Excelentíssimo Senhor Doutor Desembargador Presidente do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

 

 

Protocolado nº 119.366/2016

 

 

Constitucional. Administrativo. Ação direta de inconstitucionalidade. Lei n. 4.584, de 15 de julho de 2015, do Município de Guaratinguetá. Percepção de gratificações de função a título de vantagem pessoal de caráter provisório ou permanente. Vantagens pecuniárias contestadas em ação direta de inconstitucionalidade julgada extinta sem resolução do mérito pela revogação das leis que as instituíram pela Lei n. 4.585, de 15 de julho de 2015. Desvio de poder de ato legislativo.

1. Revogados os arts. 6º e 7º da Lei n. 2.103/89 e as Leis n. 2.182/90 e n. 2.183/90, que disciplinavam a concessão de gratificação de função aos servidores públicos, pela Lei n. 4.585, de 15 de julho de 2015, do Município de Guaratinguetá, conduzindo à extinção sem resolução do mérito de ação direta de inconstitucionalidade que as impugnava, a edição da Lei n. 4.584, de 15 de julho de 2015, do Município de Guaratinguetá, assegurando a percepção desses acréscimos a título de vantagem pessoal de caráter provisório até que ocorra a implantação do novo Plano de Cargos e Salários do Funcionalismo Municipal, ou de caráter permanente se incorporadas, caracteriza desvio de poder de ato legislativo e não se compatibiliza com os princípios de impessoalidade, finalidade, interesse público, razoabilidade e moralidade (art. 111, CE/89).

2. Vantagem pessoal que não atende ao interesse público nem às exigências do serviço (art. 128, CE/89).

 

 

 

 

 

            O Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, no exercício de suas atribuições (art. 116, VI, da Lei Complementar Estadual nº 734/93; arts. 125, §2º, e 129, IV, da Constituição Federal; arts. 74, VI, e 90, III, da Constituição do Estado de São Paulo), com amparo nas informações colhidas no incluso Protocolado n. 119.366/2016, vem perante esse egrégio Tribunal de Justiça promover a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE, em face da Lei n. 4.584, de 15 de julho de 2015, do Município de Guaratinguetá, pelos fundamentos a seguir expostos.

I - O ato normativo impugnado

                   A Lei n. 4.584, de 15 de julho de 2015, do Município de Guaratinguetá (fl. 150), dispõe sobre a irredutibilidade de vencimentos dos servidores municipais, com o seguinte teor:

Art. 1º Em obediência ao art. 37, inciso XV, da Constituição Federal, que assegura a irredutibilidade de vencimentos aos servidores públicos, as gratificações de função concedidas com base na Lei nº 2.103, de 30 de outubro de 1989Lei Municipal nº 2.182, de 17 de outubro de 1990, e Lei Municipal nº 2.183, de 19 de outubro de 1990, ainda não incorporadas pelos servidores do Executivo Municipal, nos termos do artigo 89, parágrafo único, da Lei Orgânica do Município de Guaratinguetá, serão percebidas a título de vantagem pessoal de caráter provisório, até que ocorra a implantação do novo Plano de Cargos e Salários do Funcionalismo Municipal.

Parágrafo Único. As gratificações de função já incorporadas, nos termos do art. 89, parágrafo único, da Lei Orgânica Municipal, serão percebidas a título de vantagem pessoal de caráter permanente.

Art. 2º Esta Lei entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.

                   As vantagens pecuniárias referidas nessa lei eram objeto de impugnação em ação direta de inconstitucionalidade movida em face dos artigos 6º e 7º da Lei nº 2.103, de 30 de outubro de 1989, da Lei nº 2.182, de 17 de outubro de 1990, e da Lei nº 2.183, de 19 de outubro de 1990, por sua incompatibilidade com os arts. 111 e 128 da Constituição do Estado de São Paulo.

                   Para melhor compreensão do assunto, transcrevo a ementa da respectiva petição inicial:

