Excelentíssimo Senhor Doutor Desembargador Presidente do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

 

 

Protocolado nº 19.580/2017

 

 

Ementa:

 

1.      Lei nº 11.804, de 15 de setembro de 2015, do Município de São José do Rio Preto que, “Dispõe no âmbito do Município de São José do Rio Preto, sobre a proibição do uso de carros particulares cadastrados em aplicativos para o transporte remunerado individual de pessoas e dá outras providências”.

2.      Usurpação da competência legislativa privativa da União com violação do princípio federativo (art. 1º da Constituição Estadual). Compete a União instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano, inclusive habitação, saneamento básico e transportes urbanos e legislar sobre diretrizes da política nacional de transportes (art. 21, X e 22, IX da Constituição Federal). Violação do princípio federativo (art. 1º e art. 144 da Constituição Paulista) decorrente da repartição constitucional de competências.

3.      A restrição ao serviço de transporte privado de passageiros e à disponibilização de aplicativos para tais serviços implica ofensa à livre iniciativa e concorrência, além de contrariar interesse dos consumidores.  Ofensa ao artigo 144 da CE/89 (artigos 1º, IV, e 170, IX e V, da CF/88).

4.      Violação do princípio da razoabilidade, numa análise de proporcionalidade, que deve nortear a Administração Pública e a atividade legislativa e tem assento no art. 111 da CE/89, aplicável aos Municípios por força do art. 144 da mesma Carta.

 

 

 

O Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, no exercício da atribuição prevista no art. 116, VI, da Lei Complementar Estadual n. 734, de 26 de novembro de 1993 (Lei Orgânica do Ministério Público de São Paulo), em conformidade com o disposto nos arts. 125, § 2º, e 129, IV, da Constituição Federal, e, ainda, nos arts. 74, VI, e 90, III, da Constituição do Estado de São Paulo, com amparo nas informações colhidas no incluso protocolado, vem, respeitosamente, perante esse Egrégio Tribunal de Justiça, promover a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE, com pedido liminar, em face da Lei nº 11.804, de 15 de setembro de 2015, do Município de São José do Rio Preto, pelos fundamentos a seguir expostos:

I – O ATO NORMATIVO IMPUGNADO

          A Lei nº 11.804, de 15 de setembro de 2015, do Município de São José do Rio Preto que Dispõe no âmbito do Município de São José do Rio Preto, sobre a proibição do uso de carros particulares cadastrados em aplicativos para o transporte remunerado individual de pessoas e dá outras providências, tem a seguinte redação:

Art. 1º Fica proibido no âmbito da Cidade de São José do Rio Preto o transporte remunerado de pessoas em veículos particulares cadastrados através de aplicativos para locais pré-estabelecidos.

Art. 2º Para efeitos dessa Lei, fica também proibida a associação entre empresas administradoras desses aplicativos e estabelecimentos comerciais para o transporte remunerado de passageiros em veículos que não estejam cadastrados no Sindicato dos Taxistas de São José do Rio Preto e não sejam regulamentados pela Prefeitura Municipal.

Art. 3º O não cumprimento das disposições desta Lei sujeitará o infrator à multa de 50 UFMs, sendo o montante dobrado em caso de reincidência.

Art. 4º As despesas com a execução desta Lei correrão a conta das dotações próprias do Orçamento, suplementadas se necessário.

Art. 5º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

O ato normativo transcrito padece de incompatibilidade vertical com a Constituição do Estado de São Paulo, como adiante será demonstrado.

II – O PARÂMETRO DA FISCALIZAÇÃO ABSTRATA DE CONSTITUCIONALIDADE

A Lei nº 11.804/2015, do Município de São José do Rio Preto, ao proibirem o uso de carros particulares cadastrados em aplicativos para o transporte remunerado individual de pessoas no Município, ferem a Constituição do Estado de São Paulo, à qual está subordinada a produção normativa municipal ante a previsão dos arts. 1º, 18, 29 e 31 da Constituição Federal.

Com efeito, referido ato normativo municipal é incompatível com o artigo 144 da Constituição Paulista, o qual dispõe que, verbis:

“Artigo 144 – Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto- organizarão por Lei Orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição”.

Ao condicionar a autonomia dos Municípios à observância dos princípios previstos em seu bojo e na Constituição Federal de 1988 (CF/88), o artigo 144 da Constituição Estadual possui caráter de norma remissiva, reproduzindo, aliás, o caput do art. 29 da Carta Magna. 

Assim, a incompatibilidade vertical arguida se dá em face de norma remissiva da Constituição Estadual, não havendo espaço para se cogitar de contraste direto da lei municipal com a Constituição Federal.

Vale ressaltar que a parametricidade das normas constitucionais estaduais de caráter remissivo, para fins de controle concentrado de constitucionalidade de leis ou atos normativos estaduais ou municipais perante o Tribunal de Justiça local (art. 125, § 2°, CF/88), constitui questão amplamente discutida e pacificada no E. Supremo Tribunal Federal (AgR Recl. 10.500/SP; Min. Rel. Celso de Mello; D.J. 26/10/2010 e AgR Recl. 10406/GO; Min. Rel. Gilmar Mendes; D.J. 26/08/2014).

         Dessa maneira, conforme entendimento esposado pelo E. STF, não há usurpação da competência da Corte Constitucional Federal quando os Tribunais de Justiça locais, no exercício de sua competência prevista no art. 125, § 2° da CF/88, verificam a compatibilidade de leis municipais com normas constitucionais estaduais que fazem remissão às disposições da Carta Magna de 1988.

III - DA INVASÃO DA COMPETÊNCIA LEGISLATIVA PRIVATIVA DA UNIÃO – VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO FEDERATIVO

O esquema de repartição de competências entre os entes federados – expressão do princípio federativo – conferiu à União o seguinte em relação ao transporte e mobilidade urbana:

Art. 21. Compete à União:

(...)

XX - instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano, inclusive habitação, saneamento básico e transportes urbanos;

(...)

Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:

(...)

