Excelentíssimo Senhor Doutor Desembargador Presidente do Egrégio Tribunal
de Justiça do Estado de São Paulo
Protocolado
n. 6.613/2017
Ementa: Constitucional. Administrativo. Ação Direta Inconstitucionalidade. Concurso público. Polícia Militar. Inciso III do Artigo 3º da Lei Complementar nº 1.291, de 22 de julho de 2016, do Estado de São Paulo, que veda a inscrição de candidato que possua tatuagem visível na hipótese do uso do uniforme desportivo militar. Vedação de acesso aos cargos públicos. Princípios da isonomia, razoabilidade e proporcionalidade. Inconstitucionalidade. 1. Viola os princípios constitucionais da isonomia, razoabilidade e proporcionalidade, bem como a regra de amplo acesso aos cargos públicos, o impedimento de inscrição em concurso para a carreira militar, de pessoas que possuam tatuagem aparente ao uso de uniforme desportivo (manga curta e bermuda). 2. Situação que não promove, por si só, embaraço à atividade ou autoridade policial e nem demérito à imagem da corporação castrense (arts. 111 e 115, I e II CE/89).
O Procurador-Geral de Justiça do
Estado de São Paulo, no exercício da atribuição prevista no art.
116, VI, da Lei Complementar Estadual n. 734, de 26 de novembro de 1993 (Lei
Orgânica do Ministério Público do Estado de São Paulo), em conformidade com o
disposto no art. 125, § 2º, e no art. 129, IV, da Constituição Federal, e,
ainda, nos arts. 74, VI, e 90, III, da Constituição do Estado de São Paulo, com
amparo nas informações colhidas no incluso protocolado, vem, respeitosamente,
perante esse egrégio Tribunal de Justiça, promover a presente AÇÃO
DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE em face do inciso III do artigo 3º da Lei
Complementar nº 1.291, de 22 de julho de 2016, do Estado de São Paulo, pelos fundamentos a seguir expostos:
I – O
Ato Normativo Impugnado
No Estado de São Paulo foi editada a Lei Complementar n.
1.291, de 22 de julho de 2016, que institui a Lei de Ingresso na Polícia Militar do Estado de São Paulo dá outras
providências.
O art. 3º, estabelecendo os requisitos necessários
para a inscrição no concurso de ingresso, prevê o seguinte:
“Artigo 3º - O candidato ao ingresso não poderá apresentar tatuagem que, nos
termos do detalhamento constante nas normas do Comando da Polícia Militar:
I - divulgue símbolo ou inscrição ofendendo valores e deveres éticos
inerentes aos integrantes da Polícia Militar;
II - faça alusão a:
a) ideologia terrorista ou extremista contrária às instituições
democráticas ou que pregue a violência ou a criminalidade;
b) discriminação ou preconceito de raça, credo, sexo ou origem;
c) ideia ou ato libidinoso;
d) ideia ou ato ofensivo aos direitos humanos;
III - seja visível na
hipótese do uso de uniforme que comporte camisa de manga curta e bermuda,
correspondente ao uniforme operacional de verão”.
O inciso III do art. 3º padece de
inconstitucionalidade, conforme a seguir exposto.
II – O parâmetro da
fiscalização abstrata de constitucionalidade
O art. 3º, inciso III da
Lei Complementar nº 1.291, de 22 de julho de 2016 contraria frontalmente a
Constituição do Estado de São Paulo, bem como a Constituição Federal, à qual
está subordinada a produção normativa estadual, ante a previsão do art. 25 da Constituição
Federal.
Os preceitos da
Constituição Federal são aplicáveis aos Estados por força de seu art. 25, que
assim estabelece:
“Artigo 25 – Os Estados organizam-se e regem-se pelas Constituições e leis que adotarem, observados os princípios desta Constituição”.
O dispositivo impugnado é incompatível com os
seguintes preceitos da Constituição Estadual:
“Artigo 111 – A administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes do Estado, obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, razoabilidade, finalidade, motivação, interesse público e eficiência.
“Artigo 115 – Para a organização da administração pública direta ou indireta, inclusive as fundações instituídas ou mantidas por qualquer dos Poderes do Estado, é obrigatório o cumprimento das seguintes normas:
(...)
I – os cargos, empregos e funções públicas são acessíveis aos brasileiros que preencham os requisitos estabelecidos em lei, assim como aos estrangeiros, na forma da lei;
II – a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia, em concurso público de provas ou de provas e títulos, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão, declarado em lei, de livre nomeação e exoneração”.
A limitação imposta pela legislação estadual mostra-se incompatível com a Constituição Estadual, na medida em que restringe o acesso ao cargo público e viola a isonomia, sendo despida de razoabilidade e proporcionalidade.
III – DA ACESSIBILIDADE AOS CARGOS PÚBLICOS E VIOLAÇÃO AOS OS
PRINCÍPIOS DA ISONOMIA, RAZOABILIDADE E PROPORCIONALIDADE
O artigo 115, incisos I e II da Constituição Estadual reproduz o artigo 37, incisos I e II da Constituição Federal, determinando a ampla acessibilidade de candidatos a cargos públicos, mediante concurso de mérito, desde que preenchidos os requisitos estabelecidos em lei.
