Excelentíssimo Senhor Doutor Desembargador Presidente
do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo
Protocolado
n. 141.401/16
Constitucional.
Administrativo. Previdenciário. Ação Direta de Inconstitucionalidade. Lei n.
1.739, de 25 de maio de 2010, do Município de Alto Alegre. Custeio do pagamento
de despesas médicas, hospitalares e outras decorrentes de tratamentos
necessários à recuperação da saúde de agentes políticos e demais servidores por
traumas decorrentes de acidentes no período de trabalho ou a serviço do
Município. Ofensa aos princípios de moralidade, razoabilidade, proporcionalidade,
finalidade, interesse público, e igualdade. Desvio de poder de ato legislativo.
Ausência de fonte de custeio equitativa e contributiva. Discrepância com o
Sistema Único de Saúde.
1. Lei n. 1.739, de 25 de maio de 2010, do Município de Alto Alegre, que, com efeito retroativo, autoriza o Poder Executivo ao custeio de despesas médico-hospitalares de agentes políticos e demais servidores decorrentes de lesões ocasionadas durante atividades a serviço do Município.
2. Iniciativa legislativa deflagrada pelo Prefeito Municipal, beneficiário do pagamento, que tisna o processo legislativo de desvio de poder. Lei com sensível agravo aos princípios de moralidade, impessoalidade, interesse público, razoabilidade e finalidade, ao conceder benefício previdenciário à custa do erário e que não goza a população, constituindo vantagem de natureza indenizatória que não atende efetivamente o interesse público e às exigências do serviço porque não bastasse a gratuidade do serviço público de saúde, integral e universal, empregados públicos gozam de proteção acidentária nos termos do art. 201, CF/88 (arts. 111 e 128, CE/89).
3. Dispensa de tratamento mais vantajoso a agentes políticos e empregados públicos municipais no tocante às ações e serviços de saúde do sistema público, violando a isonomia (arts. 144, 218, e 219, par. único, 2, CE/89).
4. Vedação da instituição pelos Municípios de serviço público de saúde à margem do SUS ou de serviço privado de saúde ou restrito a certas pessoas com financiamento oriundo do próprio erário, e que não compreende o reembolso de despesas com tratamento de saúde (arts. 144 e 222, caput, CE/89).
5. Benefício previdenciário financiado exclusivamente pelo erário, contrariando os parâmetros normativos exigentes de criação de benefício da seguridade social com a correspondente fonte de custeio total, equidade na forma de participação no custeio e financiamento dos serviços de saúde com recursos da seguridade social captados de forma equitativa e contributiva (arts. 144 e 218, CE/89).
O
Procurador-Geral
de Justiça do Estado de São Paulo, no exercício da atribuição
prevista no art. 116, VI, da Lei Complementar Estadual n. 734, de 26 de
novembro de 1993 (Lei Orgânica do Ministério Público de São Paulo), em
conformidade com o disposto nos arts. 125, § 2º, e 129, IV, da Constituição
Federal, e, ainda, nos arts. 74, VI, e 90, III, da Constituição do Estado de
São Paulo, com amparo nas informações colhidas no incluso protocolado, vem,
respeitosamente, perante esse Egrégio Tribunal de Justiça, promover a presente AÇÃO
DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE em face da Lei n. 1.739, de 25 de
maio de 2010, do Município de Alto Alegre, pelos fundamentos a seguir expostos:
I – O ATO NORMATIVO
IMPUGNADO
A Lei n. 1.739, de 25 de maio de 2010,
do Município de Alto Alegre, autoriza o Poder Executivo ao custeio de despesas
médico-hospitalares de agentes políticos e demais servidores decorrentes de
lesões ocasionadas durante atividades a serviço do Município (fls. 13/14,
33/34). Eis sua redação:
Art. 1º - Fica o Executivo Municipal de Alto Alegre autorizado a custear o pagamento de despesas médicas, hospitalares e outras decorrentes de tratamentos necessários para a recuperação da saúde de agentes políticos e demais servidores que porventura sofram traumas decorrentes de acidentes no período de trabalho ou a serviço do município.
Parágrafo único: Deverão ser comprovadas para efeito do caput desse artigo as despesas efetuadas, necessárias ao tratamento, bem como a condição de que o agente ou servidor estava a serviço do município.
Art. 2º - Não poderão ser custeadas pelo município, nos termos da presente lei as seguintes despesas:
I – cobertas por planos de saúde particulares;
II – despendidas com familiares do agente ou servidor;
III – sem o respectivo documento fiscal comprobatório;
IV – de terceiros envolvidos.
Art. 3º - As despesas decorrentes da execução da presente Lei, independem de demonstração de culpa subjetiva ou objetiva do agente, do servidor ou da administração.
Art. 4º - As despesas decorrentes da execução da presente Lei onerarão as dotações orçamentárias constantes da unidade respectiva da lotação do agente ou servidor.
Art. 5º - Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação, retroagindo seus efeitos a 01 de janeiro de 2010, ficando a administração autorizada a regulamentar por Decreto o que se fizer necessário para sua reta aplicação legal, revogadas as disposições em contrário.
Referida
lei decorreu de projeto de lei de iniciativa do Prefeito, merecendo transcrição
o seguinte excerto da respectiva mensagem:
“Por optar o Município de Alto Alegre pelo regime Celetista, caso ocorra algum acidente durante o período de trabalho que envolva um empregado público, aqui considerado em seu sentido estrito, deverá o Poder Público arcar com as despesas oriundas do fato, bem como acionar o Instituto de Previdência Social a fim de que os direitos do empregado público sejam resguardados, bem como este seja completamente assistido no pagamento de tratamentos decorrentes do trauma eventualmente sofrido. No entanto, o mesmo amparo não é previsto pelo regime celetista para os agentes políticos, tais como prefeito, vereadores e secretários municipais que prestem seus serviços no município. Resta, portanto, até o presente momento, uma lacuna legislativa para abranger eventuais casos nesse sentido” (fl. 27).