IX - diretrizes da política nacional de transportes;

(...)

Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.”

A fim de regulamentar os citados dispositivos constitucionais foi editada a Lei Federal n. 12.587/2012, a qual instituiu a Política Nacional de Mobilidade Urbana, que no que interessa dispõe o seguinte:

Art. 1º -  A Política Nacional de Mobilidade Urbana é instrumento da política de desenvolvimento urbano de que tratam o inciso XX do art. 21 e o art. 182 da Constituição Federal, objetivando a integração entre os diferentes modos de transporte e a melhoria da acessibilidade e mobilidade das pessoas e cargas no território do Município. 

Parágrafo único.  A Política Nacional a que se refere o caput deve atender ao previsto no inciso VII do art. 2o e no § 2o do art. 40 da Lei no 10.257, de 10 de julho de 2001 (Estatuto da Cidade)

Art. 2º -  A Política Nacional de Mobilidade Urbana tem por objetivo contribuir para o acesso universal à cidade, o fomento e a concretização das condições que contribuam para a efetivação dos princípios, objetivos e diretrizes da política de desenvolvimento urbano, por meio do planejamento e da gestão democrática do Sistema Nacional de Mobilidade Urbana. 

Art. 3º -  O Sistema Nacional de Mobilidade Urbana é o conjunto organizado e coordenado dos modos de transporte, de serviços e de infraestruturas que garante os deslocamentos de pessoas e cargas no território do Município

§ 1º -  São modos de transporte urbano: 

I - motorizados; e 

II - não motorizados. 

§ 2º -  Os serviços de transporte urbano são classificados: 

I - quanto ao objeto: 

a) de passageiros; 

b) de cargas; 

II - quanto à característica do serviço: 

a) coletivo; 

b) individual

III - quanto à natureza do serviço: 

a) público; 

b) privado

(...)

Seção I

Das Definições 

Art. 4º -  Para os fins desta Lei, considera-se: 

I - transporte urbano: conjunto dos modos e serviços de transporte público e privado utilizados para o deslocamento de pessoas e cargas nas cidades integrantes da Política Nacional de Mobilidade Urbana

II - mobilidade urbana: condição em que se realizam os deslocamentos de pessoas e cargas no espaço urbano; 

III - acessibilidade: facilidade disponibilizada às pessoas que possibilite a todos autonomia nos deslocamentos desejados, respeitando-se a legislação em vigor; 

IV - modos de transporte motorizado: modalidades que se utilizam de veículos automotores; 

V - modos de transporte não motorizado: modalidades que se utilizam do esforço humano ou tração animal; 

VI - transporte público coletivo: serviço público de transporte de passageiros acessível a toda a população mediante pagamento individualizado, com itinerários e preços fixados pelo poder público; 

VII - transporte privado coletivo: serviço de transporte de passageiros não aberto ao público para a realização de viagens com características operacionais exclusivas para cada linha e demanda; 

VIII - transporte público individual: serviço remunerado de transporte de passageiros aberto ao público, por intermédio de veículos de aluguel, para a realização de viagens individualizadas

IX - transporte urbano de cargas: serviço de transporte de bens, animais ou mercadorias; 

X - transporte motorizado privado: meio motorizado de transporte de passageiros utilizado para a realização de viagens individualizadas por intermédio de veículos particulares

XI - transporte público coletivo intermunicipal de caráter urbano: serviço de transporte público coletivo entre Municípios que tenham contiguidade nos seus perímetros urbanos; 

XII - transporte público coletivo interestadual de caráter urbano: serviço de transporte público coletivo entre Municípios de diferentes Estados que mantenham contiguidade nos seus perímetros urbanos; e 

XIII - transporte público coletivo internacional de caráter urbano: serviço de transporte coletivo entre Municípios localizados em regiões de fronteira cujas cidades são definidas como cidades gêmeas. 

(...)

Art. 12 -  Os serviços de utilidade pública de transporte individual de passageiros deverão ser organizados, disciplinados e fiscalizados pelo poder público municipal, com base nos requisitos mínimos de segurança, de conforto, de higiene, de qualidade dos serviços e de fixação prévia dos valores máximos das tarifas a serem cobradas.  (Redação dada pela Lei nº 12.865, de 2013)

Art. 12-A -  O direito à exploração de serviços de táxi poderá ser outorgado a qualquer interessado que satisfaça os requisitos exigidos pelo poder público local. (Incluído pela Lei nº 12.865, de 2013)

O legislador federal, a quem compete fixar as diretrizes da política nacional de transportes (artigo 22, IX, da CF), estabeleceu que o “Sistema Nacional de Mobilidade Urbana é o conjunto organizado e coordenado dos modos de transporte, de serviços e de infraestruturas que garante os deslocamentos de pessoas e cargas no território do Município” (art. 3º).

Conceituou transporte urbano como o “conjunto dos modos e serviços de transporte público e privado utilizados para o deslocamento de pessoas e cargas nas cidades integrantes da Política Nacional de Mobilidade Urbana (artigo 4º, inciso I).

Estabeleceu dois modelos de transporte urbano motorizado individual, a saber, o público e o privado (artigo 3º, § 1º), bem como diferenciou o transporte público individual: serviço remunerado de transporte de passageiros aberto ao público, por intermédio de veículos de aluguel, para a realização de viagens individualizadas;” (artigo 4º, VIII), e o “transporte motorizado privado: meio motorizado de transporte de passageiros utilizado para a realização de viagens individualizadas por intermédio de veículos particulares;” (artigo 4º, X).

Diferenciou, portanto, o serviço de transporte privado individual de passageiros do transporte público individual de passageiros (artigo 12-A), por meio do serviço de “taxi”.

Não por outra razão que a Lei Federal n. 12.468/11, em seu artigo 2º, define como “privativa dos profissionais taxistas a utilização de veículo automotor, próprio ou de terceiros, para o transporte público individual remunerado de passageiros, cuja capacidade será de, no máximo, 7 (sete) passageiros.” (grifo nosso)

Portanto, a Lei Federal n. 12.587/2012, ao estabelecer a política nacional de mobilidade urbana, claramente definiu o transporte motorizado privado de passageiros, como modo de transporte apto a garantir o deslocamento das pessoas no Município, claramente diferenciando esta modalidade do serviço de taxi (transporte público individual de passageiros).  