Constitucional. Administrativo. Ação direta de inconstitucionalidade. artigos 6º e 7º da Lei nº 2.103, de 30 de outubro de 1989, Lei nº 2.182, de 17 de outubro de 1990 e Lei nº 2.183, de 19 de outubro de 1990, todas do Município de Guaratinguetá. gratificação. violação aos princípios da legalidade, moralidade, impessoalidade, razoabilidade. 1 – A concessão de gratificação a servidores públicos, sem critérios objetivos, determinados ou que considera como critério objetivo atributo intrínseco ao exercício de qualquer função pública, viola os princípios da legalidade, moralidade, impessoalidade, razoabilidade, interesse público. 2 - Fixação do quantum da gratificação, constante em norma revogada, cujo percentual era livre e subjetivamente escolhido, possibilitando escolha aleatória, subjetiva, pessoal e diferenciada dos percentuais de gratificação, agravada com ofensa à legalidade, à moralidade, à impessoalidade e ao interesse público. 3. Impossibilidade de invocação do princípio da irredutibilidade dos vencimentos dos servidores públicos ou do direito adquirido, os quais não socorrem a percepção de verbas contrárias aos princípios constitucionais da legalidade, moralidade e razoabilidade. 4 - Constituição Estadual: artigos111 e 128” (ADI 2161042-39.2014.8.26.0000).

                   Segundo a mensagem do Chefe do Poder Executivo ao submeter à Câmara Municipal de Guaratinguetá o projeto de lei respectivo a intenção era assegurar a irredutibilidade remuneratória dos servidores públicos em razão do ajuizamento da ação direta de inconstitucionalidade.

                   Por essa razão, a ação direta de inconstitucionalidade, todavia, não teve seu mérito apreciado porque foi editada em 15 de julho de 2015 a Lei n. 4.585 (fl. 151) com o seguinte teor:

Art. 1º Ficam revogados os artigos 6º e 7º da Lei Municipal nº 2.103, de 30 de outubro de 1989, bem como a Lei Municipal nº 2.182, de 17 de outubro de 1990 e a Lei Municipal nº 2.183, de 19 de outubro de 1990, que disciplinam a concessão de gratificação de função aos servidores municipais da Administração Direta e Indireta.

Art. 2º Esta Lei entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.

                   Na justificativa o Prefeito Municipal observa que a perda do objeto da ação direta era medida “mais salutar ao funcionalismo municipal” para evitar o julgamento da ação direta de inconstitucionalidade.

                   Realmente, promovida a juntada de exemplar da Lei n. 4.585/15 em referido processo pelo Município de Guaratinguetá, o colendo Órgão Especial, em 23 de setembro de 2015, julgou extinta a ação sem resolução do mérito exatamente pour cause da revogação das leis impugnadas, ignorando, todavia, a existência da Lei n. 4.584/15.

II – O PARÂMETRO DA FISCALIZAÇÃO ABSTRATA DE CONSTITUCIONALIDADE

                   A Lei n. 4.584, de 15 de julho de 2015, do Município de Guaratinguetá, contraria frontalmente a Constituição do Estado de São Paulo, à qual está subordinada a produção normativa municipal ante a previsão dos arts. 1º, 18, 29 e 31 da Constituição Federal.

                   Ela é incompatível com os seguintes preceitos da Constituição Estadual, aplicáveis aos Municípios por força de seu art. 144, e que assim estabelecem:

Art. 111. A administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes do Estado, obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, razoabilidade, finalidade, motivação, interesse público e eficiência.

(...)

Art. 128 – As vantagens de qualquer natureza só poderão ser instituídas por lei e quando atendam efetivamente ao interesse público e às exigências do serviço.

                  A contextura circundante à edição da lei impugnada revela sensível agravo aos princípios de moralidade, interesse público, impessoalidade e finalidade, adotados no art. 111 da Constituição do Estado de São Paulo em harmonia com o art. 37 da Constituição da República.

                   Verifica-se, in casu, inequívoco desvio de poder de legislar, pois, escopo da lei impugnada foi dar nova roupagem (ou denominação) a vantagens pecuniárias ilegitimamente outorgadas e se somar ao concerto engendrado para impedir o exercício da jurisdição constitucional.

                   Com efeito, embora revogadas as leis impugnadas pela Lei n. 4.585/15, a continuidade do pagamento das vantagens persistiu com a edição da Lei n. 4.584/15 que lhe antecede, na conformidade do exposto.

                   O legislador municipal não cessou o estado de inconstitucionalidade, tendo apenas utilizado mecanismo sutil para conservar, a qualquer título, o conteúdo das leis revogadas e o pagamento das vantagens nela instituídas.