De outro lado, o artigo 111 da Carta Estadual, reproduzindo o artigo 37, caput da Carta Federal, determina a observância, dentre outros postulados, do princípio da isonomia pela Administração Pública.
Daí a vedação expressa de diferenciação no acesso ao emprego em função do sexo, cor, idade e estado civil, quando não haja fator consistente de discriminação que assinale para a legitimidade da distinção (art. 115, XXVII c.c. art. 7º, XXX e 39, § 3º da CF/88).
Em outras palavras, a imposição de limitações ao acesso ao cargo público por lei é admitida apenas em situações excepcionais, quando pautadas em critérios de razoabilidade e desde que guardem relação com as atribuições da posição disputada.
Tais restrições, ressalte-se, podem ser amplas e abrangentes, tal como a fixação de idade mínima, ou específicas em relação às peculiaridades de cada carreira, como ocorre com a exigência de aptidão física, necessária para um soldado da polícia militar, mas dispensável para um agente de saúde, por exemplo.
Desse modo, por configurar exceção ao comando constitucional de acesso ao cargo público, é preciso que a exigência específica ou o fator de discriminação seja legitimado pelas circunstâncias que envolvem o desempenho da função.
Tanto não bastasse, além de ser necessária a congruência entre a atividade a ser desempenhada e o fator de discriminação, é também necessário que entre ambos haja proporcionalidade, vedando-se a criação de exigência desarrazoada.
Com efeito, a distinção entre pessoas será considerada discriminatória caso não possua caráter objetivo e razoável, bem como nas hipóteses em que não persiga um fim legítimo ou não tenha uma razoável relação de proporcionalidade entre os meios empregados e o fim a que se destina.
Por isso é
que são razoáveis e constitucionais as vedações inscritas nos incisos I e II do
artigo 3º da lei objurgada, porquanto a tatuagem que divulga símbolo
ou inscrição ofendendo valores e deveres éticos inerentes aos integrantes da
Polícia Militar, bem como aquela que faça alusão à ideologia terrorista ou
extremista contrária às instituições democráticas ou que pregue a violência ou
a criminalidade; discriminação ou
preconceito de raça, credo, sexo ou origem, ideia ou ato libidinoso e ideia ou
ato ofensivo aos direitos humanos, são medidas razoáveis porquanto referidas
tatuagens não se compatibilizam com a carreira castrense.
Ao contrário, a vedação contida no inciso III do artigo 3º, ora questionado, proibindo a inscrição de candidato que possua tatuagem visível na hipótese de uso de uniforme de verão (camisa de manga curta e bermuda), é despida de qualquer razoabilidade, ferindo o princípio da isonomia e da proporcionalidade.
Com efeito,
o dispositivo questionado veda a inscrição de candidato à carreira militar se
ele possuir qualquer tatuagem aparente quando do uso de uniforme de verão,
mesmo quando ela não ofenda valores constitucionais.
A restrição
excessiva, como a que operou a lei municipal em exame, mostra-se despida de
razoabilidade, e por essa razão ofensiva à isonomia de tratamento daqueles que
desejem disputar os aludidos cargos públicos.
Ora, nos dias atuais, a tatuagem não pode ser considerada um estigma ou um sinal depreciativo por si só. A aposição de desenho ou inscrição na pele não mais se apresenta como sinal distintivo de grupos marginais ou minorias étnicas, ou como sinal de rebeldia ou revolta, apresentando-se, para muitos, como sinal de estilo, beleza ou como elemento de afirmação ou integração social.
Não obstante no passado fosse apontado como sinal de marginalidade, atualmente está associado para muitos, à estética e à liberdade de expressão, assegurada constitucionalmente.
Em outras palavras, na sociedade hodierna a tatuagem não representa, por si só, qualquer embaraço à atividade policial, com exceção daquelas que se amoldem aos casos enumerados nos incisos I e II, que sem dúvida alguma trazem desprestígio à corporação.
Sendo socialmente aceitável, o fato de um representante da polícia militar portar sinal desse tipo, perceptível por terceiros, não interfere no desempenho de suas funções, não diminui sua autoridade e não inviabiliza a atuação policial.
Desse modo, é absolutamente irrazoável e desproporcional impedir o acesso à carreira militar de candidato pelo simples fato dele possuir tatuagem aparente quando por ocasião do uso de uniforme de verão.
Tratando de situação análoga, o Col. Tribunal de Justiça de Santa Catarina declarou a inconstitucionalidade de lei estadual que possuía dispositivo de semelhante redação:
“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. QUESTIONAMENTO DOS INCISOS XXV
DO ARTIGO 2º DA LEI COMPLEMENTAR ESTADUAL N. 587/2013 E XXV DO ARTIGO 3º DO
DECRETO ESTADUAL 1.479/2013. PRELIMINAR. ILEGITIMIDADE ATIVA. AFASTAMENTO. PRECEDENTES
DESTE ÓRGÃO ESPECIAL. PEDIDO DE MEDIDA LIMINAR. SUFICIÊNCIA DAS INFORMAÇÕES
PRESTADAS PARA PLENA AVALIAÇÃO DA QUESTÃO EM DISCUSSÃO. ESPECIAL SIGNIFICADO DA
MATÉRIA PARA A ORDEM SOCIAL. POSSIBILIDADE DE JULGAMENTO DIRETO DO MÉRITO.