É importante assinalar que o leit motiv da lei em foco decorreu de
infortúnio experimentado pelo próprio Chefe do Poder Executivo, como
diagnosticou o Tribunal de Contas do Estado de São Paulo em decisão que julgou
irregulares as despesas médicas de Ilson Peres Thomé, pagas com recursos do
erário de Alto Alegre no exercício de 2010 (fls. 57/62), e da qual se transcrevem
alguns trechos:
“De início, informo que este processo foi remetido pela SDG a este Auditor em face do contido na TC-A- 27525/026/07.
Conforme decisão da C.1ª Câmara, nos autos do TC-2401/026/10, que analisou as contas da Prefeitura Municipal de Alto Alegre, relativas ao exercício de 2010, transitada em julgado em 02/05/12, foi determinada a análise mais detalhada do assunto em referência em autos próprios.
A Direção da Unidade Fiscalizadora destacou a abordagem da matéria, inserida no item B.5.3.3 do laudo da fiscalização ‘in loco’ das contas de 2010 do Executivo, ou seja, objeção ao pagamento de despesas médicas do Prefeito Municipal, Sr. Ilson Peres Thomé, em decorrência de acidente de carro a serviço do município, no importe de R$ 100.434,54, autorizada pela Lei Municipal nº 1.739, de 25/05/2010.
Segundo a unidade fiscalizadora, a lei em foco descumpriu os princípios da impessoalidade e moralidade, vez que foi promulgada em data posterior ao acidente, com efeito retroativo a janeiro de 2010.
(...)
Com bem destacaram o Sr. Assessor Procurador-Chefe e o digno representante do Ministério Público de Contas, as despesas impugnadas foram autorizadas por lei municipal, cuja tramitação evidenciou ofensa os princípios constitucionais da impessoalidade e moralidade.
De fato, a retroatividade dos efeitos da Lei Municipal nº 1.739, de 25/05/10, a partir de 01/01/10, objetivaram autorizar a utilização de recursos públicos para pagamento de despesas médicas do Chefe do Executivo, decorrente de tratamento em clínicas particulares de sequelas de acidente de carro em viagem a serviço do munícipio, ocorrido em março de 2010, embora o texto legal estenda este pagamento a todos os servidores em razão de acidente de trabalho ou que estejam a serviço do município.
Demais disso, os efeitos retroativos revelam que o interessado se utilizou de sua condição de Prefeito Municipal para auferir a concessão deste benefício nos termos em que foi aprovado, ou seja, usufruiu de uma facilidade não disponibilizada à população ou a outros agentes públicos com ressaltou o MPC.
Estes fatos, ao contrário do que sustentou a defesa, afastam a impessoalidade da lei em foco, bem como a moralidade de que deve se revestir o processo legislativo e todos os demais atos emanados da administração pública, caracterizando o gasto decorrente como ilegítimo por ofensa aos princípios básicos da administração pública, estabelecidos pela Constituição Federal” (Processo TC-800037/052/10).
Consta,
ainda, que o recurso interposto contra esse decisum
não foi provido, com determinação de provocação ao Procurador-Geral de Justiça
para promoção de ação direta de inconstitucionalidade, e estampando o venerando
acórdão de sua 1ª Turma que:
“3.1. No mérito, não procede o argumento do Recorrente de que o ressarcimento de suas despesas médicas no importe de R$ 100.434,54 (cem mil, quatrocentos e trinta e quatro reais e cinquenta e quatro centavos) estaria amparado em Lei Municipal.
3.2. Como bem registrado na sentença, o fato de a Lei ter obedecido ao devido processo legislativo, não desnatura a violação da moralidade e da impessoalidade. No caso, o Prefeito Municipal, detentor da competência de iniciativa legislativa, foi justamente o beneficiário da retroatividade dos efeitos estabelecida pela Lei” (fls. 63/67).
II – O PARÂMETRO DA
FISCALIZAÇÃO ABSTRATA DE CONSTITUCIONALIDADE
A Lei n. 1.739, de 25 de
maio de 2010, é incompatível com os seguintes preceitos da Constituição
Estadual aplicáveis aos Municípios por força de seu art. 144:
Artigo 111 - A administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes do Estado, obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, razoabilidade, finalidade, motivação, interesse público e eficiência.
..............................................................................................
Artigo 128 - As vantagens de qualquer natureza só poderão ser instituídas por lei e quando atendam efetivamente ao interesse público e às exigências do serviço.
.............................................................................................
Artigo 144 - Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto organizarão por Lei Orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.
..........................................................................................
Artigo 218 – O Estado garantirá, em seu território, o planejamento e desenvolvimento de ações que viabilizem, no âmbito de sua competência, os princípios de seguridade social previstos nos artigos 194 e 195 da Constituição Federal.
Artigo 219 – A saúde é direito de todos e dever do Estado:
Parágrafo único- O Poder Público Estadual e Municipal garantirão o direito à saúde mediante:
.............................................................................................
2- acesso universal e igualitário às ações e ao serviço de saúde, em todos os níveis.
..............................................................................................
Artigo 222 - As ações e os serviços de saúde executados e desenvolvidos pelos órgãos e instituições públicas estaduais e municipais, da administração direta, indireta e fundacional, constituem o sistema único de saúde, nos termos da constituição federal, que se organizará ao nível do estado, de acordo com as seguintes diretrizes e bases:
Não
bastasse a expressa remissão contida no art. 218 da Constituição Estadual, não
é vedado o exame da incompatibilidade da lei local contestada com a
Constituição Federal, em virtude de ofensa ao art. 144 da Constituição do
Estado, norma remissiva que incorpora à Constituição Estadual os princípios da
Constituição Federal.
