Excelentíssimo Senhor Doutor Desembargador Presidente do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

 

 

 

 

Protocolado nº 51.654/2017

 

 

 

 

Ementa: Constitucional. Administrativo. Lei nº 2.150, de 21 de março de 2014. Concessão de benefícios fiscais e auxílio moradia para Policiais Civis e Militares que prestam serviços no município. Ofensa aos princípios da impessoalidade, moralidade, razoabilidade e interesse público. Invasão da competência estadual. Violação à reserva de iniciativa legislativa do Chefe do Poder Executivo Estadual e da reserva de lei. 1. Lei municipal que institui benefícios remuneratórios a Policiais Civis e Militares, sob a condição de prestarem serviço no Município de Caraguatatuba. 2. Ofensa ao princípio da reserva de lei e à separação de poderes, uma vez que o valor da vantagem remuneratória não vem delineado por lei de forma completa (arts. 24, 1 e 5, e 144 da CE). 3. Ofensa à iniciativa de Chefe do Poder Executivo Estadual para a legislação atinente a Policiais Civis e Militares a lei. Violação da repartição constitucional de competências. Princípio Federativo (arts. 1º, 138, § 2º, e 144 da CE). 3. Ofensa os princípios da impessoalidade, moralidade, razoabilidade e interesse público, quando da instituição de vantagem remuneratória que não objetiva o atendimento de um interesse público, mas apenas do servidor (arts. 111, 128 e 144 da CE).

         O Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, no exercício da atribuição prevista no art. 116, VI, da Lei Complementar Estadual nº 734, de 26 de novembro de 1993 (Lei Orgânica do Ministério Público do Estado de São Paulo), em conformidade com o disposto no art. 125, § 2º, e no art. 129, IV, da Constituição Federal, e, ainda, nos arts. 74, VI, e 90, III, da Constituição do Estado de São Paulo, com amparo nas informações colhidas no incluso protocolado, vem, respeitosamente, perante esse egrégio Tribunal de Justiça, promover a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE em face da Lei nº 2.150, de 21 de março de 2014, e, por arrastamento, do Decreto nº 100, de 04 de junho de 2014, do Município de Caraguatatuba, pelos fundamentos a seguir expostos:

I – O Ato Normativo Impugnado

         A Lei Municipal nº 2.150, de 21 de março de 2014, estabelece:

“Art. 1º. Fica o Poder Executivo autorizado a implementar benefícios fiscais e auxílio-moradia aos soldados da Polícia Militar e policiais civis, bem como, aporte financeiro aos Comandantes da Polícia Militar e Delegados Civis que prestam serviço em Caraguatatuba.

Parágrafo único. A autorização prevista no caput deste artigo poderá ser objeto de celebração de convênio com o Estado de São Paulo, por intermédio da Secretaria de Segurança Pública, Justiça e da Defesa da Cidadania, tendo por objetivo a implementação de medidas a auxiliar materialmente o contingente da Polícia Militar e Polícia Civil que prestam serviço em Caraguatatuba.

Art. 2º. Fica o Poder Executivo autorizado a regular a presente Lei por Decreto, inclusive para estabelecer os demais critérios objetivos.

Parágrafo único. O Poder Executivo será obrigado a abrir, por Decreto, crédito especial no orçamento vigente, visando suprir as despesas que vieram da cooperação, inclusive para concessão dos benefícios previstos no artigo primeiro.

Art. 3º. As despesas decorrentes da presente Lei correrão por conta de dotações orçamentárias próprias, consignadas no orçamento vigente, suplementadas se necessário.

Art. 4º. Esta Lei entrará em vigor na data de sua publicação, revogando-se as disposições em contrário”.

         Regulamentando a lei, sobreveio o Decreto nº 100, de 04 de junho de 2014, que contempla as seguintes disposições de relevo para o caso vertente:

“Fica regulamentado o Artigo 1º da Lei Municipal nº 2.150, de 21 de março de 2014, que autorizou a concessão de benefícios ao efetivo da Polícia Militar e Polícia Civil, por intermédio da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo, na forma e condições do presente Decreto, referente aos seguintes benefícios:

I – Auxílio moradia de um único imóvel no valor correspondente ao montante devido de IPTU pelo efetivo da Polícia Militar e Polícia Civil que presta serviço e reside em Caraguatatuba, inclusive aos Comandantes e Delegados, a ser pago através de um cheque nominal correspondente ao valor integral do IPTU;

II – Aporte financeiro no montante de um salário mínimo a ser pago mensalmente aos Comandantes da Polícia Militar e Delegados Civis que prestam serviços em Caraguatatuba, inclusive nos casos de afastamentos regulares.”