A opção legislativa foi no sentido de propiciar novos meios aptos a garantir a melhoria da acessibilidade e mobilidade de cargas e pessoas no Município, em atenção ao disposto no artigo 182 da CF, ou seja, visando ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.

Ao assim dispor, o legislador federal impôs uma espécie de bloqueio legislativo ao legislador municipal, ao qual não se autoriza, nem mesmo a pretexto de legislar sobre assuntos de interesse local (artigo 30, I, da CF), excluir algum dos modos de transporte individual de passageiros contemplados na lei federal.

Cabe ao Município, portanto, apenas suplementar as diretrizes contidas na Lei Federal n. 12.587/12, nos termos dos artigos 30, I e II, da Constituição Federal, mas não proibir o transporte privado motorizado.

Assim, o ato normativo impugnado ao proibir o transporte remunerado de pessoas em veículos particulares cadastrados através de aplicativos, afastou-se daquelas diretrizes estabelecidas na lei federal, pois proibiu qualquer forma de transporte individual de passageiros distinto do serviço de “taxi”, colidindo, assim, diretamente com a opção do legislador federal.

Houve, portanto, invasão da esfera de competência legislativa da União, prevista no artigo 22, IX, da Constituição Federal, violando, assim, o artigo 144 da CE/89.

Nem se alegue que a vedação ao transporte individual privado contida nas leis municipais decorreria do disposto no artigo 12 da Lei Federal nº 12.587/2012, segundo o qual os “serviços de utilidade pública de transporte individual de passageiros deverão ser organizados, disciplinados e fiscalizados pelo poder público municipal, com base nos requisitos mínimos de segurança, de conforto, de higiene, de qualidade dos serviços e de fixação prévia dos valores máximos das tarifas a serem cobradas”.

Isto porque tal dispositivo carreou ao Município a responsabilidade por organizar, disciplinar e fiscalizar estes serviços e, em relação ao transporte privado, permite que dentro do exercício do poder de polícia, fixe normas para que sejam observados requisitos mínimos de segurança, conforto e higiene, não havendo espaço para a proibição total do serviço.

No mesmo sentido, os artigos 107 e 135 do Código de Trânsito Brasileiro não podem ser interpretados como normas proibitivas do transporte privado de passageiros, sobretudo após a edição da Lei Federal nº 12.587/12, pois apenas reiteram a possibilidade de serem estabelecidas normas de segurança, higiene e conforto, com base no poder de polícia.

Tais dispositivos explicitam apenas que ao poder público, de forma proporcional e razoável, compete fixar normas de segurança, higiene e conforto para o exercício do transporte privado de passageiros, mas nunca proibi-los, indistintamente, como na espécie.

Neste contexto, vale realçar que o rápido desenvolvimento dos centros urbanos, com as suas consequências indesejáveis, dentre elas a dificuldade de locomoção, passam a exigir novas formas de enfrentamento da situação, dentre elas aquela elegida pelo legislador federal (transporte privado de passageiros) a fim de dar efetiva aplicabilidade ao artigo 182 da CF e ao artigo 180 da CE/89.

Assim, ao disciplinar matéria de competência da União, o legislador municipal extrapolou sua competência limitada a disciplinar matéria de interesse predominantemente local.

Ainda que assim não fosse, o assunto, em termos acadêmicos, foi bem examinado por Fernanda Menezes Dias de Almeida assentando que a colisão de competências resolve-se pela prevalência das “determinações emanadas do titular da competência legislativa privativa” (Competências na Constituição de 1988, São Paulo: Atlas, 2ª ed., p. 159).

A autonomia das entidades federativas pressupõe repartição de competências legislativas, administrativas e tributárias. Trata-se de um dos pontos caracterizadores e asseguradores da existência e de harmonia do Estado Federal.

A base do conceito do Estado Federal reside exatamente na repartição de poderes autônomos, que, na concepção tridimensional do Estado Federal Brasileiro, se dá entre a União, os Estado e os Municípios. É através desta distribuição de competências que a Constituição Federal garante o princípio federativo. O respeito à autonomia dos entes federativos é imprescindível para a manutenção do Estado Federal.

O princípio federativo está assentado nos arts. 1º e 18 da Constituição da República, bem como no art. 1º da Constituição Paulista.

Referindo-se aos princípios fundamentais da Constituição, que revelam as opções políticas essenciais do Estado, José Afonso da Silva aponta que entre eles podem ser inseridos, entre outros, “os princípios relativos à existência, forma, estrutura e tipo de Estado: República Federativa do Brasil, soberania, Estado Democrático de Direito (art. 1º)” (Curso de direito constitucional positivo, 13. ed., São Paulo, Malheiros, 1997, p. 96, g.n.).

Um dos aspectos de maior relevo, que representa a dimensão e alcance do princípio do pacto federativo adotado pelo Constituinte em 1988, é justamente o que se assenta nos critérios adotados pela Constituição Federal para a repartição de competências entre os entes federativos, bem como a fixação da autonomia e dos respectivos limites, dos Estados, Distrito Federal e Municípios, em relação à União.

Por essa linha de raciocínio, pode-se afirmar que a Lei Municipal que trate de matéria cuja competência é do legislador federal ou estadual está, ao desrespeitar a repartição constitucional de competências, a violar o princípio federativo.

A prescrição de que os Municípios devem observar os princípios constitucionais estabelecidos não se encontra apenas no art. 144 da Constituição Paulista. O art. 29, caput, da Constituição Federal, prevê que os Municípios, ao editarem suas leis orgânicas deverão respeitar os “princípios estabelecidos nesta Constituição, na Constituição do respectivo Estado”.