Esse
preceito da Constituição Estadual, que
determina a observância na esfera municipal além das regras da Constituição
Estadual, dos princípios da Constituição Federal, é denominado “norma estadual
de caráter remissivo, na medida em que, para a disciplina dos limites da
autonomia municipal, remete para as disposições constantes da Constituição Federal”,
como averbou o Supremo Tribunal Federal ao credenciar o controle concentrado de
constitucionalidade de lei municipal por esse ângulo (STF, Rcl 10.406-GO, Rel.
Min. Gilmar Mendes, 31-08-2010, DJe 06-09-2010; STF, Rcl 10.500-SP, Rel. Min.
Celso de Mello, 18-10-2010, DJe 26-10-2010).
Possível
o contraste da lei local com os arts. 144 e 218 da Constituição Estadual, por
sua remissão à Constituição Federal e aos dispositivos da Constituição Federal
que gravitam em torno do assunto.
Os
parâmetros da Constituição da República referidos pela Constituição do Estado
são os seguintes:
Art. 5º - Todos são iguais perante a lei, sem a distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito á vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
..............................................................................................
Art. 37 - A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:
..............................................................................................
Art. 194. A seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social.
..............................................................................................
V - equidade na forma de participação no custeio;
.............................................................................................
Art. 195. A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais:
I - do empregador, da empresa e da entidade a ela equiparada na forma da lei, incidentes sobre:
a) a folha de salários e demais rendimentos do trabalho pagos ou creditados, a qualquer título, à pessoa física que lhe preste serviço, mesmo sem vínculo empregatício;
b) a receita ou o faturamento;
c) o lucro;
II - do trabalhador e dos demais segurados da previdência social, não incidindo contribuição sobre aposentadoria e pensão concedidas pelo regime geral de previdência social de que trata o art. 201;
III - sobre a receita de concursos de prognósticos.
IV - do importador de bens ou serviços do exterior, ou de quem a lei a ele equiparar.
..............................................................................................
§ 5º - Nenhum benefício ou serviço da seguridade social poderá ser criado, majorado ou estendido sem a correspondente fonte de custeio total.
............................................................................................
Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
............................................................................................Art. 198 - As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado com as seguintes diretrizes:
.............................................................................................
§ 1º - O sistema único de saúde será financiado, nos termos do art. 195, com recursos do orçamento da seguridade social, da União, dos estados, do Distrito Federal e dos Municípios, além de outras fontes.
1. Moralidade, impessoalidade,
razoabilidade, finalidade, interesse público (arts. 111 e 128 da Constituição
Estadual)
A
lei em foco institui benefício público aos agentes políticos e empregados
públicos do Município de Alto Alegre, consistente no custeio de suas despesas
médicas, hospitalares e decorrentes de tratamento de saúde em razão de
acidentes no serviço.
Como
visto, emerge de seu processo legislativo, segundo detectado pelo Tribunal de
Contas, que o projeto de lei de autoria do Prefeito Ilson Peres Thomé teve como
escopo – explicitado pelo efeito retroativo da norma – beneficiar a si próprio.
É
fato – e não prognose – decorrente diretamente do processo legislativo e das
circunstâncias que em torno dele gravitaram, como acima exposto, que a lei
local foi editada com sensível agravo aos princípios de moralidade,
impessoalidade, interesse público, razoabilidade e finalidade, adotados no art.
111 da Constituição do Estado de São Paulo em harmonia com o art. 37 da
Constituição da República.
Houve
inequívoco desvio de poder de legislar dada a sua razão de ser. O exercício da
iniciativa legislativa ao Chefe do Poder Executivo não pode visar à instituição
de vantagem pessoal, distanciada do interesse público primário e da finalidade
pública de alcance do bem comum, o que significa, ainda, evidente
descompromisso com o senso ético que deve presidir as atividades dos agentes
públicos.
Não
é novidade alguma o controle concentrado de constitucionalidade de lei ou ato
normativo por desvio de poder. A esse respeito, concessa venia, reporta-se a elucidativo escólio da lavra de Caio
Tácito:
“No exercício de suas atribuições e nas matérias a eles afetas, os órgãos legislativos, em princípio, gozam de discricionariedade peculiar à função política que desempenham.
Temos, contudo, sustentando a necessidade de temperamento da latitude discricionária de ato do Poder Legislativo, ainda que fundado em competência constitucional e formalmente válido.
O princípio geral de Direito de que toda e qualquer competência discricionária tem como limite a observância da finalidade que lhe é própria, embora historicamente vinculado à atividade administrativa, também se compadece, a nosso ver, com a legitimidade da ação do legislador.
Tivemos, oportunidade de sustentar, perante o STF, em duas oportunidades, a nulidade de leis estaduais em que, no término de governos vencidos nas urnas, eram criados cargos públicos em número excessivo, não reclamados pela necessidade pública, e comprometendo gravemente as finanças do Estado, tão-somente para o aproveitamento de correligionários ou de seus familiares.
Para o desfazimento dessas leis, que caracterizavam os chamados ‘testamentos políticos’, o STF consagrou a tese da validade de novas leis que, anulando leis inconstitucionais, reconheciam o abuso pelos Poderes Legislativos estaduais da competência, em princípio discricionária, da criação de cargos públicos.
O primeiro acórdão, proferido no MS 7.243, em sessão de 20.1.69, manteve a anulação de leis do Estado do Ceará com as quais, no apagar das luzes de uma situação política derrotada, em apenas 56 dias, mediante 25 atos legislativos foram instituídos, sob a forma de criação ou transformação, 3.784 novos cargos públicos, o que equivalia a um-terço do total do funcionalismo estadual então existente, estimado em 12.000 servidores, elevando o custo mensal do pessoal a 94,24% das rendas do Estado.