         Os atos acima transcritos estão em flagrante afronta às disposições constitucionais estaduais, conforme será exposto abaixo.

II – O parâmetro da fiscalização abstrata de constitucionalidade

A Lei nº 2.150, de 21 de março de 2014, e o Decreto nº 100, de 04 de junho de 2014, do Município de Caraguatatuba, contrariam a Constituição do Estado de São Paulo, a qual está subordinada a produção normativa municipal ante a previsão dos artigos 1º, 18, 29 e 31 da Constituição Federal, sendo incompatível com os seguintes preceitos da Constituição Estadual, aplicáveis aos Municípios por força de seu artigo 144, e que assim estabelecem:

“Art. 1º. O Estado de São Paulo, integrante da República Federativa do Brasil, exerce as competências que não lhe são vedadas.

(...)

Art. 24.

(...)

§ 2º. Compete, exclusivamente, ao Governador do Estado a iniciativa das leis que disponham sobre:

1)                criação e extinção de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica, bem como a fixação da respectiva remuneração;

(...)

5) militares, seu regime jurídico, provimento de cargos, promoções, estabilidade, remuneração, reforma e transferência para inatividade, bem como fixação ou alteração do efetivo da Polícia Militar.

(...)

Art. 111. A administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes do Estado, obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, razoabilidade, finalidade, motivação, interesse público e eficiência.

(...)

Art. 128 – As vantagens de qualquer natureza só poderão ser instituídas por lei e quando atendam efetivamente ao interesse público e às exigências do serviço.

(...)

Art. 138. São servidores públicos militares estaduais os integrantes da Polícia Militar do Estado.

(...)

§ 2º. Naquilo que não colidir com a legislação específica, aplica-se aos servidores mencionados neste artigo o disposto na seção anterior.

(...)

Art. 144. Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição”. 

         A inconstitucionalidade do Decreto nº 100, de 04 de junho de 2014, se dá por arrastamento, decorrente de sua relação de dependência.

III – FUNDAMENTAÇÃO

III – A – VANTAGENS REMUNERATÓRIAS EM DESACORDO COM OS PARÂMETROS DOS ARTS. 111 E 128 DA CONSTITUIÇÃO ESTADUAL

As vantagens pecuniárias são acréscimos permanentes ou efêmeros ao vencimento dos servidores públicos, compreendendo adicionais e gratificações.

Enquanto o adicional significa recompensa ao tempo de serviço (ex facto temporis) ou retribuição pelo desempenho de atribuições especiais ou condições inerentes ao cargo (ex facto officii), a gratificação constitui recompensa pelo desempenho de serviços comuns em condições anormais ou adversas (condições diferenciadas do desempenho da atividade – propter laborem) ou retribuição em face de condições pessoais ou situações onerosas do servidor (propter personam) [Hely Lopes Meirelles. “Direito Administrativo Brasileiro”, 26ª ed., São Paulo: Malheiros, 2001, p. 449; Diógenes Gasparini. “Direito Administrativo”, 13ª ed., São Paulo: Saraiva, 2008, p. 233; Marçal Justen Filho. “Curso de Direito Administrativo”, 3ª ed., São Paulo: Saraiva, 2008, p. 760].

A doutrina tradicional assinala que: “o que caracteriza o adicional e o distingue da gratificação é o ser aquele uma recompensa ao tempo do serviço do servidor, ou uma retribuição pelo desempenho de funções especiais que refogem da rotina burocrática, e esta, uma compensação por serviços comuns executados em condições anormais para o servidor, ou uma ajuda pessoal em face de certas situações que agravam o orçamento do servidor” (Hely Lopes Meirelles. Direito Administrativo Brasileiro, São Paulo: Malheiros, 2001, 26ª ed., p. 452).