                   Observe-se, a propósito, que o motivo de prestígio à irredutibilidade remuneratória não é idôneo porque não há espaço para a irredutibilidade decorrente da fixação ilegítima da remuneração (STF, MS 23.996-DF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Ellen Gracie, 18-03-2002, v.u., DJ 12-04-2002, p. 55). Ou seja, direitos não se adquirem em situação contrária à Constituição. Neste sentido, enuncia aresto da Suprema Corte:

“RECURSO EXTRAORDINÁRIO - CARGOS DE ASSISTENTE JURÍDICO E DE PROCURADOR DO ESTADO DO PARÁ - INEXISTÊNCIA DE RELAÇÃO DE PARIDADE - EQUIPARAÇÃO OU VINCULAÇÃO DE VENCIMENTOS - IMPOSSIBILIDADE - INAPLICABILIDADE DA GARANTIA DA IRREDUTIBILIDADE DE VENCIMENTOS PELA ORDEM CONSTITUCIONAL ANTERIOR - IMPOSSIBILIDADE DA INVOCAÇÃO DE DIREITO ADQUIRIDO CONTRA DISPOSIÇÃO NORMATIVA INSCRITA NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL - RECURSO EXTRAORDINÁRIO CONHECIDO E PROVIDO. - O cargo de Assistente Jurídico não possui o mesmo conteúdo ocupacional nem compreende o mesmo complexo de atividades funcionais inerentes ao cargo de Procurador do Estado, o que afasta a possibilidade jurídica de qualquer relação de paridade entre eles. - É vedada a equiparação ou a vinculação de vencimentos para efeito de remuneração de pessoal do serviço público, quer sob a égide da Carta Federal de 1969 (art. 98, parágrafo único), quer à luz da vigente Constituição de 1988 (art. 37, XIII). Precedentes. - Não há direito adquirido contra disposição normativa inscrita no texto da Constituição, eis que situações inconstitucionais, por desprovidas de validade jurídica, não podem justificar o reconhecimento de quaisquer direitos. Doutrina. Precedentes” (RTJ 209/347).

                   Patente, pois, o desvio de poder em ato normativo porque, em síntese, a finalidade perseguida pela lei não se afina a padrões como ética e lealdade nem alcança o interesse público, e visa ao atendimento de interesses de seus beneficiários e não do poder público.

                   Não é novidade alguma o controle concentrado de constitucionalidade de lei ou ato normativo por desvio de poder. A esse respeito, reporta-se a elucidativo escólio da lavra de Caio Tácito:

“No exercício de suas atribuições e nas matérias a eles afetas, os órgãos legislativos, em princípio, gozam de discricionariedade peculiar à função política que desempenham.

Temos, contudo, sustentando a necessidade de temperamento da latitude discricionária de ato do Poder Legislativo, ainda que fundado em competência constitucional e formalmente válido.

O princípio geral de Direito de que toda e qualquer competência discricionária tem como limite a observância da finalidade que lhe é própria, embora historicamente vinculado à atividade administrativa, também se compadece, a nosso ver, com a legitimidade da ação do legislador.

Tivemos, oportunidade de sustentar, perante o STF, em duas oportunidades, a nulidade de leis estaduais em que, no término de governos vencidos nas urnas, eram criados cargos públicos em número excessivo, não reclamados pela necessidade pública, e comprometendo gravemente as finanças do Estado, tão-somente para o aproveitamento de correligionários ou de seus familiares.

Para o desfazimento dessas leis, que caracterizavam os chamados ‘testamentos políticos’, o STF consagrou a tese da validade de novas leis que, anulando leis inconstitucionais, reconheciam o abuso pelos Poderes Legislativos estaduais da competência, em princípio discricionária, da criação de cargos públicos.

O primeiro acórdão, proferido no MS 7.243, em sessão de 20.1.69, manteve a anulação de leis do Estado do Ceará com as quais, no apagar das luzes de uma situação política derrotada, em apenas 56 dias, mediante 25 atos legislativos foram instituídos, sob a forma de criação ou transformação, 3.784 novos cargos públicos, o que equivalia a um-terço do total do funcionalismo estadual então existente, estimado em 12.000 servidores, elevando o custo mensal do pessoal a 94,24% das rendas do Estado.

Por essa forma, violava-se norma expressa da Constituição estadual, que fixava o teto de 50% para a vinculação da receita ao custeio do funcionalismo público, e se objetivava impedir o funcionamento regular do Poder Executivo, no período do novo mandato que se ia inaugurar.

Em comentário a essa decisão, que firmou precedente memorável, destacávamos a importância da tese por ela abonada:

‘A competência legislativa para criar cargos públicos visa ao interesse coletivo de eficiência e continuidade da administração. Sendo, em sua essência, uma faculdade discricionária, está, no entanto, vinculada à finalidade, que lhe é própria, não podendo ser exercida contra a conveniência geral da coletividade, com o propósito manifesto de favorecer determinado grupo político, ou tornar ingovernável o Estado, cuja administração passa, pelo voto popular, às mãos adversárias.