Por essa forma, violava-se norma expressa da Constituição estadual, que fixava o teto de 50% para a vinculação da receita ao custeio do funcionalismo público, e se objetivava impedir o funcionamento regular do Poder Executivo, no período do novo mandato que se ia inaugurar.
Em comentário a essa decisão, que firmou precedente memorável, destacávamos a importância da tese por ela abonada:
‘A competência legislativa para criar cargos públicos visa ao interesse coletivo de eficiência e continuidade da administração. Sendo, em sua essência, uma faculdade discricionária, está, no entanto, vinculada à finalidade, que lhe é própria, não podendo ser exercida contra a conveniência geral da coletividade, com o propósito manifesto de favorecer determinado grupo político, ou tornar ingovernável o Estado, cuja administração passa, pelo voto popular, às mãos adversárias.
‘Tal abandono ostensivo do fim a que se destina a atribuição constitucional configura autêntico desvio de poder (détournement de pouvoir), colocando-se a competência legislativa a serviço de interesses partidários, em detrimento do legítimo interesse público’ (RDA 59/347 e 348).
A mesma situação se renovou, no Estado do Rio Grande do Norte, perante outro testamento político de um governo vencido no pleito eleitoral sucessório, em que se comprometia desmedidamente o erário, elevando a mais de 80% a despesa com o funcionalismo público.
Em decisão proferida na Repr. 512, julgada, por unanimidade, pelo Tribunal Pleno, em sessão de 7.12.62, o STF reputou legítima a anulação, pela Assembléia Legislativa, de leis inconstitucionais que compunham o testamento político em causa.
Em memorial oferecido como advogado do novo governo estadual, ponderávamos que ‘o desvio de poder legislativo, caracterizado no inventário político, ofende o princípio da independência e harmonia dos Poderes, além de violar a Constituição estadual’.
Em acórdãos posteriores os RE 48.655 e 50.219 (RDA 78/269 e 281), aplicando a orientação firmada, a Corte Suprema reafirmou a tese da anulação, pelo Poder Legislativo, de seus próprios atos inconstitucionais.
A acolhida do cabimento do desvio de finalidade como vício de inconstitucionalidade fora anteriormente abonada em outro julgado do STF em voto do Min. Orozimbo Nonato, relator do RE 18.331, que, nos termos da respectiva ementa, após recordar o conhecido axioma de que o poder de taxar não se pode extremar como poder destruir, destaca: ‘É um poder cujo exercício não deve ir até o abuso, o excesso, o desvio, sendo aplicável, ainda que, a doutrina fecunda do détournement de pouvoir’ (RF 145/146).
O excesso do poder de taxar foi igualmente repelido com respeito à lei do Estado do Rio de Janeiro que exigia taxa judiciária em termos excessivos, sem correspondência com o serviço prestado (Repr. 1.077, RTJ 11/55).
Comentando o sentido inovador da jurisprudência do Pretório Excelso, registra Seabra Fagundes, entre as fecundas criações pretorianas, ‘a extensão da teoria do desvio de poder originária e essencialmente dirigida aos procedimentos dos órgãos executivos, aos atos do poder legiferante, de maior importância num sistema de Constituição rígida, em que se comete ao Congresso a complementação do pensamento constitucional nos mais variados setores da vida social, econômica e financeira’ (RF 151/549).
Em decisão de 31.8.67, no RMS 16.912, o tema do desvio de poder como vício especial do ato legislativo foi expressamente invocado.
Apreciando lei de organização judiciária na qual se inseria emenda em benefício de determinado serventuário, advertiu o Min. Prado Kelly: ‘tratava-se de reforma judiciária e a emenda representou um desvio de poder na própria legislatura’. Sendo o mesmo Ministro as seguintes expressões: ‘Tenho por demonstrado que a emenda não obedeceu ao presumido escopo de interesse público e sim a uma inspiração que nem por ser equânime ou reparadora (como pareceu ao interveniente) deixa de ser particularista ou de favorecimento pessoal’.
Nessa decisão plenária, o Min. Victor Nunes Leal, após aderir à posição ‘de que podemos exercer controle sobre os desvios de poder da própria legislatura’, convocado por interpelação do Min. Aliomar Baleeiro a declarar ‘se admitia um desvio de poder do Poder Legislativo fora do caso de inconstitucionalidade’, não vacilou em afirmar categoricamente: ‘Admito’ (acórdão no RMS 16.912, RTJ 45/530-545, especialmente pp. 536 e 537).
Em questão relativa à permissão para explorar linhas de ônibus, o STF apreciou a incidência do desvio de poder legislativo, admitindo, em tese, a aplicação do princípio (RTJ 47/650 e 48/165).
Em três situações o STF repeliu, por inconstitucionalidade, a aplicação de sanções administrativas com a finalidade real de constranger o contribuinte à regularidade fiscal.
Decidiu a Corte Suprema que ‘é inadmissível a interdição de estabelecimento ou apreensão de mercadorias como meio coercitivo para a cobrança de tributo’ (Súmulas 70 e 323).
E, dilatando o princípio à inconstitucionalidade dos Decs.- leis 5 e 42, de 1937 – que restringiam indiretamente a atividade comercial de empresas em débito, impedindo-as de comprar selos ou despachar mercadoria – implicitamente configurou o abuso de poder legislativo (Súmula 547 e acórdão no RE 63.026, RDA 10/209).
O excesso legislativo foi invocado em acórdão do STF no RE 62.731, do qual foi Relator o Min. Aliomar Baleeiro. Afirmou-se a inconstitucionalidade de decreto-lei que vedava a purgação de mora em locações. Destacou a ementa da decisão a impertinência do fundamento por se tratar de ‘assunto miúdo de Direito Privado’ que não se incluía no conceito de segurança nacional, necessário àquela forma de processo legislativo (RDA 94/169).