Aprofundando-se na distinção, tem-se, então, que: “a gratificação é uma vantagem relacionada a circunstâncias subjetivas do servidor, enquanto o adicional se vincula a circunstâncias objetivas. (...) dois servidores que desempenhem um mesmo cargo farão jus a adicionais idênticos. Já as gratificações serão a eles concedidas em vista das características individuais de cada um. No entanto, é evidente que tais gratificações se sujeitam ao princípio da isonomia, de modo a que dois servidores que apresentem idênticas circunstâncias objetivas farão jus a benefícios iguais” (Marçal Justen Filho. Curso de Direito Administrativo, São Paulo: Saraiva, 2008, 3ª ed., p. 761).

Vale dizer: os adicionais são compensatórios dos encargos decorrentes de funções especiais apartadas da atividade administrativa ordinária e as gratificações dos riscos ou ônus de serviços comuns realizados em condições extraordinárias. “Se o adicional de função (ex facto officii) tem em mira a retribuição de uma função especial exercida em condições comuns, a gratificação de serviço (propter laborem) colima a retribuição do serviço comum prestado em condições especiais” (Wallace Paiva Martins Junior. “Remuneração dos Agentes Públicos”, São Paulo: Saraiva, 2009, p. 85). 

Ademais, “as vantagens pecuniárias, sejam adicionais, sejam gratificações, não são meios para majorar a remuneração dos servidores, nem são meras liberalidades da Administração Pública. São acréscimos remuneratórios que se justificam nos fatos e situações de interesse da Administração Pública” (Diógenes Gasparini. “Direito Administrativo”, 13ª ed., São Paulo: Saraiva, 2008, p. 233).  

Feita essa digressão, cumpre assinalar que o ato normativo impugnado autorizou implementação de benefícios fiscais e auxílio-moradia aos soldados da Polícia Militar e Policiais Civis, bem como aporte financeiro aos Comandantes da Polícia Militar e Delegados Civis que prestam serviços em Caraguatatuba, ou seja, criou gratificações especiais, que não decorrem do interesse público ou das exigências do serviço, assim como que não respeitam os princípios orientadores da Administração Pública, constitucionalmente previstos.

Em suma, houve fixação de benefício sem indicação de fundamento e em desacordo com os arts. 111 e 128 da Constituição do Estado.

Trata-se, na realidade, de indiscriminado aumento indireto e dissimulado da remuneração, alheio aos parâmetros de razoabilidade, interesse público e necessidade do serviço que devem presidir a concessão de vantagens pecuniárias aos servidores públicos.

III – B – FIXAÇÃO DO VALOR DAS VANTAGENS EM DESACORDO O PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DE PODERES E DA RESERVA DE LEI

Além das ponderações anteriores, é relevante enfatizar que a lei não fixou critérios objetivos para a concessão das vantagens, permitindo que o Poder Executivo implemente os benefícios fiscais e o auxílio moradia por decreto, ato normativo secundário a quem competiria estabelecer “demais critérios objetivos”.  

Em suma, a disposição legal extremamente aberta e pouco precisa sobre os critérios e o valor das gratificações afrontou o princípio da reserva absoluta de lei prevista pelo art. 24, § 2º, 1, da Constituição Estadual.

No mais, cumpre enfatizar que, em torno do tema, o Supremo Tribunal Federal prestigia a prevalência da reserva legal na remuneração dos servidores públicos e sua indelegabilidade e o respeito aos princípios constitucionais:

“O tema concernente à disciplina jurídica da remuneração funcional submete-se ao postulado constitucional da reserva absoluta de lei, vedando-se, em conseqüência, a intervenção de outros atos estatais revestidos de menor positividade jurídica, emanados de fontes normativas que se revelem estranhas, quanto à sua origem institucional, ao âmbito de atuação do Poder Legislativo, notadamente quando se tratar de imposições restritivas ou de fixação de limitações quantitativas ao estipêndio devido aos agentes públicos em geral. - O princípio constitucional da reserva de lei formal traduz limitação ao exercício das atividades administrativas e jurisdicionais do Estado. A reserva de lei - analisada sob tal perspectiva - constitui postulado revestido de função excludente, de caráter negativo, pois veda, nas matérias a ela sujeitas, quaisquer intervenções normativas, a título primário, de órgãos estatais não-legislativos. Essa cláusula constitucional, por sua vez, projeta-se em uma dimensão positiva, eis que a sua incidência reforça o princípio, que, fundado na autoridade da Constituição, impõe, à administração e à jurisdição, a necessária submissão aos comandos estatais emanados, exclusivamente, do legislador. Não cabe, ao Poder Executivo, em tema regido pelo postulado da reserva de lei, atuar na anômala (e inconstitucional) condição de legislador, para, em assim agindo, proceder à imposição de seus próprios critérios, afastando, desse modo, os fatores que, no âmbito de nosso sistema constitucional, só podem ser legitimamente definidos pelo Parlamento. É que, se tal fosse possível, o Poder Executivo passaria a desempenhar atribuição que lhe é institucionalmente estranha (a de legislador), usurpando, desse modo, no contexto de um sistema de poderes essencialmente limitados, competência que não lhe pertence, com evidente transgressão ao princípio constitucional da separação de poderes” (STF, ADI-MC 2.075-RJ, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, 07-02-2001, v.u., DJ 27-06-2003, p. 28).

