EXCELENTÍSSIMO SENHOR DESEMBARGADOR PRESIDENTE DO E. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

Protocolado n. 16.027/17

Constitucional. Tributário. Ação direta de inconstitucionalidade. Artigo 54 da Lei Complementar nº 127, de 24 de setembro de 1999, do Município de Catanduva. Vinculação de receitas públicas.  1. A retenção de valores do Imposto Sobre Circulação de Mercadorias - ICMS e do Fundo de participação dos Municípios - FPM por autarquia municipal (Instituto de Previdência), nas hipóteses de não recolhimento das contribuições pelo Município, no prazo de 60 dias, viola o princípio da não afetação de receitas públicas e constitui restrição à autonomia financeira municipal. 2. Violação ao artigo 176, IV da CE/89 (art. 167, IV da CF/88).

 

O PROCURADOR-GERAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO, no exercício da atribuição prevista no art. 116, inciso VI, da Lei Complementar Estadual nº 734 de 26 de novembro de 1993, e em conformidade com o disposto no art. 125, § 2º, e no art. 129, inciso IV, da Constituição da República, e ainda no art. 74, inciso VI, e no art. 90, inciso III da Constituição do Estado de São Paulo, com amparo nas informações colhidas no incluso protocolado, vem perante esse Egrégio Tribunal de Justiça promover a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE em face do artigo 54 da Lei Complementar nº 127, de 24 de setembro de 1999, do Município de Catanduva, pelos fundamentos expostos a seguir.

I - ATO NORMATIVO IMPUGNADO

A Lei Complementar nº 127, de 24 de setembro de 1999, dispõe sobre o Sistema de Previdência dos Municipiários de Catanduva e seu artigo 54 tem a seguinte redação (fls. 28):

“Art. 54 – Fica o IPMC autorizado a proceder a retenção das contribuições referidas nos Artigos 48 e 49, junto a agências bancárias, de parte das parcelas a que faz jus o Município do Imposto Sobre Circulação de Mercadorias e Serviços – ICMS e do Fundo de Participação dos Municípios – FPM, 60 dias após a data em que as contribuições deveriam ter sido recolhidas ao IPMC.”

Os artigos 48 e 49, não impugnados nessa ação, assim dispõem:

“Artigo 48 - A contribuição previdenciária compulsória da Prefeitura, suas Autarquias e Câmara Municipal de Catanduva é constituída de recursos oriundos do orçamento e será calculada mediante a aplicação da alíquota de 24% (vinte e quatro por cento) sobre o total mensal creditado em folha de pagamento dos servidores ativos e inativos abrangidos por esta Lei Complementar.

Parágrafo único – A contribuição de que trata este Artigo deverá se repassada ao IPMC até o dia 15 de cada mês.

Artigo 49 – A contribuição previdenciária compulsória dos Servidores ativos e inativos da Prefeitura Municipal de Catanduva, de suas Autarquias e da Câmara Municipal de Catanduva, abrangidos por esta Lei Complementar, será calculada aplicando-se alíquota de 12% (doze por cento) sobre o total dos vencimentos mensais”.

II – O parâmetro da fiscalização abstrata de constitucionalidade

                               O artigo 54 da Lei Complementar nº 127, de 24 de setembro de 1999, do Município de Catanduva contraria frontalmente a Constituição do Estado de São Paulo, à qual está subordinada a produção normativa municipal ante a previsão dos arts. 1º, 18, 29 e 31 da Constituição Federal.

                   Os preceitos da Constituição do Estado são aplicáveis aos Municípios por força de seu art. 144, que assim estabelece:

“Artigo 144 - Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição”.

O dispositivo impugnado é incompatível com os seguintes preceitos da Constituição Estadual:

“Art. 176 - São vedados:

(...)

IV - a vinculação de receita de impostos a órgão, fundo ou despesa, ressalvadas as permissões previstas no artigo 167, IV, da Constituição Federal e a destinação de recursos para a pesquisa científica e tecnológica, conforme dispõe o artigo 218, §5º, da Constituição Federal;

III - DA OFENSA AO PRINCÍPIO DA NÃO VINCULAÇÃO DE RECEITAS PÚBLICAS

A Constituição Estadual, em seu art. 176, inciso IV, veda a vinculação de receitas públicas decorrentes de impostos fora das hipóteses em que o próprio sistema permite. Trata-se de preceito que repete o disposto no artigo 167, inciso IV da Constituição Federal.