ARTIGOS 12 DA LEI FEDERAL 9.868/99 E 12 DA LEI ESTADUAL 12.069/01 DE SANTA
CATARINA.
MÉRITO. DISPOSITIVOS QUESTIONADOS QUE IMPEDEM O ACESSO AOS CARGOS DA CARREIRA
MILITAR DE PESSOAS QUE POSSUEM TATUAGENS OU PINTURAS EXTENSAS OU APARENTES AO
USO DE UNIFORMES MILITARES. SITUAÇÃO QUE NÃO REVELA EMBARAÇO À ATIVIDADE
POLICIAL OU DEMÉRITO À BOA IMAGEM DA CORPORAÇÃO CASTRENSE. VIOLAÇÃO AOS
PRINCÍPIOS DA ISONOMIA, RAZOABILIDADE, PROPORCIONALIDADE,
AMPLO ACESSO AOS CARGOS PÚBLICOS E LIBERDADE DE EXPRESSÃO. EXCEÇÃO, PORÉM,
QUANDO EXISTENTE DESENHO CORPORAL DE CARÁTER OFENSIVO ÀS INSTITUIÇÕES
DEMOCRÁTICAS OU QUE INCITE À VIOLÊNCIA OU PROMOVA PRECONCEITO OU DISCRIMINAÇÃO
DE QUALQUER TIPO. APLICAÇÃO DA TÉCNICA DA INTERPRETAÇÃO CONFORME À CONSTITUIÇÃO.
PEDIDOS PROCEDENTES EM PARTE”. (ADI nº 2013.069514-6, Rel. Des. Sérgio Izidoro
Heil, j. 18.12.2013).
Esse também é o entendimento do Col. STF, que em repercussão geral fixou o entendimento que deu origem ao Tema nº 838:
“Editais de concurso público não podem estabelecer
restrição a pessoas com tatuagem, salvo situações excepcionais em razão de
conteúdo que viole valores constitucionais”.
Desse modo, a vedação de inscrição de candidato ao cargo militar única e
exclusivamente pelo fato de possuir tatuagem visível em uniforme esportivo não
deve prevalecer, porquanto afronta aos princípios constitucionais do amplo
acesso aos cargos públicos, da isonomia, da razoabilidade e proporcionalidade e
da liberdade de expressão.
IV – Pedido liminar
À saciedade demonstrado o fumus boni iuris, pela ponderabilidade do direito alegado, soma-se
a ele o periculum in mora. A atual
tessitura do preceito normativo municipal apontado como violadores de
princípios e regras da Constituição do Estado de São Paulo é sinal, de per si, para suspensão de sua
eficácia até final julgamento desta ação, evitando-se atuação desconforme o
ordenamento jurídico, criadora de lesão irreparável ou de difícil reparação, consistente
na negativa de acesso a cargos da carreira de militar àquele que possuir
qualquer tatuagem visível em uniforme esportivo, ainda que não ofenda valores
constitucionais.
À luz desta contextura, requer a concessão de
liminar para suspensão da eficácia, até final e definitivo julgamento desta
ação, do inciso III
do artigo 3º da Lei Complementar nº 1.291, de 22 de julho de 2016, do
Estado de São Paulo.
V – Pedido
Face ao exposto, requerendo o recebimento e o
processamento da presente ação para que, ao final, seja julgada procedente para
declarar a inconstitucionalidade do inciso III do artigo 3º da Lei Complementar nº 1.291, de 22
de julho de 2016, do
Estado de São Paulo.
Requer-se, ainda, sejam
requisitadas informações à Assembleia Legislativa e ao Governador do Estado,
bem como posteriormente citado o Procurador-Geral do Estado para se manifestar
sobre os atos normativos impugnados, protestando por nova vista,
posteriormente, para manifestação final.
Termos
em que, pede deferimento.
São Paulo, 26 de maio de
2017.
Gianpaolo Poggio Smanio
Procurador-Geral de Justiça
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Protocolado n. 6.613/2017
Interessado: Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social
Objeto:
representação para controle de constitucionalidade do art. 3º, inciso III da
Lei nº 1.291, de 22 de julho de 2016, do Estado de São Paulo
Promova-se
a distribuição no egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo da ação
direta de inconstitucionalidade impugnando o inciso III do artigo 3º da Lei
Complementar nº 1.291, de 22 de julho de 2016, do Estado de São Paulo,
instruída com o protocolado em epígrafe referido.
Ciência ao interessado,
enviando-lhe cópia.
São Paulo, 26 de maio de 2017.
Gianpaolo Poggio Smanio
Procurador-Geral de Justiça
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