“Em tema de remuneração dos servidores públicos, estabelece a Constituição o princípio da reserva de lei. É dizer, em tema de remuneração dos servidores públicos, nada será feito senão mediante lei, lei específica. CF, art. 37, X, art. 51, IV, art. 52, XIII. Inconstitucionalidade formal do Ato Conjunto n. 01, de 5-11-2004, das Mesas do Senado Federal e da Câmara dos Deputados” (STF, ADI 3.369-MC, Rel. Min. Carlos Velloso, 16-12-2004, DJ 01-02-2005).

“Ação direta de inconstitucionalidade. Resoluções n.ºs 26, de 22/12/94; 15, de 23/10/97, e 16, de 30/10/97, todas do Tribunal de Justiça do Estado do Espírito Santo, havendo a primeira criado a gratificação de representação, correspondente a 40% do valor global atribuído a diversos cargos, estendendo-a, inclusive, aos inativos que se aposentaram em cargos de igual denominação ou equivalente. 2. Alegação de ofensa a funções privativas dos Poderes Legislativo e Executivo. 3. Medida cautelar deferida e suspensa, com eficácia ex nunc, a eficácia das Resoluções impugnadas. 4. Procedência da alegação de ofensa a funções privativas dos Poderes Legislativo e Executivo, eis que há necessidade de lei em sentido formal para a criação de vantagens pecuniárias a servidores do Poder Judiciário. 5. A Lei Magna não assegura aos Tribunais fixar, sem lei, vencimentos ou vantagens a seus membros ou servidores. 6. Jurisprudência do STF no sentido de que ‘não cabe ao Poder Judiciário, que não tem função legislativa, aumentar vencimentos de servidores públicos, sob o fundamento da isonomia’ (Súmula 339 e ADINs n.º 1776, 1777 e 1782). 7. Ação direta de inconstitucionalidade julgada procedente”(STF, ADI 1.732-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Néri da Silveira, 17-04-2002, v.u., DJ 07-06-2002, p. 81).

Diante da impossibilidade de estabelecimento de valor e critérios objetivos para concessão de vantagens remuneratória por meio de decreto, conclui-se que há violação ao disposto no art. 128 da Constituição do Estado, bem como a iniciativa do Poder Executivo para projetos de lei sobre remuneração de servidores e o princípio da separação de poderes.

 

III – C – ESTABELECIMENTO DE VANTAGEM REMUNERATÓRIA OFENSIVA À INICIATIVA LEGISLATIVA RESERVADA AO CHEFE DO PODER EXECUTIVO ESTADUAL E AO PRINCÍPIO FEDERATIVO

 

As Polícias Civil e Militar são órgãos do Estado, conforme a repartição constitucional de competências.

Assim, nos termos dos arts. 24, 5, e 138, § 2º, ambos da Constituição Estadual, a disciplina de remuneração de servidores estaduais deveria ser deflagrada por projeto de lei de iniciativa do Chefe do Poder Executivo Estadual.

Destarte, quando a remuneração de tais servidores estaduais vem contemplada por legislação municipal, há afronta à repartição constitucional de competências.

Lembre-se que já se decidiu que não pode o legislador municipal, ainda que a pretexto de legislar sobre assuntos de interesse local ou suplementar a legislação Federal ou Estadual de ordem geral, invadir a competência legislativa destes entes federativos superiores (RE 313.060, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em 29-11-2005, Segunda Turma, DJ de 24-2-2006).