Dessa forma, no conflito normativo aqui analisado, conclui-se que os atos normativos impugnados, invadiram espaço reservado à competência normativa federal, violando a repartição constitucional de competências, que é a manifestação mais contundente do princípio federativo, operando, por consequência, desrespeito a princípio constitucional estabelecido.

Essa é a razão pela qual restou configurada, no caso, a ofensa ao disposto no art. 1º e no art. 144, ambos da Constituição do Estado de São Paulo.

IV - DA VIOLAÇÃO AOS PRINCÍPIOS DA LIVRE INICIATIVA, LIVRE CONCORRÊNCIA E DOS DIREITOS DO CONSUMIDOR

Acerca da livre iniciativa dispõe a Constituição Federal:

“Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

(...)

IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;”

(...)

Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

(...)

IV - livre concorrência;

V - defesa do consumidor;”

Consoante demonstrado, a Lei Federal nº 12.587/2012, que instituiu as diretrizes da Política Nacional de Mobilidade Urbana, fixou a modalidade de transporte privado individual de passageiros, distinguindo-a do transporte público individual de passageiros.

A Lei Federal nº 12.468/2011, em seu artigo 2º, considerou privativo dos taxistas apenas o serviço de transporte público individual remunerado de passageiros.

Assim, a Lei nº 11.804/2015, do Município de São José do Rio Preto, ao proibir a prestação do serviço de transporte privado de passageiros por meio de aplicativos, acabou por criar, de forma indevida, reserva de mercado em prol dos “taxistas”, ceifando a possibilidade do livre exercício de atividade privada por meio de motoristas profissionais.

Da mesma forma, as leis locais atacadas acabaram por coibir o livre exercício da atividade de empresas desenvolvedoras de aplicativos e soluções tecnológicas para serviços de transporte de passageiros.

A vedação à livre iniciativa acaba por fragilizar a livre concorrência, prejudicando, ao final, os próprios consumidores, pois obstados da ampla possibilidade de escolha.

Estudo carreado pelo CADE aos autos da Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 2216901-06.2015.8.26.0000, que tem como objeto Lei Paulistana análoga a ora impugnada, apontou que:

“(...) não há elementos econômicos que justifiquem a proibição de novos prestadores de serviços de transporte individual. Para além disso, elementos econômicos sugerem que, sob uma ótica concorrencial e do consumidor, a atuação de novos agentes tende a ser positiva.”

Portanto a expressão “e veículos particulares” contida no art. 31 da Lei nº 2.358/2014, e a Lei nº 2.421/2015, ambas do Município de Barueri, ao proibirem a prestação de serviço de transporte privado de passageiros por meio de aplicativos, criando indevida reserva de mercado aos taxistas, acabaram por violar a livre iniciativa, a livre concorrência e o interesse dos consumidores.

Nesse sentido, decidiu este Colendo Órgão Especial, ao declarar a inconstitucionalidade da Lei Paulista n° 16.279/2015, análoga a lei ora impugnada, in verbis:

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE – LEI MUNICIPAL QUE DISPÕE SOBRE PROIBIÇÃO DO USO DE CARROS PARTICULARES CADASTRADOS EM APLICATIVOS PARA O TRANSPORTE REMUNERADO INDIVIDUAL DE PESSOAS NO MUNICÍPIO DE SÃO PAULO. PRELIMINARES SUSCITADAS PELO PRESIDENTE DA CÂMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO QUE NÃO COMPORTAM ACOLHIDA – REPRESENTAÇÃO PROCESSUAL DA AUTORA REGULARIZADA – LEGITIMIDADE ATIVA CONFIGURADA – ENTIDADE SINDICAL DE ÂMBITO NACIONAL – PERTINÊNCIA TEMÁTICA EVIDENCIADA, POR REPRESENTAR PRESTADORES DE SERVIÇO – CONFLITO DE INTERESSES NÃO DEMONSTRADO – PRESENÇA, ADEMAIS, DE INTERESSE PROCESSUAL – POSSÍVEL O EXAME DE CONFORMIDADE ENVOLVENDO NORMA CONSTITUCIONAL ESTADUAL DE CARÁTER REMISSIVO (ART. 144, CE) – TEMAS DEBATIDOS DE CONTEÚDO PRINCIPIOLÓGICO E DE OBSERVÂNCIA OBRIGATÓRIA PELOS MUNICÍPIOS. ATO NORMATIVO QUE NÃO INVADE COMPETÊNCIA LEGISLATIVA CONSTITUCIONAL DE ENTE FEDERADO DIVERSO – TEMA CENTRAL DA CONTROVÉRSIA (TRANSPORTE) QUE AFETA UNIÃO, ESTADOS E MUNICÍPIOS – ENTE MUNICIPAL QUE OSTENTA COMPETÊNCIA PARA LEGALMENTE DISPOR SOBRE ASSUNTO DE INTERESSE LOCAL NO ÂMBITO DE SEUS LIMITES GEOGRÁFICOS – DIPLOMA ATACADO QUE NÃO INSTITUI REGRA DE CARÁTER GERAL SOBRE TRANSPORTE, DIREITO CIVIL OU INTERNET. TRANSPORTE INDIVIDUAL REMUNERADO DE PASSAGEIROS POR MOTORISTAS PARTICULARES CADASTRADOS EM APLICATIVOS – PROIBIÇÃO, DIRETA E OBJETIVA, INSTITUÍDA PELO ATO NORMATIVO IMPUGNADO – CONSIDERAÇÕES SOBRE O SISTEMA ADOTADO PELA ORDEM ECONÔMICA NACIONAL – PRINCÍPIOS E VALORES ELEMENTARES FUNDADOS NA LIBERDADE ECONÔMICA – EXAME DE ADEQUAÇÃO DA ATIVIDADE COMO SERVIÇO PÚBLICO OU ATIVIDADE ECONÔMICA EM SENTIDO ESTRITO – AUSÊNCIA DE PREVISÃO CONSTITUCIONAL OU LEGAL QUE A QUALIFIQUE COMO ATIVIDADE PRIVATIVA OU TITULARIZADA PELO ESTADO, DIVERSAMENTE DO TRANSPORTE COLETIVO MUNICIPAL (ART. 30, INCISO V, CR) – POLÍTICA NACIONAL DE MOBILIDADE URBANA QUE CONFORMA O TRANSPORTE PRIVADO INDIVIDUAL DE PASSAGEIROS, INSERINDO-O NOS MODAIS DE MOBILIDADE URBANA (ART. 3º, §2º, INCISO III, ALÍNEA 'B' DA LEI Nº 12.587/2012) – NATUREZA JURÍDICA DE ATIVIDADE PRIVADA EVIDENCIADA – SERVIÇO DE TRANSPORTE PÚBLICO INDIVIDUAL DE PASSAGEIROS (TÁXIS) QUE GUARDA CARACTERÍSTICAS PRÓPRIAS E DISTINTIVAS – ATIVIDADE PRIVADA QUE É RESGUARDADA PELA LIVRE INICIATIVA – ESTÍMULO À LIVRE CONCORRÊNCIA, INCREMENTANDO BENEFÍCIOS SOCIALMENTE DESEJÁVEIS, INCLUINDO AMPLIAÇÃO DO LEQUE DE ESCOLHA DO CONSUMIDOR – NORMA PURAMENTE PROIBITIVA QUE CONTRARIA PRINCÍPIOS ELEMENTARES DA ORDEM ECONÔMICA, COMO LIVRE INICIATIVA, LIVRE CONCORRÊNCIA E DEFESA DO CONSUMIDOR (ARTS. 1º, INCISO IV, E 170 'CAPUT' E INCISO IV, V E PARÁGRAFO ÚNICO DA CR) – EXCEPCIONAL INTERVENÇÃO ESTATAL NO ÂMBITO DA INICIATIVA PRIVADA QUE SOMENTE SE LEGITIMA QUANDO FUNDADA EM RAZÕES JURÍDICO-CONSTITUCIONAIS RELEVANTES, NUM EXAME DE PROPORCIONALIDADE, O QUE NÃO OCORRE – VIOLAÇÃO DIRETA DOS ARTIGOS 144 E 275 DA CONSTITUIÇÃO ESTADUAL – TÉCNICA DA INTERPRETAÇÃO CONFORME QUE NÃO SE MOSTRA POSSÍVEL NA HIPÓTESE – PRETENSÃO INICIAL PROCEDENTE.” (TJ/SP; Órgão Especial; ADI 2216901-06.2015.8.26.0000; Des. Rel. Francisco Casconi; D.J. 05/10/2016). – grifo nosso.

