigido, anualmente, pelo valor do IGPM.

 

Art. 3º.  Fica o Poder Executivo autorizado a reverter os valores recebidos em função das multas previstas por esta Lei para custeio de publicações e conscientização da população sobre a divulgação desta norma e para unidade de vigilância animal de São Lázaro do Município.

Parágrafo único – O valor da multa de que trata o caput deste artigo será atualizado anualmente pela variação do Índice de Preços ao Consumidor Amplo – IPCA, apurado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE.

Art. 4º.  As despesas decorrentes da presente Lei correrão por conta do orçamento vigente.

Art. 5°. Esta Lei entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.

(...)”

II – O parâmetro da fiscalização abstrata de constitucionalidade

 A Lei n° 4.010, de 20 de outubro de 2016, do Município de São Manuel, ao proibir o comércio, o manuseio, a queima e a soltura de fogos de artifício no Município, fere a Constituição do Estado de São Paulo, à qual está subordinada a produção normativa municipal ante a previsão dos arts. 1º, 18, 29 e 31 da Constituição Federal.

Com efeito, referido ato normativo municipal é incompatível com o artigo 144 da Constituição Paulista, o qual dispõe que, verbis:

“Artigo 144 – Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto- organizarão por Lei Orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição”.

Ao condicionar a autonomia dos Municípios à observância dos princípios previstos em seu bojo e na Constituição Federal de 1988 (CF/88), o artigo 144 da Constituição Estadual adquire caráter de norma remissiva, reproduzindo, aliás, o caput do art. 29 da Carta Magna. 

Assim, a incompatibilidade vertical arguida se dá em face de norma remissiva da Constituição Estadual, não havendo espaço para se cogitar de contraste direto da lei municipal com a Constituição Federal.

Vale ressaltar que a parametricidade das normas constitucionais estaduais de caráter remissivo, para fins de controle concentrado de constitucionalidade de leis ou atos normativos estaduais ou municipais perante o Tribunal de Justiça local (art. 125, § 2°, CF/88), constitui questão amplamente discutida e pacificada no E. Supremo Tribunal Federal, conforme decisões abaixo colacionadas:

“RECLAMAÇÃO - FUNÇÃO CONSTITUCIONAL DO INSTRUMENTO RECLAMATÓRIO (RTJ 134/1033 - RTJ 166/785) - COMPETÊNCIA DOS TRIBUNAIS DE JUSTIÇA PARA EXERCER O CONTROLE ABSTRATO DE CONSTITUCIONALIDADE DE LEIS E ATOS NORMATIVOS ESTADUAIS E/OU MUNICIPAIS CONTESTADOS EM FACE DA CONSTITUIÇÃO ESTADUAL - A “REPRESENTAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE” NO ÂMBITO DOS ESTADOS-MEMBROS (CF, ART. 125, § 2º) - A QUESTÃO DA PARAMETRICIDADE DAS CLÁUSULAS CONSTITUCIONAIS ESTADUAIS, DE CARÁTER REMISSIVO, PARA FINS DE CONTROLE CONCENTRADO DE LEIS E ATOS NORMATIVOS ESTADUAIS E/OU MUNICIPAIS CONTESTADOS, PERANTE O TRIBUNAL DE JUSTIÇA LOCAL, EM FACE DA CONSTITUIÇÃO ESTADUAL - DOUTRINA - PRECEDENTES - RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO. - O único instrumento jurídico revestido de parametricidade, para efeito de fiscalização concentrada de constitucionalidade de lei ou de atos normativos estaduais e/ou municipais, é, tão-somente, a Constituição do próprio Estado-membro (CF, art. 125, § 2º), que se qualifica, para esse fim, como pauta de referência ou paradigma de confronto, mesmo nos casos em que a Carta Estadual haja formalmente incorporado, ao seu texto, normas constitucionais federais que se impõem à observância compulsória das unidades federadas. Doutrina. Precedentes. - Revela-se legítimo invocar, como referência paradigmática, para efeito de controle abstrato de constitucionalidade de leis ou atos normativos estaduais e/ou municipais, cláusula de caráter remissivo, que, inscrita na Constituição Estadual, remete, diretamente, às regras normativas constantes da própria Constituição Federal, assim incorporando-as, formalmente, mediante referida técnica de remissão, ao plano do ordenamento constitucional do Estado-membro. - Com a técnica de remissão normativa, o Estado-membro confere parametricidade às normas, que, embora constantes da Constituição Federal, passam a compor, formalmente, em razão da expressa referência a elas feita, o “corpus” constitucional dessa unidade política da Federação, o que torna possível erigir-se, como parâmetro de confronto, para os fins a que se refere o art. 125, § 2º da Constituição da República, a própria norma constitucional estadual de conteúdo remissivo. Doutrina. Precedentes.” (STF; Pleno; AgR Recl. 10.500/SP; Min. Rel. Celso de Mello; D.J. 26/10/2010). g.n.