A autonomia das entidades federativas pressupõe repartição de competências legislativas, administrativas e tributárias. Trata-se de um dos pontos caracterizadores e asseguradores da existência e de harmonia do Estado Federal.

Dessa forma, no conflito normativo aqui analisado, conclui-se que a lei em questão violou a repartição constitucional de competências, que é a manifestação mais contundente do princípio federativo, operando, por consequência, desrespeito a princípio constitucional estabelecido.

Essa é outra razão pela qual restou configurada, no caso, a ofensa ao disposto no art. 144 da Constituição do Estado de São Paulo.

Cumpre recordar que um dos princípios constitucionais estabelecidos é o denominado princípio federativo, que está assentado nos arts. 1º e 18 da Constituição da República.

Referindo-se aos princípios fundamentais da Constituição, que revelam as opções políticas essenciais do Estado, José Afonso da Silva aponta que entre eles podem ser inseridos, entre outros, “os princípios relativos à existência, forma, estrutura e tipo de Estado: República Federativa do Brasil, soberania, Estado Democrático de Direito (art. 1º)” (Curso de Direito Constitucional Positivo, 13. ed., São Paulo, Malheiros, 1997, p. 96, g.n.).

Um dos aspectos de maior relevo, que representa a dimensão e alcance do princípio do pacto federativo adotado pelo Constituinte em 1988, é justamente o que se assenta nos critérios adotados pela Constituição Federal para a repartição de competências entre os entes federativos, bem como a fixação da autonomia e dos respectivos limites, dos Estados, Distrito Federal e Municípios, em relação à União.

Anota, a propósito, Fernanda Dias Menezes de Almeida que “avulta, portanto, sob esse ângulo, a importância da repartição de competências, já que a decisão tomada a respeito é que condiciona a feição do Estado Federal, determinando maior ou menor grau de descentralização.” Daí a afirmação de doutrinadores no sentido de que a repartição de competências é “’a chave da estrutura do poder federal’, ‘o elemento essencial da construção federal’, ‘a grande questão do federalismo’, ‘o problema típico do Estado Federal’” (Competências na Constituição Federal de 1988, 4ª. ed., São Paulo, Atlas, 2007, p. 19/20).

A preservação do princípio federativo tem contado com a anuência do C. Supremo Tribunal Federal, pois como destacado em julgado relatado pelo Min. Celso de Mello:

"(...) a idéia de Federação — que tem, na autonomia dos Estados-membros, um de seus cornerstones — revela-se elemento cujo sentido de fundamentalidade a torna imune, em sede de revisão constitucional, à própria ação reformadora do Congresso Nacional, por representar categoria política inalcançável, até mesmo, pelo exercício do poder constituinte derivado (CF, art. 60, § 4º, I). (HC 80.511, voto do Min. Celso de Mello, julgamento em 21-8-01, DJ de 14-9-01).”

Por essa linha de raciocínio, pode-se afirmar que a Lei Municipal que trate de matéria cuja competência é do legislador estadual está a desrespeitar a repartição constitucional de competências, a violar o princípio federativo.

Para finalizar e por oportuno, sublinhe-se que o reconhecimento da inconstitucionalidade da vantagem impugnada não importa em violação ao princípio da irredutibilidade dos vencimentos dos servidores públicos, previsto no art. 115, XVII, da CE, ou mesmo do direito adquirido, pois estes princípios pressupõem a legalidade, moralidade e razoabilidade do adicional, não podendo, portanto, ser invocados para amparar pagamentos flagrantemente contrários aos princípios constitucionais da Administração Pública.

Por todo o exposto, conclui-se que são inconstitucionais os atos normativos impugnados.

 

IV - DO PEDIDO

Diante de todo o exposto, aguarda-se o recebimento e processamento da presente ação declaratória, para que ao final seja ela julgada procedente, reconhecendo-se a inconstitucionalidade da Lei nº 2.150, de 21 de março de 2.014, e do Decreto nº 100, de 04 de junho de 2.014, ambos do Município de Caraguatatuba.

         Requer-se, ainda, sejam requisitadas informações ao Prefeito e à Câmara Municipal de Caraguatatuba, bem como posteriormente citado o Procurador-Geral do Estado para se manifestar sobre os atos normativos impugnados, protestando por nova vista, posteriormente, para manifestação final.

                   São Paulo, 05 de junho de 2017.