O poder de polícia nas profissões somente pode ser exercido com observância do princípio da razoabilidade, afirmou o acórdão na Repr. 930 (apud Gilmar Ferreira Mendes, ob. cit., p. 451).
E porque o impedimento do exercício profissional da advocacia há juizes aposentados até dois anos após a inatividade ofendia o princípio da razoabilidade, foi declarada a inconstitucionalidade da lei que estabelecia tal interdição temporária, por violação àquele princípio (Repr. 1.054, RTJ 112/7).
Em parecer no qual analisamos a inconstitucionalidade de deliberação do Banco Central do Brasil determinante da indisponibilidade de contas bancárias do Estado – membro a suas empresas, enfatizávamos que ‘importa desvio do Poder Legislativo decreto lei que se utilize do bloqueio de contas bancárias como meio de cobrança regressiva de aval a empréstimos externos’ (RDA 172/239).
Em outro parecer relativo à validade da lei municipal que subordinava a permissão de funcionamento de estabelecimentos comerciais aos sábados e domingos à prévia aprovação pelos órgãos sindicais, entendíamos ocorrer violação da competência legal, a ser exercida pelo Município, como emanação do poder de polícia.
Ressaltamos que, obrigando à intervenção dos sindicatos para a obtenção de licença especial de funcionamento, o legislador teve em mira o fortalecimento do sistema sindical, invadindo órbita de competência privativa da União.
Concluímos, assim, que, ‘a toda evidencia, a lei municipal, visando, a beneficiar o movimento sindical está maculada pelo vício de abuso do poder normativo, caracterizado como desvio de finalidade’ (RDA 164/460).
O tema do desvio de poder legislativo foi amplamente estudado, no Direito italiano, por Lívio Paladin, em ensaio sob o título ‘Osservazioni sulla discrezionalità e sull’eccesso di potere del legislatore ordinario’ (Rivista Trimestrale di Diritto Pubblico, ano VI, 4/993-1.046, outubro – dezembro/56).
Pondera o autor que: ‘L’illegitimità di ogni fine, diverso da quello costituzionalmente previsto, consente logicametne di configurare, sul piano legisltaivo, qual vizio della causa degli atti amministrativi, ch è l’ecesso di potere’ (‘A ilegitimidade de todo fim, diverso daquele constitucionalmente previsto, conduz logicamente afigurar-se, no plano legislativo, aquele vício de causa dos atos administrativos, que é o excesso de poder’) (Rivista cit. p. 1.031).
A figura do desvio de poder legislativo foi, pioneiramente, sustentada por Santi Romano, que, reconhecendo o poder discricionário do legislador, destaca, porém, o limite que se impõe em face da finalidade da competência legislativa: ‘ma la figura dele potere discrezionale richiede per l’appunto che di esse si faccia uso conforme alle finalità da cui il potere medismo deriva; si há altrimenti uno sviamento di potere, che costituisse uma violazione di direitto, nel senso più próprio della parola. Son concetti questi di commune applicazione riguado alle compentenza degli oragnia amministrativi e non si saprebbe indicarei l pechè non possono riferirsi, nella loro generalità, al Parlamento. In certi campoi della sua funzione legislativa, questo non há poteri sconfinati, ma poteri discricionali, il che vuol dire litate, e non altro, dall’obbligo di fare uso per dati motivi’ (‘mas a figura do poder discricionário reclama precisamente que dele se faça uso conforme à finalidade, da qual o próprio poder deriva: há de outra forma um desvio de poder que constitui uma violação de direito no sentido próprio da palavra. São conceitos estes de aplicação comum no que se refere à competência dos órgãos administrativos, e não se saberá indicar por que não parecem se referir em sua generalidade, ao Parlamento. Em certos campos de sua competência legislativa, este não possui poderes sem fronteiras, mas poderes discricionários, importa dizer, limitados pelo menos da obrigação de fazer uso por motivos determinados’) (‘Osservazioni preliminari per uma teoria sui limite della funzione legislativa nel Diritto Pubblico’, 1902, e incluído na coletânea Scriti Minori – Diritto Costituzionale, v. I/199, 1950).
Não é outro o pensamento de Costantino Mortati quando adverte que ‘a lei poderá estar viciada de inconstitucionalidade não somente quando o interesse perseguido contrasta com aquele imposto pela Constituição, mas também nos casos em que o próprio teor da lei está em absoluta incongruência com a norma editada e o fim do interesse público a ser perseguido e o próprio legislador afirma pretender perseguir. Verifica-se, nessa ultima hipótese, uma modalidade de vício de legitimidade assimilável ao excesso de poder administrativo’ (‘la legge può risultare viziata per incostituzionalità non solo quando l’interesse perseguito contrasta com quelllo imposto dalla Costituzione, ma anche nei casi in cui dallo stesso tenore della legge risulti un’assouta incongruenza fra la norma dettata ed il fine di pubblico interesse che si doveva perseguire e che lo stesso legislatore assume di volere perseguire. Si verificherebbe in quest’ultima ipotese un’ipotesi di vizio della legittimità assimilabile a quello dell’eccesso di potere amministrativo’) (verbete ‘Discricionalità’, Novissimo Digesto Italiano, v. V/1.09).
Entendemos, em suma, que a validade da norma de lei, ato emanado do Legislativo, igualmente se vincula à observância da finalidade contida na norma constitucional que fundamenta o poder de legislar.
O abuso de poder legislativo, quando excepcionalmente caracterizado, pelo exame dos motivos, é vício especial de inconstitucionalidade da lei, pelo divórcio entre o endereço real da norma atributiva da competência e o uso ilícito que a coloca a serviço de interesse incompatível com a sua legitima destinação.