‘Tal abandono ostensivo do fim a que se destina a atribuição constitucional configura autêntico desvio de poder (détournement de pouvoir), colocando-se a competência legislativa a serviço de interesses partidários, em detrimento do legítimo interesse público’ (RDA 59/347 e 348).

A mesma situação se renovou, no Estado do Rio Grande do Norte, perante outro testamento político de um governo vencido no pleito eleitoral sucessório, em que se comprometia desmedidamente o erário, elevando a mais de 80% a despesa com o funcionalismo público.

Em decisão proferida na Repr. 512, julgada, por unanimidade, pelo Tribunal Pleno, em sessão de 7.12.62, o STF reputou legítima a anulação, pela Assembléia Legislativa, de leis inconstitucionais que compunham o testamento político em causa.

Em memorial oferecido como advogado do novo governo estadual, ponderávamos que ‘o desvio de poder legislativo, caracterizado no inventário político, ofende o princípio da independência e harmonia dos Poderes, além de violar a Constituição estadual’.

Em acórdãos posteriores os RE 48.655 e 50.219 (RDA 78/269 e 281), aplicando a orientação firmada, a Corte Suprema reafirmou a tese da anulação, pelo Poder Legislativo, de seus próprios atos inconstitucionais.

A acolhida do cabimento do desvio de finalidade como vício de inconstitucionalidade fora anteriormente abonada em outro julgado do STF em voto do Min. Orozimbo Nonato, relator do RE 18.331, que, nos termos da respectiva ementa, após recordar o conhecido axioma de que o poder de taxar não se pode extremar como poder destruir, destaca: ‘É um poder cujo exercício não deve ir até o abuso, o excesso, o desvio, sendo aplicável, ainda que, a doutrina fecunda do détournement de pouvoir’ (RF 145/146).

O excesso do poder de taxar foi igualmente repelido com respeito à lei do Estado do Rio de Janeiro que exigia taxa judiciária em termos excessivos, sem correspondência com o serviço prestado (Repr. 1.077, RTJ 11/55).

Comentando o sentido inovador da jurisprudência do Pretório Excelso, registra Seabra Fagundes, entre as fecundas criações pretorianas, ‘a extensão da teoria do desvio de poder originária e essencialmente dirigida aos procedimentos dos órgãos executivos, aos atos do poder legiferante, de maior importância num sistema de Constituição rígida, em que se comete ao Congresso a complementação do pensamento constitucional nos mais variados setores da vida social, econômica e financeira’ (RF 151/549).

Em decisão de 31.8.67, no RMS 16.912, o tema do desvio de poder como vício especial do ato legislativo foi expressamente invocado.

Apreciando lei de organização judiciária na qual se inseria emenda em benefício de determinado serventuário, advertiu o Min. Prado Kelly: ‘tratava-se de reforma judiciária e a emenda representou um desvio de poder na própria legislatura’. Sendo o mesmo Ministro as seguintes expressões: ‘Tenho por demonstrado que a emenda não obedeceu ao presumido escopo de interesse público e sim a uma inspiração que nem por ser equânime ou reparadora (como pareceu ao interveniente) deixa de ser particularista ou de favorecimento pessoal’.

Nessa decisão plenária, o Min. Victor Nunes Leal, após aderir à posição ‘de que podemos exercer controle sobre os desvios de poder da própria legislatura’, convocado por interpelação do Min. Aliomar Baleeiro a declarar ‘se admitia um desvio de poder do Poder Legislativo fora do caso de inconstitucionalidade’, não vacilou em afirmar categoricamente: ‘Admito’ (acórdão no RMS 16.912, RTJ 45/530-545, especialmente pp. 536 e 537).

Em questão relativa à permissão para explorar linhas de ônibus, o STF apreciou a incidência do desvio de poder legislativo, admitindo, em tese, a aplicação do princípio (RTJ 47/650 e 48/165).

Em três situações o STF repeliu, por inconstitucionalidade, a aplicação de sanções administrativas com a finalidade real de constranger o contribuinte à regularidade fiscal.

Decidiu a Corte Suprema que ‘é inadmissível a interdição de estabelecimento ou apreensão de mercadorias como meio coercitivo para a cobrança de tributo’ (Súmulas 70 e 323).

E, dilatando o princípio à inconstitucionalidade dos Decs.- leis 5 e 42, de 1937 – que restringiam indiretamente a atividade comercial de empresas em débito, impedindo-as de comprar selos ou despachar mercadoria – implicitamente configurou o abuso de poder legislativo (Súmula 547 e acórdão no RE 63.026, RDA 10/209).