“Agravo regimental em reclamação constitucional. 2. Competência dos tribunais de justiça estaduais para exercer controle abstrato de constitucionalidade de leis ou atos normativos estaduais ou municipais contestados em face de constituição estadual. 3. Legitimidade da invocação, como referência paradigmática para controle concentrado de constitucionalidade de leis ou atos normativos municipais/estaduais, de cláusula de caráter remissivo que, inscrita na Constituição estadual, remete a norma constante da própria Constituição Federal, incorporando-a, formalmente, ao ordenamento constitucional do Estado-membro. 4. Invocação de paradigma. Reclamação 7.396. Processo de caráter subjetivo. Efeitos restritos às partes. 5. Agravo regimental a que se nega provimento.” (STF; 2ª Turma; AgR Recl. 10406/GO; Min. Rel. Gilmar Mendes; D.J. 26/08/2014). g.n.

         Dessa maneira, conforme entendimento esposado pelo E. STF, não há usurpação da competência da Corte Constitucional Federal quando os Tribunais de Justiça locais, no exercício de sua competência prevista no art. 125, §2° da CF/88, verificam a compatibilidade de leis municipais com normas constitucionais estaduais que fazem remissão às disposições da Carta Magna de 1988.

III- DA INVASÃO DA COMPETÊNCIA LEGISLATIVA CONCORRENTE DA UNIÃO E DOS ESTADOS MEMBROS

Em consonância com o inc. V do art. 24 da Constituição Federal, a competência para legislar sobre produção e consumo é concorrente da União, dos Estados-membros e do Distrito Federal.

A fim de regulamentar a fabricação, o comércio e o uso de artigos pirotécnicos, foram editados o Decreto-lei n° 4.238, de 08 de abril de 1942, a Lei Federal n° 6.429, de 05 de julho de 1977, e o Decreto Federal n° 3.665, de 20 de novembro de 2000.

Assim, o legislador federal, a quem compete estabelecer normas gerais sobre a matéria, regulamentou a fabricação, o comércio e o uso de artigos pirotécnicos, classificando-os em classes “A”, “B”, “C” e “D”, conforme a presença ou não de estampido e a quantidade de pólvora, entre outros critérios.

Ao assim dispor, o legislador federal impôs uma espécie de bloqueio legislativo ao legislador municipal, ao qual não se autoriza, nem mesmo a pretexto de legislar sobre assuntos de interesse local (artigo 30, I, da CF), vedar de forma absoluta a comercialização e o uso de artigos pirotécnicos.

Cabe ao Município, portanto, apenas suplementar as diretrizes contidas na legislação federal, nos termos dos artigos 30, I e II, da Constituição Federal, mas não proibir todo e qualquer comércio e manuseio de fogos de artifício.

A Lei n. 4.010/16 do Município de São Manuel, por sua vez, afastou-se daquelas diretrizes estabelecidas na lei federal, pois proibiu o comércio, o manuseio, a queima e a soltura de fogos de artifício e artefatos pirotécnicos, colidindo, assim, diretamente com a opção do legislador federal. Ao assim proceder, invadiu a esfera de competência legislativa da União, prevista no artigo 24, V, da Constituição Federal, violando, assim, o artigo 144 da CE/89.

IV – DA VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA LIVRE INICIATIVA E DA RAZOABILIDADE

         Ademais, o diploma legal impugnado do Município de São Miguel, ao proibir de maneira absoluta a comercialização de artefatos pirotécnicos, afrontou os princípios da razoabilidade e da livre iniciativa, este último elencado pelo constituinte de 1988 como um dos fundamentos da ordem econômica (art. 170, caput, da CF/88).