Gilmar Ferreira Mendes dedicou capítulo especial de sua monografia sobre controle de constitucionalidade à avaliação do excesso de poder legislativo como vício substancial de inconstitucionalidade. Com apoio na doutrina alemã e na lição de Canotilho, evidencia a prevalência da vinculação do ato legislativo a uma finalidade e à aplicação do princípio da proporcionalidade como elemento da legitimidade constitucional das leis. Oferece, como exemplos, precedentes colhidos na jurisprudência do STF (Controle de Constitucionalidade, Saraiva, 1990, pp. 38-54).
Canotilho adverte que a lei é vinculada ao fim constitucionalmente fixado e ao princípio de razoabilidade a fundamentar ‘a transferência para os domínios da atividade legislativa da figura do desvio de poder dos atos administrativos’ (Direito Constitucional, 4ª ed., 1986, p. 739).
E, mais amplamente, o mesmo autor estuda o desvio de poder legislativo diante do princípio de que ‘as leis estão todas positivamente vinculadas quanto a fim pela Constituição’ (Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador, Coimbra, 1982, p. 259)’. (Caio Tácito. Desvio de Poder no Controle dos Atos Administrativos, Legislativos e Jurisdicionais, in Revista Trimestral de Direito Público, n. 04, São Paulo: Malheiros, 1993, pp. 33-37).
A
lei em foco concede benefício à custa do erário colimando a satisfação do
interesse daquele que exerce temporariamente o poder, bem como de categorias de
pessoas (agentes políticos e empregados públicos), excluindo de seu gozo a
população carente de eficiência no serviço público de saúde e que, geralmente,
onera seus próprios recursos para lograr recuperação e cura.
Tampouco
a lei se afina ao princípio de razoabilidade por não ostentar bom senso,
lógica, racionalidade, moderação e parcimônia, e perder os caracteres de
adequação, necessidade e proporcionalidade à luz do exercício do poder e da
instituição de benefícios públicos. Neste sentido, expressa a jurisprudência a
necessidade de ajustamento dos atos estatais aos princípios de razoabilidade e
proporcionalidade:
“TODOS OS ATOS EMANADOS DO PODER PÚBLICO ESTÃO NECESSARIAMENTE SUJEITOS, PARA EFEITO DE SUA VALIDADE MATERIAL, À INDECLINÁVEL OBSERVÂNCIA DE PADRÕES MÍNIMOS DE RAZOABILIDADE. - As normas legais devem observar, no processo de sua formulação, critérios de razoabilidade que guardem estrita consonância com os padrões fundados no princípio da proporcionalidade, pois todos os atos emanados do Poder Público devem ajustar-se à cláusula que consagra, em sua dimensão material, o princípio do ‘substantive due process of law’. Lei Distrital que, no caso, não observa padrões mínimos de razoabilidade. A EXIGÊNCIA DE RAZOABILIDADE QUALIFICA-SE COMO PARÂMETRO DE AFERIÇÃO DA CONSTITUCIONALIDADE MATERIAL DOS ATOS ESTATAIS. - A exigência de razoabilidade - que visa a inibir e a neutralizar eventuais abusos do Poder Público, notadamente no desempenho de suas funções normativas - atua, enquanto categoria fundamental de limitação dos excessos emanados do Estado, como verdadeiro parâmetro de aferição da constitucionalidade material dos atos estatais. APLICABILIDADE DA TEORIA DO DESVIO DE PODER AO PLANO DAS ATIVIDADES NORMATIVAS DO ESTADO. - A teoria do desvio de poder, quando aplicada ao plano das atividades legislativas, permite que se contenham eventuais excessos decorrentes do exercício imoderado e arbitrário da competência institucional outorgada ao Poder Público, pois o Estado não pode, no desempenho de suas atribuições, dar causa à instauração de situações normativas que comprometam e afetem os fins que regem a prática da função de legislar” (STF, ADI-MC 2.667-DF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, 19-06-2002, v.u., DJ 12-03-2004, p. 36).
“SUBSTANTIVE DUE PROCESS OF
LAW E FUNÇÃO LEGISLATIVA: A cláusula do devido processo legal - objeto de
expressa proclamação pelo art. 5º, LIV, da Constituição - deve ser entendida,
na abrangência de sua noção conceitual, não só sob o aspecto meramente formal,
que impõe restrições de caráter ritual à atuação do Poder Público, mas,
sobretudo, em sua dimensão material, que atua como decisivo obstáculo à edição
de atos legislativos de conteúdo arbitrário. A essência do substantive due process of law reside na necessidade
de proteger os direitos e as liberdades das pessoas contra qualquer modalidade
de legislação que se revele opressiva ou destituída do necessário coeficiente
de razoabilidade. Isso significa, dentro da perspectiva da extensão da teoria
do desvio de poder ao plano das atividades legislativas do Estado, que este não
dispõe da competência para legislar ilimitadamente, de forma imoderada e
irresponsável, gerando, com o seu comportamento institucional, situações
normativas de absoluta distorção e, até mesmo, de subversão dos fins que regem
o desempenho da função estatal. O magistério doutrinário de CAIO TÁCITO.
Observância, pelas normas legais impugnadas, da cláusula constitucional do
substantive due process of law” (RTJ
178/22).
Há
mais.
A lei municipal objurgada
institui vantagem pecuniária de natureza indenizatória.
Porém,
além de o fazer em descompasso com os princípios de moralidade, razoabilidade,
finalidade e interesse público explicitados no art. 111 da Constituição do
Estado de São Paulo, não atende efetivamente o interesse público e às
exigências do serviço, tal como exige o art. 128 da Constituição Paulista.
É
inadequada, desnecessária e desproporcional, pois, aquinhoa indevidamente
certas categorias de pessoas em detrimento da população apenas por conta de sua
relação funcional ou política com o Estado, além de onerar excessivamente as
finanças públicas.