O mesmo entendimento foi aplicado em relação à Lei semelhante, senão idêntica do Município de Sorocaba. Senão vejamos:

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - LEI MUNICIPAL QUE DISPÕE SOBRE PROIBIÇÃO DO USO DE CARROS PARTICULARES CADASTRADOS EM APLICATIVOS PARA O TRANSPORTE REMUNERADO INDIVIDUAL DE PESSOAS NO MUNICÍPIO DE SOROCABA/SP. ATO NORMATIVO (LEI Nº 11.227/2015, DO MUNICÍPIO DO SOROCABA/SP) QUE NÃO INVADE COMPETÊNCIA LEGISLATIVA CONSTITUCIONAL DE ENTE FEDERADO DIVERSO TEMA CENTRAL DA CONTROVÉRSIA (TRANSPORTE) QUE AFETA UNIÃO, ESTADOS E MUNICÍPIOS ENTE MUNICIPAL QUE OSTENTA COMPETÊNCIA PARA LEGALMENTE DISPOR SOBRE ASSUNTO DE INTERESSE LOCAL NO ÂMBITO DE SEUS LIMITES GEOGRÁFICOS DIPLOMA ATACADO QUE NÃO INSTITUI REGRA OU DIRETRIZ DE CARÁTER GERAL SOBRE TRANSPORTE E TRÂNSITO. TRANSPORTE INDIVIDUAL REMUNERADO DE PASSAGEIROS POR MOTORISTAS PARTICULARES CADASTRADOS EM APLICATIVOS PROIBIÇÃO, DIRETA E OBJETIVA, INSTITUÍDA PELO ATO NORMATIVO IMPUGNADO POLÍTICA NACIONAL DE MOBILIDADE URBANA QUE CONFORMA O TRANSPORTE PRIVADO INDIVIDUAL DE PASSAGEIROS, INSERINDOO NOS MODAIS DE MOBILIDADE URBANA (ART. 3º, §2º, INCISO III, ALÍNEA 'B' DA LEI Nº 12.587/2012) NATUREZA JURÍDICA DE ATIVIDADE PRIVADA EVIDENCIADA SERVIÇO DE TRANSPORTE PÚBLICO INDIVIDUAL DE PASSAGEIROS (TÁXIS) QUE GUARDA CARACTERÍSTICAS PRÓPRIAS E DISTINTIVAS ATIVIDADE PRIVADA QUE É RESGUARDADA PELA LIVRE INICIATIVA ESTÍMULO À LIVRE CONCORRÊNCIA, INCREMENTANDO BENEFÍCIOS SOCIALMENTE DESEJÁVEIS, INCLUINDO AMPLIAÇÃO DO LEQUE DE ESCOLHA DO CONSUMIDOR NORMA PURAMENTE PROIBITIVA QUE CONTRARIA PRINCÍPIOS ELEMENTARES DA ORDEM ECONÔMICA, COMO LIVRE INICIATIVA, LIVRE CONCORRÊNCIA E DEFESA DO CONSUMIDOR (ARTS. 1º, INCISO IV, E 170 'CAPUT' E INCISO IV, V E PARÁGRAFO ÚNICO DA CR) EXCEPCIONAL INTERVENÇÃO ESTATAL NO ÂMBITO DA INICIATIVA PRIVADA QUE SOMENTE SE LEGITIMA QUANDO FUNDADA EM RAZÕES JURÍDICO-CONSTITUCIONAIS RELEVANTES, NUM EXAME DE PROPORCIONALIDADE, O QUE NÃO OCORRE VIOLAÇÃO DIRETA DOS ARTIGOS 144 E 275 DA CONSTITUIÇÃO ESTADUAL PRETENSÃO INICIAL PROCEDENTE. ADIN nº nº 2095314-80.2016.8.26.0000. Rel. Des. FRANCISCO CASCONI, j. 15 de fevereiro de 2017.