         Nesse sentido, já decidiu o E. STF em caso análogo, em que se discutiu a possibilidade de lei estadual vedar a comercialização de determinado produto em seu território, na hipótese de existir lei federal regulamentando o seu uso, verbis:

EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI PAULISTA. PROIBIÇÃO DE IMPORTAÇÃO, EXTRAÇÃO,BENEFICIAMENTO, COMERCIALIZAÇÃO, FABRICAÇÃO E INSTALAÇÃO DE PRODUTOS CONTENDO QUALQUER TIPO DE AMIANTO. GOVERNADOR DO ESTADO DE GOIÁS. LEGITIMIDADE ATIVA. INVASÃO DE COMPETÊNCIA DA UNIÃO. 1. Lei editada pelo Governo do Estado de São Paulo. Ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Governador do Estado de Goiás. Amianto crisotila. Restrições à suacomercialização imposta pela legislação paulista, com evidentes reflexos na economia de Goiás, Estado onde está localizada a maior reserva natural do minério. Legitimidade ativa do Governador de Goiás para iniciar o processo de controle concentrado de constitucionalidade e pertinência temática. 2. Comercialização e extração de amianto. Vedação prevista na legislação do Estado de São Paulo. Comércio exterior, minas e recursos minerais. Legislação. Matéria de competência da União (CF, artigo 22, VIII e XIII). Invasão de competência legislativa pelo Estado-membro. Inconstitucionalidade. 3. Produção e consumo de produtos que utilizam amianto crisotila. Competência concorrente dos entes federados. Existência de norma federal em vigor a regulamentar o tema (Lei 9055/95). Conseqüência. Vício formal da lei paulista, por ser apenas de natureza supletiva (CF, artigo 24, §§ 1º e 4º) a competência estadual para editar normas gerais sobre a matéria. 4. Proteção e defesa da saúde pública e meio ambiente. Questão de interesse nacional. Legitimidade da regulamentação geral fixada no âmbito federal. Ausência de justificativa para tratamento particular e diferenciado pelo Estado de São Paulo. 5. Rotulagem com informações preventivas a respeito dos produtos que contenham amianto. Competência da União para legislar sobre comércio interestadual (CF, artigo 22, VIII). Extrapolação da competência concorrente prevista no inciso V do artigo 24 da Carta da República, por haver norma federal regulando a questão.” (STF; Pleno; ADI 2656/SP; Min. Rel. Maurício Corrêa; D.J. 08-05-03).

         Como se não bastasse, a lei impugnada não se mostra razoável, porquanto existem outros meios - menos gravosos ao princípio da livre iniciativa e aos direitos dos consumidores de fogos de artifício - de evitar os danos à coletividade e ao meio ambiente em geral ocasionados pelo uso de artigos pirotécnicos. Vide a previsão de limitações quanto ao horário e ao local da queima e soltura dos fogos de artifício, conforme a potência dos mesmos.

         De fato, a razoabilidade serve como parâmetro no controle da legitimidade substancial dos atos normativos, requerente de compatibilidade aos conceitos de racionalidade, justiça, bom senso, proporcionalidade etc, interditando discriminações injustificáveis e, por isso, desarrazoadas.

V – PEDIDO

Diante do exposto, requer-se o recebimento e o processamento da presente ação, para que ao final seja julgada procedente, declarando a inconstitucionalidade da Lei n° 4.010, de 20 de outubro de 2016, do Município de São Manuel.

Requer-se, ainda, sejam requisitadas informações ao Prefeito Municipal de São Manuel, bem como, em seguida, citado o Procurador-Geral do Estado para manifestar-se sobre o ato normativo impugnado, e, posteriormente, aguarda-se vista para fins de manifestação final.

Termos em que, pede deferimento.

                   São Paulo, 18 de julho de 2017.

 

 

Gianpaolo Poggio Smanio

Procurador-Geral de Justiça

ef/ts

 


Protocolado n. 168.059/2016

Interessado: Promotoria de Justiça de São Manuel

Assunto: inconstitucionalidade da Lei n° 4.010, 20 de outubro de 2016, do Município de São Manuel

 

 

 

1.     Distribua-se a petição inicial da ação direta de inconstitucionalidade, em face da Lei n° 4.010, de 20 de outubro de 2016, do Município de São Manuel, junto ao Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

 

2.     Oficie-se aos interessados, informando-lhes a propositura da ação, com cópia da petição inicial.

 

 

                    São Paulo, 18 de julho de 2017.

 

 

Gianpaolo Poggio Smanio

Procurador-Geral de Justiça

 

ef