Os
servidores públicos do Município de Alto Alegre são empregados públicos porque
sujeitos ao regime celetista que preside a respectiva relação funcional, como
consta da Lei n. 1.017, de 03 de abril de 1990 (fl. 43) e do art. 3º da Lei
Complementar n. 01, de 28 de setembro de 1990 (fls. 46/55).
Não se ajusta ao interesse público e às exigências do serviço custear, mediante ressarcimento, as despesas referidas na Lei n. 1.739/10 mesmo que decorrentes de acidente de serviço.
O caso em cena denota ausência de bom senso, parcimônia, racionalidade, além de falta de finalidade e interesse público primário e desperdício imoral dos recursos públicos, em benefício exclusivo de interesses privados de agentes políticos e empregados públicos. Estes, por sinal, já são dotados de benefícios securitários para cobertura de infortúnios à saúde, nos termos do inciso I do art. 201 da Constituição Federal.
Ademais,
agentes políticos e empregados públicos têm, como a população integralmente
considerada, os serviços de saúde prestados pelo poder público, e que devem
primar pelo
atendimento integral, universal, gratuito e igualitário (art. 198, parágrafo
único, II, Constituição Federal; arts. 219, parágrafo único, 2, 222, IV e V, e
223, I, Constituição Estadual), não bastasse universalidade
da cobertura e do atendimento e uniformidade e
equivalência dos benefícios e serviços às populações urbanas e rurais constituírem diretrizes da
seguridade social (art. 194, I e II, Constituição Federal; art. 218,
Constituição Estadual).
Trata-se
desperdício do dinheiro público, o que se não amolda ao princípio da moralidade
administrativa como admoesta clássica lição acentuando que:
“a imoralidade salta aos olhos quando a Administração Pública é pródiga em despesas legais, porém inúteis, como propaganda ou mordomia, quando a população precisa de assistência médica, alimentação, moradia, segurança, educação” (Maria Sylvia Zanella Di Pietro. Discricionariedade administrativa na Constituição de 1988, São Paulo: Atlas, 1991, p. 111).
Com
efeito, a estipulação de vantagem não concedida a qualquer outro trabalhador,
afronta aos princípios da isonomia e da moralidade. Há a concessão de um
privilégio não estendido a nenhum outro membro da sociedade, mas que, de forma
paradoxal, é custeado por toda a coletividade. Trata-se de exemplo típico de
patrimonialismo, em que dinheiro público é utilizado para privilégio de
alguns.
Portanto,
a lei é incompatível com os arts. 111 e 128 da Constituição Estadual.
2. Igualdade no serviço
público de saúde (arts. 144, 218 e 219, parágrafo único, 2, da Constituição
Estadual)
Aos
agentes políticos e aos empregados públicos para fazer face a necessidades de
saúde o poder público oferece, como à população, o serviço público de saúde
pela rede do Sistema Único de Saúde (SUS), e se a tanto não se sentirem
satisfeitas, elas têm liberdade para contratação de serviços privados de saúde.
Todavia,
no Município de Alto Alegre agentes políticos e empregados públicos desfrutam assistência
à saúde custeada pelos cofres municipais, com recursos oriundos da tributação
arcada pelos demais munícipes.
Daí
exsurge a incompatibilidade com o princípio da igualdade que, não bastasse
governar toda e qualquer atividade administrativa, é impositivo especificamente
para os serviços públicos de saúde de qualquer esfera ou nível governamental
(arts. 5º, 37, 194, parágrafo único, II, 196, e 198, II, Constituição Federal;
arts. 111, 218, 219, parágrafo único, 2, 222, IV, Constituição Estadual).
Viola
o princípio da igualdade tanto o tratamento desigual para situações idênticas,
como o tratamento idêntico para situações que são diferenciadas.
Como
anota Celso Antônio Bandeira de Mello, “o princípio da isonomia preceitua que
sejam tratadas igualmente as situações iguais e desigualmente as desiguais.
Donde não há como desequiparar pessoas e situações quando nelas não se
encontram fatores desiguais. E, por fim, consoante averbado insistentemente,
cumpre ademais que a diferença do regime legal esteja correlacionada com a
diferença que se tomou em conta” (Conteúdo
jurídico do princípio da igualdade, São Paulo: Malheiros, 2004, 3ª ed., 12ª
tir., p. 35).
Esse
é o sentido do princípio da isonomia, salientado por José Afonso da Silva, ao
afirmar que “a realização da igualdade perante a justiça, assim, exige a busca
da igualização de condições dos desiguais” (Curso
de direito constitucional positivo, São Paulo: Malheiros, 13ª ed., 1997, p.
215).
A
diferenciação feita pelo legislador é possível quando, objetivamente,
constatar-se um fator de discrímen que dê razoabilidade à diferenciação de
tratamento contida na lei, pois a igualdade pressupõe um juízo de valor e um
critério justo de valoração, proibindo o arbítrio, que ocorrerá “quando a
disciplina legal não se basear num: (i) fundamento sério; (ii) não tiver um
sentido legítimo; (iii) estabelecer diferenciação jurídica sem um fundamento
razoável” (J. J. Gomes Canotilho. Direito
constitucional e teoria da constituição, Coimbra: Almedina, 3ª ed., 1998,
pp. 400-401).
Além
disso, no constitucionalismo moderno “a função de impulso e a natureza
dirigente do princípio da igualdade aponta para as leis como um meio de
aperfeiçoamento da igualdade através da eliminação das desigualdades fácticas”
(J. J. Gomes Canotilho. Constituição
dirigente e vinculação do legislador. Contributo para a compreensão das normas
constitucionais programáticas, Coimbra: 2ª ed., Coimbra Editora, 2001, p.
383).