 

V – PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE

Ademais, o atos normativo impugnado contraria o princípio da razoabilidade, numa análise de proporcionalidade, que deve nortear a Administração Pública e a atividade legislativa e tem assento no art. 111 da Constituição do Estado, aplicável aos Municípios por força do art. 144 da mesma Carta.

         Por força desse princípio, é necessário que a norma passe pelo denominado “teste” de razoabilidade, ou seja, que ela seja: (a) necessária (a partir da perspectiva dos anseios da Administração Pública); (b) adequada (considerando os fins públicos que com a norma se pretende alcançar); e (c) proporcional em sentido estrito (que as restrições, imposições ou ônus dela decorrentes não sejam excessivos ou incompatíveis com os resultados a alcançar).

         A proibição da prestação de serviço de transporte privado individual de passageiros, contratado por meio de aplicativos, não passa por nenhum dos critérios do teste de razoabilidade: (a) é desnecessária, já que não atende a nenhuma necessidade da Administração Pública; (b) é, por consequência, inadequada na perspectiva do interesse público, na medida em que proíbe atividade lícita através de lei municipal; (c) é desproporcional em sentido estrito, pois a vedação inegavelmente traduz mais prejuízos do que vantagens à mobilidade urbana das cidades, tendo em vista que não acarretarão benefício algum para a Administração Pública.

         Manifesta-se claramente o desrespeito ao princípio da razoabilidade, pela desnecessidade de previsão normativa e por sua inadequação do ponto de vista do Poder Público, bem ainda pela falta de proporcionalidade em sentido estrito, ao proibir a prestação de serviço de transporte privado individual de passageiros, contratado por meio de aplicativos.

Aliás, este Egrégio Tribunal de Justiça julgou procedente nos autos da ação direta de inconstitucionalidade nº 2216901-06.2015.8.26.0000 (j. 05-10-2016, rel. Francisco Casconi), lei do Município de São Paulo, em situação análoga à esse caso, embasando a decisão, primordialmente, no princípio da proporcionalidade (fls. 69/74 do acórdão), onde destacamos:

“(...) Avançando o raciocínio, mas rememorando o já exposto, a atividade objeto de proibição pelo ato normativo impugnado pode ser decomposta na prestação de dois serviços distintos, mas que operam de forma conjunta: a) o primeiro deles consiste na disponibilização em ambiente virtual (aplicativo desenvolvido por empresa privada) de oferta, aos usuários desta plataforma, de serviço específico (no caso, de transporte individual), a ser prestado por profissionais previamente cadastrados; b) o segundo, pressupondo a contratação pelo usuário e aceitação pelo motorista, é a realização material do transporte individual, com base nos critérios (localização, destino, trajeto, modalidade etc.) escolhidos pelo usuário/contratante.

Como dito, a controvérsia gira em torno, preponderantemente, da “segunda atividade” (o transporte), mesmo porque organização e oferta de bens e serviços em ambientes virtuais seja na própria internet, seja em aplicativos especificamente desenvolvidos não são novas e os exemplos inúmeros.

Sua natureza, como visto, assume contornos próprios das atividades reservadas à livre iniciativa, sujeita à liberdade de exploração por agentes privados atuantes no mercado, com respaldo nos princípios estruturantes e regentes da ordem econômica constitucional.

Eventuais contingenciamentos ou limitações impostas pelo Poder Público, pautadas na excepcionalidade da atuação estatal inerente ao modelo econômico em vigor, somente serão legítimas quando fundadas em razões ou valores jurídico-constitucionais plausíveis, numa análise de proporcionalidade.

Em linhas gerais, trata-se da aplicação, na relação indivíduo-Estado, do que Robert Alexy nomeou “lei do sopesamento”, incidente na análise das restrições de liberdades gerais de ação, ao mencionar decisão do Tribunal Alemão que afirmou a seguinte máxima, serviente ao presente caso: “Quanto mais a intervenção legal afetar expressões elementares da liberdade de ação humana, tanto mais cuidadosamente devem ser sopesadas as razões utilizadas como fundamentação contra a pretensão básica de liberdade dos cidadãos”.

É o que ocorre, por exemplo, com as profissões legalmente regulamentadas (v.g. advogados, médicos etc.). À luz do princípio da liberdade de trabalho (art. 5º, inciso XIII, da CR), a relevância de critérios técnico-científicos de certas profissões habilita o Estado a estabelecer requisitos objetivos e específicos de acesso para aquisição de titulação acadêmica e exercício da atividade, visando a assegurar, pois, uma profissionalização adequada em prol não só do indivíduo, mas também da sociedade, o que se conforma também ao princípio da livre iniciativa. Entretanto, postura similar não poderia ser exigida pelo ente estatal em relação a atividades mais simples que, embora categorizáveis profissionalmente, dispensam mesmo nível de qualificação.

Calcada em tal premissa, a Lei Federal nº 12.468/2011, que regulamenta a profissão de taxista, exige requisitos específicos (habilitação especial, cursos, certificação etc.) dos motoristas que buscam exercer a atividade justamente em razão dos relevantes interesses envolvidos no “transporte público individual remunerado de passageiros” (art. 2º), como a segurança dos usuários, proteção dos próprios motoristas taxistas, controle de trânsito e transporte público, dentre outros, vinculados à prestação do serviço sob o forte controle estatal.

No que tange ao transporte privado individual remunerado de passageiros realizado por motoristas particulares cadastrados em aplicativos, reforça a ideia de sujeição à livre iniciativa a inexistência de norma jurídica específica (no âmbito constitucional ou legal) a dispor sobre o exercício da atividade, tampouco a caracterizando como serviço público ou monopólio estatal.