 

 

Gianpaolo Poggio Smanio

Procurador-Geral de Justiça

pss

Protocolado 51.654/17

Assunto: Benefícios Policiais Militares

 

 

 

1.               Trata-se de protocolado inicialmente instaurado para a análise de constitucionalidade da Lei Complementar nº 40/11 e da Lei nº 2.150/14, ambas do Município de Caraguatatuba, após o recebimento de representação que afirmava que as referidas leis estabeleciam benefícios indevidos a Policiais, em afronta a vedações constitucionais (fls.03/21). 

Solicitadas informações, a Câmara Municipal apenas enviou cópias dos diplomas legislativos, confirmando a sua vigência (fls.31/58).

O Prefeito Municipal quedou-se inerte, não respondendo ao ofício encaminhado (fls.29).

É o breve relato do essencial.

O caso é de arquivamento parcial do presente expediente.

A Lei Complementar nº 40, de 12 de setembro de 2.011, do Município de Caraguatatuba, estabelece:

“Art. 1º. Fica criada a Gratificação por Desempenho de Atividade Delegada, nos termos especificados nesta Lei, a ser mensalmente paga aos integrantes da Polícia Militar que passarem a exercer atividade de polícia administrativa delegada ao Estado de São Paulo por força de Convênio celebrado com o Município de Caraguatatuba.

Parágrafo único. A gratificação será calculada com base nos valores de referência constantes no Anexo II da Lei Municipal nº 977, de 26 de novembro de 2002, que dispõe sobre a Estrutura Administrativa do Município da Estância Balneária de Caraguatatuba, e dá outras providências, nos seguintes percentuais:

I – Até 100% (cem por cento), proporcional as horas efetivamente trabalhadas, aos ocupantes da patente de Coronel, Tenente-Coronel, Major, Capitão, Primeiro Tenente, Segundo Tenente e Aspirante a Oficial;

II – Até 75% (setenta e cinco por cento), proporcional as horas efetivamente trabalhadas, aos ocupantes da patente de Subtenente, Primeiro Sargento, Segundo Sargento, Terceiro Sargento, Cabo e Soldado.

Art. 2º. O valor da Gratificação por Desempenho de Atividade Delegada será fixado pelo Poder Executivo, mediante Decreto, respeitando a natureza e a complexidade das atividades objeto de cada convênio a ser celebrado, considerando as disponibilidades orçamentárias e financeiras por ocasião da assinatura do ajuste ao qual se refira.

Parágrafo único. Os valores das gratificações serão revistos de acordo com a legislação que disciplina o reajustamento geral da remuneração dos servidores municipais.

Art. 3º. O pagamento da gratificação estipulada por esta Lei é incompatível com a percepção de outras vantagens da mesma natureza.

Art. 4º. Compete ao Chefe do Poder Executivo celebrar os instrumentos de convênio com o Estado de São Paulo objetivando a implantação da atividade delegada no Município de Caraguatatuba.

Art. 5º. As despesas com a execução desta lei correrão por conta das dotações orçamentárias que lhes são próprias, suplementadas se necessário.

Art. 6º. Esta Lei entrará em vigor na data de sua publicação, revogada as disposições em contrário”.

Registre-se que a gratificação por desempenho de atividade delegada, nos mesmos moldes estabelecidos no Município de Caraguatatuba, já fora apreciada por esta Procuradoria-Geral de Justiça, que concluiu ser constitucional.

Portanto, concessa venia, mantenho a convicção externada pela Procuradoria-Geral de Justiça que, em relação à gratificação oriunda de operação delegada, dispôs:

 

Prima facie, da leitura da lei em epígrafe, não se visualiza as inconstitucionalidades propaladas na representação em análise.

A colaboração entre entidades públicas de qualquer natureza, ou entre estas e organizações particulares, para realização de objetivos de interesse comum dos partícipes, não é estranha ao nosso ordenamento jurídico.

Aliás, no seu art. 23, parágrafo único, a Constituição dispõe que: ‘Leis complementares fixarão normas para a cooperação entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional’.

A segurança pública constitui dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, nos exatos termos do art. 144, caput, da Constituição Federal, inexistindo, assim, em linha de princípio, qualquer inconstitucionalidade na formação de parceria entre o Estado e o Município com vistas à adoção de medidas conjuntas para a melhoria da segurança pública.