O excesso legislativo foi invocado em acórdão do STF no RE 62.731, do qual foi Relator o Min. Aliomar Baleeiro. Afirmou-se a inconstitucionalidade de decreto-lei que vedava a purgação de mora em locações. Destacou a ementa da decisão a impertinência do fundamento por se tratar de ‘assunto miúdo de Direito Privado’ que não se incluía no conceito de segurança nacional, necessário àquela forma de processo legislativo (RDA 94/169).

O poder de polícia nas profissões somente pode ser exercido com observância do princípio da razoabilidade, afirmou o acórdão na Repr. 930 (apud Gilmar Ferreira Mendes, ob. cit., p. 451).

E porque o impedimento do exercício profissional da advocacia há juizes aposentados até dois anos após a inatividade ofendia o princípio da razoabilidade, foi declarada a inconstitucionalidade da lei que estabelecia tal interdição temporária, por violação àquele princípio (Repr. 1.054, RTJ 112/7).

Em parecer no qual analisamos a inconstitucionalidade de deliberação do Banco Central do Brasil determinante da indisponibilidade de contas bancárias do Estado – membro a suas empresas, enfatizávamos que ‘importa desvio do Poder Legislativo decreto lei que se utilize do bloqueio de contas bancárias como meio de cobrança regressiva de aval a empréstimos externos’ (RDA 172/239).

Em outro parecer relativo à validade da lei municipal que subordinava a permissão de funcionamento de estabelecimentos comerciais aos sábados e domingos à prévia aprovação pelos órgãos sindicais, entendíamos ocorrer violação da competência legal, a ser exercida pelo Município, como emanação do poder de polícia.

Ressaltamos que, obrigando à intervenção dos sindicatos para a obtenção de licença especial de funcionamento, o legislador teve em mira o fortalecimento do sistema sindical, invadindo órbita de competência privativa da União.

Concluímos, assim, que, ‘a toda evidencia, a lei municipal, visando, a beneficiar o movimento sindical está maculada pelo vício de abuso do poder normativo, caracterizado como desvio de finalidade’ (RDA 164/460).

O tema do desvio de poder legislativo foi amplamente estudado, no Direito italiano, por Lívio Paladin, em ensaio sob o título ‘Osservazioni sulla discrezionalità e sull’eccesso di potere del legislatore ordinario’ (Rivista Trimestrale di Diritto Pubblico, ano VI, 4/993-1.046, outubro – dezembro/56).

Pondera o autor que: ‘L’illegitimità di ogni fine, diverso da quello costituzionalmente previsto, consente logicametne di configurare, sul piano legisltaivo, qual vizio della causa degli atti amministrativi, ch è l’ecesso di potere’ (‘A ilegitimidade de todo fim, diverso daquele constitucionalmente previsto, conduz logicamente afigurar-se, no plano legislativo, aquele vício de causa dos atos administrativos, que é o excesso de poder’) (Rivista cit. p. 1.031).

A figura do desvio de poder legislativo foi, pioneiramente, sustentada por Santi Romano, que, reconhecendo o poder discricionário do legislador, destaca, porém, o limite que se impõe em face da finalidade da competência legislativa: ‘ma la figura dele potere discrezionale richiede per l’appunto che di esse si faccia uso conforme alle finalità da cui il potere medismo deriva; si há altrimenti uno sviamento di potere, che costituisse uma violazione di direitto, nel senso più próprio della parola. Son concetti questi di commune applicazione riguado alle compentenza degli oragnia amministrativi e non si saprebbe indicarei l pechè non possono riferirsi, nella loro generalità, al Parlamento. In certi campoi della sua funzione legislativa, questo non há poteri sconfinati, ma poteri discricionali, il che vuol dire litate, e non altro, dall’obbligo di fare uso per dati motivi’ (‘mas a figura do poder discricionário reclama precisamente que dele se faça uso conforme à finalidade, da qual o próprio poder deriva: há de outra forma um desvio de poder que constitui uma violação de direito no sentido próprio da palavra. São conceitos estes de aplicação comum no que se refere à competência dos órgãos administrativos, e não se saberá indicar por que não parecem se referir em sua generalidade, ao Parlamento. Em certos campos de sua competência legislativa, este não possui poderes sem fronteiras, mas poderes discricionários, importa dizer, limitados pelo menos da obrigação de fazer uso por motivos determinados’) (‘Osservazioni preliminari per uma teoria sui limite della funzione legislativa nel Diritto Pubblico’, 1902, e incluído na coletânea Scriti Minori – Diritto Costituzionale, v. I/199, 1950).