Aliás, a ausência de disciplina normativa sobre determinada atividade, num regime pautado pela liberdade econômica dosada por valores sociais constitucionalmente relevantes, conforta juridicamente sua livre introdução e exploração no mercado pela iniciativa privada, ainda que em regime de coexistência a serviços similares de natureza pública (no que se enquadra o transporte público individual táxi) ou privada.

Esta visão, respaldada num enfoque principiológico, indubitavelmente deve ser aplicada à controvérsia primordial destes autos, pondo em xeque as razões jurídico-constitucionais que emanciparam a vedação incorporada no ato normativo impugnado... Razões estas, a meu ver, implausíveis, principalmente quando se impõe restrição máxima à livre iniciativa, criando injustificada reserva de mercado a determinado segmento (artigos 1º e 2º da Lei Municipal nº 16.279/2015 fls. 579/580).

Isto porque, no contexto fático-social já traçado e à luz do ordenamento jurídico vigente, o transporte privado individual realizado por motoristas particulares cadastrados em aplicativos não contraria as diretrizes traçadas na Política Nacional da Mobilidade Urbana, ao passo que o ato normativo impugnado parece desconsiderar modalidade nela inserida.

Na realidade, a inserção da atividade é convergente à LPNMU por múltiplos fundamentos. Inegavelmente ampliou o leque das opções de mobilidade urbana, constituindo alternativa, até então pouco explorada, ao transporte individual de passageiros. Sua expansão vertical guarda íntima relação com a eficiência, qualidade, preço e praticidade do serviço prestado, associada ainda ao modo de organização e disponibilização da oferta (aplicativo), principalmente quando comparada ao tradicional meio de transporte urbano individual preexistente (táxi). Tal notoriedade, aliás, é qualificada pelo amicus curiae como “verdadeira inovação tecnológica disruptiva”, em vista da “utilização da capacidade ociosa de bens duráveis, no caso, o automóvel particular”47 criando novo nicho de mercado.

Deve ser vista, portanto, como instrumento de melhor efetividade na circulação urbana (artigo 5º, inciso IX), de estímulo à mitigação dos custos econômicos no deslocamento de usuários do transporte urbano individual (artigo 6º, inciso IV), bem como de aprimoramento e melhoria nas condições de mobilidade urbana (artigo 7º, incisos III e V), atendendo, ao mesmo tempo, a princípios, diretrizes e objetivos da LPNMU que, em seus artigos 1º e 24, inciso V, traz como norte a integração entre os diferentes modos de transporte público e privado.

Sua forma de atuação no ramo de transporte, marcada por característica inovadora (oferta e disponibilização do serviço em ambiente virtual, mediante aplicativo para smartphones), é traço singular que jamais objetaria a atividade, mesmo porque acolhida na Lei do Marco Civil da Internet (Lei Federal nº 12.965/2014), especialmente nos artigos 3º, inciso VIII, e 4º, inciso III, num óbvio reflexo da livre iniciativa que, aliás, foi expressamente incorporada como fundamento de aludido diploma (artigo 2º, inciso V) (...)” (grifamos)

E assim conclui o raciocínio (fls. 82/86 do acórdão):

“(...) Portanto, condensando as conclusões previamente alcançadas neste tópico, todas conducentes à sustentação de que o transporte individual remunerado de passageiros por motoristas particulares cadastrados em aplicativos ostenta natureza jurídica de atividade privada sujeita à livre iniciativa, a direta e incisiva proibição legal de exercício, instituída no ato normativo impugnado, não externa fundamento jurídico-constitucional relevante a obstar, num juízo de “sopesamento” ou proporcionalidade, o âmbito de eficácia dos valores elementares que guiam a ordem econômica incorporada no Estado Brasileiro.

Ao contrário, as razões aqui expostas demonstram que o novo modal da atividade é conformado pelo sistema jurídico vigente de transporte e contribui, de maneira concreta, mediante estímulos de reais melhorias na mobilidade urbana das cidades, ao desenvolvimento social e bem-estar dos cidadãos, promovendo também, ultima ratio, o direito fundamental de locomoção. A vedação somatizada em lei afigura-se, portanto, irrazoável.

A propósito, o dissertar sobre o princípio da razoabilidade, Humberto Ávila enaltece sua importância no processo de inovação do mundo jurídico e de vinculação à realidade em passagem que, mutatis mutandi, amolda-se ao caso em exame: “a razoabilidade é empregada como diretriz que exige uma vinculação das normas jurídicas com o mundo ao qual elas fazem referência, seja reclamando a existência de um suporte empírico e adequado a qualquer ato jurídico, seja demandando uma relação congruente entre a medida adotada e o fim que ela pretende atingir. (...) Citando exemplo prático, enfrentado pelo STF na ADI nº 1.158-8-AM, rel. Min. Celso de Mello, j. em 19.12.1994, acrescentou: “Uma lei estadual instituiu adicional de férias de um terço para os inativos. Levada a questão a julgamento, considerou-se indevido o referido adicional, por traduzir uma vantagem destituída de causa e do necessário coeficiente de razoabilidade, na medida em que só deve ter adicional de férias quem tem férias. Como consequência disso, a instituição do adicional foi anulada, em razão de violar o devido processo legal, que atua como decisivo obstáculo à edição de atos legislativos de conteúdo arbitrário ou irrazoável. (...) Nesses casos o legislador elege uma causa inexistente ou insuficiente para a atuação estatal. Ao fazê-lo, viola a exigência de vinculação à realidade. A interpretação das normas exige o confronto com parâmetros externos a elas. Daí se falar em dever de congruência e de fundamentação na natureza das coisas (Natur der Sache). Os princípios constitucionais do Estado de Direito (art. 1º) e do devido processo legal (art. 5º, LIV) impedem a utilização de razões arbitrárias e a subversão dos procedimentos institucionais utilizados. Desvincular-se da realidade é violar os princípios do Estado de Direito e do devido processo legal”.