Acerca desse tema, Hely Lopes Meirelles leciona que:

A ampliação das funções estatais, a complexidade e o custo das obras públicas, vêm abalando, dia-a-dia, os fundamentos da administração clássica, exigindo novas formas e meios de prestação de serviços afetos ao Município.

Evoluímos, cronologicamente, dos serviços públicos centralizados para os serviços delegados a particulares, destes passamos aos serviços outorgados a autarquias; daqui, defletimos para os serviços traspassados a entidades paraestatais, e finalmente chegamos aos serviços de interesse recíproco de entidades públicas e organizações particulares realizados em mútua cooperação, sob as formas de convênios e consórcios administrativos.

E assim se faz porque, em muitos casos, já não basta a só modificação instrumental da prestação do serviço na área de responsabilidade de uma Administração. Necessárias se tornam a sua ampliação territorial e a conjugação de recursos técnicos e financeiros de outros interessados na sua realização. Desse modo se conseguem serviços de alto custo que jamais estariam ao alcance de uma Administração menos abastada. Daí o surgimento dos convênios e consórcios administrativos, como solução para tais situações.’ (Cf. Direito Municipal Brasileiro, Malheiros, São Paulo, 8.ª edição, atualizada por Izabel Camargo Lopes Monteiro, Yara Darcy Police Monteiro, Célia Marisa Prendes, p. 295).

É inegável que a segurança pública interessa a todos sem exceção, particularmente nesse delicado momento que o país atravessa, em que os casos de violência explodem de norte a sul, a exigir de todas as pessoas comunhão de esforços na expectativa de minimizar ou reverter o problema.

Evidentemente que os Municípios não podem ficar alheios a essa realidade, à medida que os moradores dos grandes centros urbanos são os que mais sofrem com a falta de segurança, e, nessa conformidade, a celebração de ajuste com o Estado, com vistas ao desenvolvimento de ações conjuntas na área da segurança pública, nada tem de inconstitucional, muito pelo contrário, visa ao atingimento de uma finalidade constitucional: a preservação do direito de todos à segurança pública.

No caso em análise, verifica-se que, por meio de convênio a ser celebrado com o Estado de São Paulo, o Município de Sorocaba pretende obter o apoio de agentes estaduais na realização de atividades previstas na legislação municipal referente a posturas.

A indeterminação legal quanto ao alcance do objeto do convênio a ser celebrado remete necessariamente à análise da minuta confeccionada, o que, porém, não se admite no controle normativo abstrato, em que a inconstitucionalidade deve resultar diretamente do confronto da lei com o texto expresso da Constituição.

(...)

Por fim, cumpre registrar que convênios dessa natureza são bastante comuns, inclusive na área da segurança pública, como por exemplo na prestação de auxílio financeiro e material aos serviços prestados pelo Corpo de Bombeiros, órgão estadual integrante da segurança pública” (Protocolado n. 114.795/11).

Anote-se que o art. 241 da Constituição de 1988 incentiva a gestão associada de ações administrativas, preconizando o art. 23, parágrafo único, na redação dada pela Emenda n. 53, de 2006, a cooperação intragovernamental.

A instituição de vantagem pecuniária (gratificação) se enraíza nesses preceitos e não conspira contra os princípios da administração pública, pois, seu cabimento se restringe aos períodos em que policiais militares não estão no desempenho das funções próprias de seus cargos.

Conquanto a Guarda Municipal possa exercer essa atribuição, pois, se relaciona aos serviços lato sensu de competência municipal, nada impede a cooperação intragovernamental e a remuneração específica a servidores públicos de outras esferas que a desempenhem.

Face ao exposto, não vislumbrando inconstitucionalidade na instituição de gratificação por desempenho de atividade delegada, com relação à Lei Complementar nº 40/11, do Município de Caraguatatuba, promovo o arquivamento do procedimento.

 

2.           Distribua-se ação direta de inconstitucionalidade, instruída com o protocolado em epígrafe mencionado, em face da Lei nº 2.150/14, do Município de Caraguatatuba.

 

3.           Ciência ao interessado, remetendo-lhe cópia da petição inicial e do presente despacho.

 

São Paulo, 05 de junho de 2017.

 

Gianpaolo Poggio Smanio

Procurador-Geral de Justiça

 

pss