Não é outro o pensamento de Costantino Mortati quando adverte que ‘a lei poderá estar viciada de inconstitucionalidade não somente quando o interesse perseguido contrasta com aquele imposto pela Constituição, mas também nos casos em que o próprio teor da lei está em absoluta incongruência com a norma editada e o fim do interesse público a ser perseguido e o próprio legislador afirma pretender perseguir. Verifica-se, nessa ultima hipótese, uma modalidade de vício de legitimidade assimilável ao excesso de poder administrativo’ (‘la legge può risultare viziata per incostituzionalità non solo quando l’interesse perseguito contrasta com quelllo imposto dalla Costituzione, ma anche nei casi in cui dallo stesso tenore della legge risulti un’assouta incongruenza fra la norma dettata ed il fine di pubblico interesse che si doveva perseguire e che lo stesso legislatore assume di volere perseguire. Si verificherebbe in quest’ultima ipotese un’ipotesi di vizio della legittimità assimilabile a quello dell’eccesso di potere amministrativo’) (verbete ‘Discricionalità’, Novissimo Digesto Italiano, v. V/1.09).

Entendemos, em suma, que a validade da norma de lei, ato emanado do Legislativo, igualmente se vincula à observância da finalidade contida na norma constitucional que fundamenta o poder de legislar.

O abuso de poder legislativo, quando excepcionalmente caracterizado, pelo exame dos motivos, é vício especial de inconstitucionalidade da lei, pelo divórcio entre o endereço real da norma atributiva da competência e o uso ilícito que a coloca a serviço de interesse incompatível com a sua legitima destinação.

Gilmar Ferreira Mendes dedicou capítulo especial de sua monografia sobre controle de constitucionalidade à avaliação do excesso de poder legislativo como vício substancial de inconstitucionalidade. Com apoio na doutrina alemã e na lição de Canotilho, evidencia a prevalência da vinculação do ato legislativo a uma finalidade e à aplicação do princípio da proporcionalidade como elemento da legitimidade constitucional das leis. Oferece, como exemplos, precedentes colhidos na jurisprudência do STF (Controle de Constitucionalidade, Saraiva, 1990, pp. 38-54).

Canotilho adverte que a lei é vinculada ao fim constitucionalmente fixado e ao princípio de razoabilidade a fundamentar ‘a transferência para os domínios da atividade legislativa da figura do desvio de poder dos atos administrativos’ (Direito Constitucional, 4ª ed., 1986, p. 739)”.

                   E, mais amplamente, o mesmo autor estuda o desvio de poder legislativo diante do princípio de que “as leis estão todas positivamente vinculadas quanto a fim pela Constituição” (Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador, Coimbra, 1982, p. 259)’. (Caio Tácito. “Desvio de Poder no Controle dos Atos Administrativos, Legislativos e Jurisdicionais”, in Revista Trimestral de Direito Público, n. 04, São Paulo: Malheiros, 1993, pp. 33-37).

                   Há, também, vulneração do princípio de razoabilidade, igualmente indicado no art. 111 da Constituição Estadual.

                   Não é ocioso obtemperar que a razoabilidade é critério de aferição da constitucionalidade de leis e atos normativos como sumula a jurisprudência:

“(...) TODOS OS ATOS EMANADOS DO PODER PÚBLICO ESTÃO NECESSARIAMENTE SUJEITOS, PARA EFEITO DE SUA VALIDADE MATERIAL, À INDECLINÁVEL OBSERVÂNCIA DE PADRÕES MÍNIMOS DE RAZOABILIDADE. - As normas legais devem observar, no processo de sua formulação, critérios de razoabilidade que guardem estrita consonância com os padrões fundados no princípio da proporcionalidade, pois todos os atos emanados do Poder Público devem ajustar-se à cláusula que consagra, em sua dimensão material, o princípio do ‘substantive due process of law’. Lei Distrital que, no caso, não observa padrões mínimos de razoabilidade. A EXIGÊNCIA DE RAZOABILIDADE QUALIFICA-SE COMO PARÂMETRO DE AFERIÇÃO DA CONSTITUCIONALIDADE MATERIAL DOS ATOS ESTATAIS. - A exigência de razoabilidade - que visa a inibir e a neutralizar eventuais abusos do Poder Público, notadamente no desempenho de suas funções normativas - atua, enquanto categoria fundamental de limitação dos excessos emanados do Estado, como verdadeiro parâmetro de aferição da constitucionalidade material dos atos estatais. (...)” (STF, ADI-MC 2.667-DF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, 19-06-2002, v.u., DJ 12-03-2004, p. 36).