Nesta mesma linha o posicionamento do C. Supremo Tribunal Federal, consoante se afere em trecho de ementa de outro julgado:

“TODOS OS ATOS EMANADOS DO PODER PÚBLICO ESTÃO NECESSARIAMENTE SUJEITOS, PARA EFEITO DE SUA VALIDADE MATERIAL, À INDECLINÁVEL OBSERVÂNCIA DE PADRÕES MÍNIMOS DE RAZOABILIDADE. - As normas legais devem observar, no processo de sua formulação, critérios de razoabilidade que guardem estrita consonância com os padrões fundados no princípio da proporcionalidade, pois todos os atos emanados do Poder Público devem ajustar-se à cláusula que consagra, em sua dimensão material, o princípio do 'substantive due process of law'. Lei Distrital que, no caso, não observa padrões mínimos de razoabilidade. A EXIGÊNCIA DE RAZOABILIDADE QUALIFICA-SE COMO PARÂMETRO DE AFERIÇÃO DA CONSTITUCIONALIDADE MATERIAL DOS ATOS ESTATAIS. - A exigência de razoabilidade - que visa a inibir e a neutralizar eventuais abusos do Poder Público, notadamente no desempenho de suas funções normativas - atua, enquanto categoria fundamental de limitação dos excessos emanados do Estado, como verdadeiro parâmetro de aferição da constitucionalidade material dos atos estatais. APLICABILIDADE DA TEORIA DO DESVIO DE PODER AO PLANO DAS ATIVIDADES NORMATIVAS DO ESTADO. - A teoria do desvio de poder, quando aplicada ao plano das atividades legislativas, permite que se contenham eventuais excessos decorrentes do exercício imoderado e arbitrário da competência institucional outorgada ao Poder Público, pois o Estado não pode, no desempenho de suas atribuições, dar causa à instauração de situações normativas que comprometam e afetem os fins que regem a prática da função de legislar.” (ADI 2667 MC, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Tribunal Pleno, julgado em 19/06/2002, DJ 12-03-2004 PP-00036 EMENT VOL-02143-02 PP-00275).

In casu, razoabilidade haveria na proibição legal de atividade econômica em sentido estrito (o transporte privado individual remunerado de passageiros), sujeita ao princípio da livre iniciativa, que, além de inserida na Política Nacional de Mobilidade Urbana, pode contribuir com o desenvolvimento urbano e social das cidades (art. 182, CR)? Conclui-se, obviamente, ser negativa a resposta.

Não bastasse, também sob o especial aspecto da proporcionalidade, entende-se que o ato normativo, na análise da relação de causalidade entre meio e fim, deve guardar adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito.

Como enfatiza Humberto Ávila:

“O postulado da proporcionalidade exige que o Poder Legislativo e o Poder Executivo escolham, para a realização de seus fins, meios adequados, necessários e proporcionais. Um meio é adequado se promove um fim. Um meio é necessário se, dentre todos aqueles meios igualmente adequados para promover o fim, for o menos restritivo relativamente aos direitos fundamentais. E um meio é proporcional, em sentido estrito, se as vantagens que promove superam as desvantagens que provoca. A aplicação da proporcionalidade exige a relação de causalidade entre meio e fim, de tal sorte que, adotando-se o meio, promove-se o fim”.

A hipótese sub examine claramente revela, ao menos, além da inadequação do meio (proibição de atividade lícita por lei municipal) por contrariar o ordenamento superior, absoluta ausência de proporcionalidade em sentido estrito, eis que aludida vedação inegavelmente traduz mais prejuízos do que vantagens à mobilidade urbana das cidades (...).” (grifamos)

VI – DOS PEDIDOS

1.    Do Pedido Liminar

Presentes os pressupostos do fumus boni iuris e do periculum in mora, bastantes para autorizar a suspensão liminar da vigência e eficácia do preceito normativo impugnado.

A aparência do bom direito se mostra inquestionável pela apreciação de todos os motivos acima elencados, a demonstrar a inconstitucionalidade da lei municipal.

O perigo da demora decorre da inviabilização da utilização de serviços de tecnologia por motoristas particulares, não taxistas, e a própria realização do transporte individual privado, com evidentes prejuízos não só aos motoristas particulares e funcionários das empresas desenvolvedoras do aplicativo – que se veem privados de auferir renda – mas também de diversos consumidores, usuários do serviço, que são privados de uma modalidade de transporte.

Diante do exposto, requer-se a concessão da liminar, para fins de suspensão imediata da eficácia do diploma legal impugnado.

2.    Do pedido principal

         Face ao exposto, requerendo o recebimento e o processamento da presente ação para que, ao final, seja julgada procedente para declarar a inconstitucionalidade da Lei nº 11.804, de 15 de setembro de 2015, do Município de São José de Rio Preto.

         Requer-se ainda sejam requisitadas informações à Câmara Municipal e ao Prefeito Municipal de São José de Rio Preto, bem como citado o Procurador-Geral do Estado para se manifestar sobre os atos normativos impugnados, protestando por nova vista, posteriormente, para manifestação final.

Termos em que, pede deferimento.

 

São Paulo, 04 de maio de 2017.

 

 

 

Gianpaolo Poggio Smanio

Procurador-Geral de Justiça

 

 

 

 

aca

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Protocolado nº 19.580/2017

Assunto: Representação para o controle de Constitucionalidade da Lei nº 11.804, de 15 de setembro de 2015, do Município de São José do Rio Preto que, Dispõe no âmbito do Município de São José do Rio Preto, sobre a proibição do uso de carros particulares cadastrados em aplicativos para o transporte remunerado individual de pessoas e dá outras providências.

 

 

 

 

1.                Distribua-se a petição inicial da ação direta de inconstitucionalidade da Lei nº 11.804, de 15 de setembro de 2015, do Município de São José do Rio Preto, junto ao Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

2.                Oficie-se ao interessado, informando-lhe a propositura da ação, com cópia da petição inicial.

 

São Paulo, 04 de maio de 2017.

 

 

Gianpaolo Poggio Smanio

Procurador-Geral de Justiça

 

aca