O dispositivo legal ora impugnado, ao autorizar que o Instituto Municipal de Previdência promova a retenção de valores do ICMS e FPM nas hipóteses de não recolhimento das contribuições previdenciárias pelo Município, no prazo de 60 dias, acaba por vincular receitas públicas, ofendendo o princípio insculpido no art. 176, IV da CE/89.

Destaque-se que a hipótese retratada nos autos não se insere dentre aquelas excepcionadas pelo texto constitucional, porquanto a vinculação de receita de impostos a órgãos, fundos ou despesas somente é admitida quando os recursos são destinados para ações e serviços públicos de saúde, manutenção e desenvolvimento do ensino, atividades da administração tributária, prestação de garantias às operações de crédito por antecipação de receita e, em especial, nas hipóteses de repartições tributárias constitucionais (art. 167, IV, CF/88). Do mesmo modo, os recursos vinculados não se destinam à pesquisa científica e tecnológica (art. 176, IV CE/89).

No ensinamento de ROQUE ANTONIO CARRAZA, “nos termos da Constituição, o tributo é instrumento de arrecadação, necessário à realização das despesas públicas (artss 163 e ss., especialmente o artigo 167, IV). Deve, pois, custear a mantença das res publica em geral e é de prestação obrigatória, até porque sempre decorre da lei (art. 150, I, da CF), e não da vontade da Administração Fazendária ou do contribuinte. Nossa Lei maior veda expressamente, salvo as exceções nela própria mencionadas, a vinculação do produto da arrecadação de impostos (não de taxas, contribuições de melhoria, multas ou preços públicos) a fundo ou despesa. É o princípio da não-vinculação de receitas de impostos, que colima evitar que os dinheiros públicos que giram em torno destas figuras exacionais não possam ser utilizados, como quer José Afonso da Silva, "em conformidade com as necessidades existentes e em obediência a escala de prioridades estabelecida a partir da análise rigorosa da situação existente" (“Curso de Direito Constitucional”, 27ª Edição. São Paulo. Malheiros. 2010, pág. 427).

Também BERNARDO RIBEIRO DE MORAIS destaca com clareza que: “...para alguns autores o que distingue o imposto é o destino especial do produto da respectiva arrecadação, que há de ser, sempre, o atendimento de necessidades coletivas e indivisíveis. Assim, de regra, o imposto tem, conforme o princípio da não-vinculação citado, destinação genérica e incerta, ao contrário, por exemplo, da “taxa”, que “constitui instrumento para satisfazer às necessidades individuais e divisíveis, razão por que, financeiramente, o produto da arrecadação deve ter destino específico” (“Compêndio de Direito Tributário”, Rio de Janeiro, Forense, 1984, p. 209).

Desse modo, resta patente a violação ao princípio da não vinculação de receitas públicas.

Nesse sentido vem decidindo o E. STF:

“EMENTA: DIREITO TRIBUTÁRIO. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI MUNICIPAL Nº 923/2009. VINCULAÇÃO DE RECEITA DE ICMS A FUNDO. INCONSTITUCIONALIDADE MATERIAL DA LEI EVIDENCIADA. NORMA DE REPRODUÇÃO OBRIGATÓRIA. AFRONTA AO ART. 167, IV, DA CRFB/88, E AO ART. 154, IV, DA CONSTITUIÇÃO ESTADUAL. JURISPRUDÊNCIA PACIFICADA. AÇÃO JULGADA PROCEDENTE. 1. Nos termos da jurisprudência da Corte, é inconstitucional a destinação de receitas de impostos a fundos ou despesas, ante o princípio da não afetação aplicado às receitas provenientes de impostos. 2. Pretensão de, por vias indiretas, utilizar-se dos recursos originados do repasse do ICMS para viabilizar a concessão de incentivos a empresas. 3. Agravo regimental a que se nega provimento”. (Ag. Reg no REX com Agravo nº 665.291-RS, Rel Min. Luís Roberto Barroso, j. 16.02.2016).

Os seguintes julgados também são aplicáveis ao caso concreto, mutatis mutandis:

“Fornecimento gratuito de energia elétrica. Violação ao art. 167, IV, da Constituição Federal. A lei potiguar impugnada, ao instituir programa de fornecimento gratuito de energia elétrica financiado com parcela da arrecadação do ICMS, produziu vinculação de receita de imposto, vedada pelo mencionado dispositivo constitucional.” (ADI 2.848-MC, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJ 02/05/03).