“(...) SUBSTANTIVE DUE PROCESS OF LAW E FUNÇÃO LEGISLATIVA: A cláusula do devido processo legal - objeto de expressa proclamação pelo art. 5º, LIV, da Constituição - deve ser entendida, na abrangência de sua noção conceitual, não só sob o aspecto meramente formal, que impõe restrições de caráter ritual à atuação do Poder Público, mas, sobretudo, em sua dimensão material, que atua como decisivo obstáculo à edição de atos legislativos de conteúdo arbitrário. A essência do substantive due process of law reside na necessidade de proteger os direitos e as liberdades das pessoas contra qualquer modalidade de legislação que se revele opressiva ou destituída do necessário coeficiente de razoabilidade. Isso significa, dentro da perspectiva da extensão da teoria do desvio de poder ao plano das atividades legislativas do Estado, que este não dispõe da competência para legislar ilimitadamente, de forma imoderada e irresponsável, gerando, com o seu comportamento institucional, situações normativas de absoluta distorção e, até mesmo, de subversão dos fins que regem o desempenho da função estatal. O magistério doutrinário de CAIO TÁCITO. Observância, pelas normas legais impugnadas, da cláusula constitucional do substantive due process of law. (...)” (RTJ 178/22).

                   Por força desse princípio é necessário que a norma passe pelo denominado “teste” de razoabilidade, ou seja, que ela seja: (a) necessária (a partir da perspectiva dos anseios da Administração Pública); (b) adequada (considerando os fins públicos que com a norma se pretende alcançar); e (c) proporcional em sentido estrito (que as restrições, imposições ou ônus dela decorrentes não sejam excessivos ou incompatíveis com os resultados a alcançar).

                   Nessa análise pormenorizada, infere-se que a vantagem pessoal não passa por nenhum dos critérios do teste de razoabilidade: (a) não atende a nenhuma necessidade da Administração Pública, vindo em benefício exclusivamente da conveniência dos servidores públicos beneficiados por essa vantagem pecuniária; (b) é, por consequência, inadequada na perspectiva do interesse público; (c) é desproporcional em sentido estrito, pois cria ônus financeiros que naturalmente se mostram excessivos e inadmissíveis, tendo em vista que não acarretarão benefício algum para a Administração Pública.

                   Além disso, a Lei n. 4.584/15 em si mesma considerada é materialmente incompatível com o art. 128 da Constituição Estadual.

                   Não há qualquer motivo de interesse público ou de atendimento às exigências do serviço na instituição da vantagem pecuniária em foco, considerando sua origem comprometida ab ovo (e que repousa nas leis impugnadas outrora) e a inconsistência da irredutibilidade remuneratória.

                   Se a finalidade da vantagem instituída pela lei impugnada é a conservação oblíqua de gratificações inconstitucionalmente instituídas ela discrepa do art. 128 da Constituição Estadual.

                   Não se afinam aos requisitos constitucionais do interesse público e das exigências do serviço dispêndios públicos sem causa, pois, como observa Wellington Pacheco Barros:

“Comungo com o pensamento político moderno de que uma das causas do inchaço da despesa pública é a remuneração com pessoal, que não raramente inviabiliza a tomada de decisões do agente político sobre investimentos de obras públicas de caráter benéfico à população. E uma das causas da despesa pública com pessoal é a atribuição indiscriminada pelo legislador de vantagens pecuniárias a servidor público sem que haja uma contraprestação de serviço e, o que é pior, com o rótulo de permanente e de efeito incorporador ao vencimento, elitizando a administração de existência de remunerações desproporcionais entre o maior e o menor vencimento de um cargo público” (O município e seus agentes, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p. 128).

                   Vale lembrar o ensinamento de Hely Lopes Meirelles criticando a excessiva liberalidade da Administração Pública na concessão de vantagens pecuniárias “anômalas”, sem qualquer razão de interesse público:

“Além dessas vantagens, que encontram justificativa em fatos ou situações de interesse administrativo, por relacionadas direta ou indiretamente com a prestação do serviço ou com a situação do servidor, as Administrações têm concedido vantagens anômalas, que refogem completamente dos princípios jurídicos e da orientação técnica que devem nortear a retribuição do servidor. Essas vantagens anômalas não se enquadram quer como adicionais, quer como gratificações, pois não têm natureza administrativa de nenhum destes acréscimos estipendiários, apresentando-se como liberalidades ilegítimas que o legislador faz à custa do erário, com o só propósito de cortejar o servidor público” (Direito Administrativo Brasileiro, São Paulo: Malheiros, 2008, 34ª ed., p. 495).