O
que o princípio veda é que a lei vincule uma “consequência a um fato que não
justifica tal ligação”, pois, o vício de inconstitucionalidade por violação da
isonomia deve incidir quando a norma que promove diferenciações sem que haja
“tratamento razoável, equitativo, aos sujeitos envolvidos” (Celso Ribeiro
Bastos. Curso de direito constitucional,
São Paulo: Saraiva, 18ª ed. São Paulo, 1997, pp. 181-182).
A
valoração daquilo que constitui o conteúdo jurídico do princípio constitucional
da igualdade, ou seja, a vedação de uma “regulação desigual de fatos iguais”
(Konrad Hesse. Elementos de direito
constitucional da República Federal da Alemanha, Porto Alegre: Sérgio
Antônio Fabris editor, 1998, p. 330, tradução de Luís Afonso Heck,), deve ser
realizada caso a caso, com base na razoabilidade e proporcionalidade na análise
dos valores envolvidos, pois “não há uma resposta de uma vez para sempre
estabelecida” (ob. cit., p. 331).
Em
outras palavras, além do aspecto negativo do princípio, como vedação de
tratamento desigual a situações e pessoas em condição similar, traz conotação
positiva, para conceder ao legislador a missão de, pela elaboração normativa,
com parâmetro nos obstáculos e desigualdades reais, equiparar, ou equilibrar
situações, materializando efetivamente o conteúdo concreto da isonomia. Pela
elaboração normativa, o legislador poderá afastar óbices de qualquer ordem que
limitem a aproximação efetiva daqueles que se encontram sob a égide do
ordenamento jurídico (Paolo Biscaretti Di Ruffia. Diritto constituzionale, Napoli: Jovene, 15ª ed., 1989, p. 832).
No
caso em exame, o que se verifica é a inexistência de qualquer fundamento
concreto e razoável que justifique a benesse prevista na lei local impugnada,
arcada pelo poder público municipal em favor exclusivamente de seus servidores
e agentes políticos.
Correto
concluir, assim, que tendo o legislador tratado de forma diversa esses
beneficiários que estão em idêntica situação que os demais munícipes, violou o
princípio da isonomia, editando norma inconstitucional.
Portanto,
a lei local contrasta com o art. 219, parágrafo único, 2, da Constituição
Estadual e com os arts. 144 e 218 desta por sua remissão aos arts. 5º e 196 da
Constituição Federal.
3. Custeio de despesas
(arts. 144 e 222, caput, da
Constituição Estadual)
Sob
outro espeque, convém considerar que a lei local vergastada instituiu nova
forma de prestação de ações e serviços públicos de saúde à margem do Sistema
Único de Saúde – SUS.
A
Constituição Federal elevou o SUS à condição institucional, albergando em um só
conjunto os serviços de saúde federal, estadual e municipal.
O perfil
normativo-constitucional do sistema único de saúde como serviço público social
não compreende o reembolso de despesas com tratamento de saúde, de modo que a
lei local contrasta com o art. 222, caput,
da Constituição Estadual e com o art. 144 desta por sua remissão ao art. 198, caput, da Constituição Federal, já que,
como dito acima, o Sistema Único de Saúde – SUS é baseado em premissas
diversas, consistentes na integralidade e na universalização de atendimento por
sua rede.
Daí decorre a vedação da instituição
pelos Municípios de serviço público de saúde à margem dessa rede ou de serviço
privado de saúde ou restrito a certas pessoas com financiamento oriundo do
próprio erário.
4. Ausência de fonte
equitativa e contributiva de custeio (arts. 144 e 218 da Constituição Estadual)
Apesar
de a lei impugnada conter genérica cláusula de cobertura
orçamentário-financeira, ela é incompatível com o art. 218 da Constituição
Estadual na sua remissão ao inciso V do art. 194 e ao § 5º do art. 195 da
Constituição Federal e com o art. 144 da Constituição Estadual na sua remissão
ao § 1º do art. 198 da Constituição Federal.
Ora,
o benefício previdenciário contido na lei local objurgada é financiado
exclusivamente pelo erário, contrariando os parâmetros normativos exigentes de
(a) criação de benefício da seguridade social com a correspondente fonte de
custeio total, (b) equidade na forma de participação no custeio e, mais
precisamente, (c) financiamento dos serviços de saúde com recursos da
seguridade social captados de forma equitativa e contributiva.
III
- Pedido
Face ao exposto, requerendo o
recebimento e o processamento da presente ação para que, ao final, seja julgada
procedente para declarar a inconstitucionalidade da Lei n. 1.739, de 25 de maio
de 2010, do Município de Alto Alegre.
Requer-se
ainda sejam requisitadas informações à Câmara Municipal e ao Prefeito Municipal
de Alto Alegre, bem como citado o Procurador-Geral do Estado para se manifestar
sobre os atos normativos impugnados, protestando por nova vista,
posteriormente, para manifestação final.
Termos
em que, pede deferimento.
São
Paulo, 22 de junho de 2017.
Gianpaolo
Poggio Smanio
Procurador-Geral de Justiça
wpmj
Protocolado n. 141.401/16
Interessado: Doutor José Fernando da Cunha Pinheiro – Promotor de Justiça de
Penápolis
Objeto: representação para o controle de constitucionalidade da Lei n. 1.739, de
25 de maio de 2010, do Município de Alto Alegre
1.
Distribua-se a petição inicial da ação
direta de inconstitucionalidade impugnando a Lei n. 1.739, de 25 de maio de
2010, do Município de Alto Alegre, junto ao Egrégio Tribunal de Justiça do
Estado de São Paulo, instruída com o protocolado em epígrafe referido.
2.
Oficie-se ao digno interessado,
informando-lhe a propositura da ação, com cópia da petição inicial.
São
Paulo, 22 de junho de 2017.
Gianpaolo
Poggio Smanio
Procurador-Geral de Justiça
wpmj