“Ademais, o inciso IV do art. 167 da Constituição Federal, hoje com a redação dada pela EC nº 29, de 14/9/2000, veda ‘a vinculação de receita de impostos a órgão, fundo ou despesa, ressalvadas a repartição do produto da arrecadação dos impostos a que se referem os arts. 158 e 159, a destinação de recursos para as ações e serviços públicos de saúde e para manutenção e desenvolvimento do ensino, como determinado, respectivamente, pelos artigos 198, § 2º, e 212, e a prestação de garantias às operações de crédito por antecipação de receita, previstas no art. 165, § 8º, bem como o disposto no § 4º deste artigo’. A vedação é afastada, portanto, apenas nas hipóteses expressamente ressalvadas, que não abrangem os programas de assistência integral à criança e ao adolescente. É que, quanto a isso, o inciso IV do art. 167 da Constituição Federal encerra norma específica, fazendo ressalva expressa apenas das hipóteses tratadas nos artigos 198, § 2º (Sistema Único de Saúde) e 212 (para manutenção e desenvolvimento do ensino).” (ADI 1.689, Rel. Min. Sydney Sanches, DJ 02/05/03).

Também em prestígio ao princípio da não afetação das receitas, este Egrégio Tribunal julgou inconstitucional atos normativos que dispunham sobre a vinculação dos seguintes tributos:

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. VICIO MATERIAL. Lei n° 9.671, de 20 de julho de 2011, do Município de Sorocaba. Dispõe sobre a criação de incentivo para instalação de empresas industriais e/ou comerciais e dá outras providências. Benefício financeiro vinculado ao ICMS configura violação ao princípio da não vinculação das receitas, derivadas de impostos. Ofensa aos artigos 167, IV, CF, e artigo 176, IV, da CESP. Ação julgada procedente” (ADIN nº 0065455-92.2012.8.26.0000, Rel. Roberto Mac Cracken, j. 07.11.12).

“DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. Lei n° 4.603, de 09 de fevereiro de 2012, do Município de Taubaté, que "autoriza o Poder Executivo a destinar 10% da receita do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza - ISSQN sobre serviços que especifica ao Fundo Municipal de Turismo de Taubaté". Matéria tributária relativa a vinculação de imposto que afeta a atividade discricionária do Município na execução da despesa pública, por/implicar em vinculação da receita fiscal. Inconstitucionalidade manifesta. Afronta ao artigo 176, IV, da Constituição do Estado de São Paulo Ação julgada procedente para declarar inconstitucionalidade da lei impugnada”. (ADIN 0046405-80.2012.8.26.0000, julgada em 08/08/2012).

Inconstitucional a lei, portanto, por violação ao artigo 176, IV da Constituição do Estado (art. 167, IV da Constituição Federal).

IV - CONCLUSÃO E PEDIDO

Diante de todo o exposto, aguarda-se o recebimento e processamento da presente ação declaratória, para que ao final seja ela julgada procedente, reconhecendo-se a inconstitucionalidade do artigo 54 da Lei Complementar nº 127, de 24 de setembro de 1999, do Município de Catanduva, por ofensa ao artigo 176, IV da Constituição do Estado (art. 167, IV da Constituição Federal).

Requer-se, ainda, que sejam requisitadas informações à Câmara Municipal e ao Senhor Prefeito Municipal de Catanduva, bem como posteriormente citado o Procurador-Geral do Estado para manifestar-se sobre o ato normativo impugnado.

Posteriormente, aguarda-se vista para fins de manifestação final.

Termos em que,

Aguarda-se deferimento.

São Paulo, 26 de maio de 2017.

 

 

         Gianpaolo Poggio Smanio

         Procurador-Geral de Justiça

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Protocolado nº 16.207/17

Assunto: Inconstitucionalidade do art. 54 da Lei Complementar nº 127, de 24 de setembro de 1999, do Município de Catanduva

 

 

                          

1.     Distribua-se a inicial da ação direta de inconstitucionalidade em face do artigo 54 da Lei Complementar nº 127, de 24 de setembro de 1999, do Município de Catanduva, junto ao E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

2.     Comunique-se a propositura da ação ao interessado.

3.     Cumpra-se.

São Paulo, 26 de maio de 2017.

 

 

         Gianpaolo Poggio Smanio

         Procurador-Geral de Justiça

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