                   Não se deve olvidar ainda neste concerto clássica admoestação salientando que:

“a imoralidade salta aos olhos quando a Administração Pública é pródiga em despesas legais, porém inúteis, como propaganda ou mordomia, quando a população precisa de assistência médica, alimentação, moradia, segurança, educação” (Maria Sylvia Zanella Di Pietro. Discricionariedade administrativa na Constituição de 1988, São Paulo: Atlas, 1991, p. 111).

                   Não se vislumbra interesse público nem socorro às exigências do serviço na instituição da gratificação que não tem qualquer causa jurídica hígida e significa autêntica liberalidade com o dinheiro público. Ora, não há na vantagem outorgada pelas leis impugnadas qualquer causa razoável a justificar sua instituição.

                   Vantagens pecuniárias são acréscimos permanentes ou efêmeros ao vencimento dos servidores públicos, compreendendo adicionais e gratificações, e que não se confundem com a remuneração básica dos servidores públicos, pois, colimam recompensar o tempo de serviço ou a execução de serviço comum em condição anormal ou retribuir o desempenho de atribuições especiais ou condições inerentes ao cargo, as condições pessoais ou situações onerosas do servidor, como se extrai da literatura especializada (Hely Lopes Meirelles. Direito Administrativo Brasileiro, São Paulo: Malheiros, 2001, 26ª ed., p. 449; Diógenes Gasparini. Direito Administrativo, São Paulo: Saraiva, 2008, 13ª ed., p. 233; Marçal Justen Filho. Curso de Direito Administrativo, São Paulo: Saraiva, 2008, 3ª ed., p. 760) que, ademais, contém lúcida advertência:

“as vantagens pecuniárias, sejam adicionais, sejam gratificações, não são meios para majorar a remuneração dos servidores, nem são meras liberalidades da Administração Pública. São acréscimos remuneratórios que se justificam nos fatos e situações de interesse da Administração Pública” (Diógenes Gasparini. Direito Administrativo, São Paulo: Saraiva, 2008, 13ª ed., p. 233).

 

III – DO PEDIDO LIMINAR

                        À saciedade demonstrado o fumus boni iuris, pela ponderabilidade do direito alegado, soma-se a ele o periculum in mora. A atual tessitura da legislação contestada, apontada como violadora de princípios e regras da Constituição do Estado de São Paulo, é sinal, de per si, para suspensão de sua eficácia até final julgamento desta ação, evitando-se atuação desconforme com o ordenamento jurídico, criadora de lesão irreparável ou de difícil reparação, sobretudo pelo agravo ao erário.

                   À luz desta contextura, requer a concessão de liminar para suspensão da eficácia, até final e definitivo julgamento desta ação, da Lei n. 4.584, de 15 de julho de 2015, do Município de Guaratinguetá.

IV - PEDIDO

                   Face ao exposto, requer-se o recebimento e processamento da presente ação, para que ao final seja julgada procedente, declarando a inconstitucionalidade da Lei n. 4.584, de 15 de julho de 2015, do Município de Guaratinguetá.

                   Requer-se, ainda, sejam requisitadas informações à Câmara Municipal e à Prefeitura Municipal de Guaratinguetá, bem como, em seguida, citado o Procurador-Geral do Estado para manifestar-se sobre o ato normativo impugnado, e, posteriormente, aguarda-se vista para fins de manifestação final.

         Termos em que, pede deferimento.

São Paulo, 25 de outubro de 2016.

 

 

Gianpaolo Poggio Smanio

Procurador-Geral de Justiça

 

wpmj

                                                                                                                            

 

 

 

 

 

 

Protocolado nº 119.366/2016

Interessado: Doutor José Benedito Moreira – Promotor de Justiça de Guaratinguetá

Objeto: representação para controle de constitucionalidade da Lei n. 4.584, de 15 de julho de 2015, do Município de Guaratinguetá

 

        

 

 

 

 

 

 

 

1.     Distribua-se a petição inicial da ação direta de inconstitucionalidade em face da Lei n. 4.584, de 15 de julho de 2015, do Município de Guaratinguetá, no egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, instruída com o protocolado em epígrafe mencionado.

2.     Oficie-se ao interessado, informando-lhe a propositura da ação, com cópia da petição inicial.

 

                            São Paulo, 25 de outubro de 2016.

 

 

Gianpaolo Poggio Smanio

Procurador-Geral de Justiça

 

wpmj