EXCELENTÍSSIMO
SENHOR DESEMBARGADOR PRESIDENTE DO E. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO
PAULO
Protocolado nº 46.166/17
Constitucional. Administrativo. Ação direta de inconstitucionalidade. Lei do Município de São Paulo. Denominação de logradouro. Iniciativa parlamentar. Reserva da Administração. Separação de Poderes. 1. A denominação de bens, prédios, logradouros e vias do patrimônio público é ato privativo da gestão administrativa reservada ao Chefe do Poder Executivo. 2. Lei municipal de iniciativa parlamentar que usurpa a reserva da Administração, com ofensa ao princípio da separação dos poderes (art. 5º, art. 47, II e XIV, e art. 144 da Constituição do Estado).
O PROCURADOR-GERAL
DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO, no exercício da atribuição prevista no
art. 116, inciso VI, da Lei Complementar Estadual nº 734 de 26 de novembro de
1993, e em conformidade com o disposto no art. 125, § 2º, e no art. 129, inciso
IV, da Constituição da República, e ainda no art. 74, inciso VI, e no art. 90,
inciso III da Constituição do Estado de São Paulo, com amparo nas informações
colhidas no incluso protocolado (PGJ nº 46.166/17), vem perante esse Egrégio
Tribunal de Justiça promover a presente AÇÃO
DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE em face da Lei nº 16.629, de 17 de abril de
2017, do Município de São Paulo, pelos
fundamentos expostos a seguir.
I - ATO NORMATIVO IMPUGNADO
A Lei nº 16.629, de 17 de abril de 2017, do Município
de São Paulo, de iniciativa do Vereador Eduardo Tuma, que “acrescenta à denominação da Ponte das Bandeiras o nome Senador Romeu
Tuma”, dispõe:
“Art. 1°. Fica acrescido à denominação da Ponte das Bandeiras
(CADLOG 27.419-4) o nome Senador Romeu Tuma, situada ao longo da Avenida Santos
Dumont sobre o canal do Rio Tietê e a Avenida Presidente Castelo Branco
(Setores 018 e 073/ARs SÈ e ST), no 47º Subdistrito –
Vila Guilherme.
Art. 2º. As despesas decorrentes da execução desta lei
correrão por conta das dotações orçamentárias próprias, suplementadas se
necessário.
Art. 3º. Esta lei entra em vigor na data de sua publicação,
revogadas as disposições em contrário”.
II – O parâmetro da fiscalização abstrata de constitucionalidade
A
lei municipal impugnada contraria frontalmente a Constituição do Estado de São
Paulo, à qual está subordinada a produção normativa municipal ante a previsão
dos arts. 1º, 18, 29 e 31 da Constituição Federal.
Os preceitos da Constituição
do Estado são aplicáveis aos Municípios por força de seu art. 144, que assim
estabelece:
“Artigo 144 - Os Municípios, com autonomia política,
legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão
por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal
e nesta Constituição”.
A lei municipal
é incompatível com os seguintes preceitos da Constituição Estadual:
“Artigo 5º - São Poderes do Estado,
independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.
§ 1º - É vedado a qualquer dos Poderes delegar atribuições.
§ 2º - O cidadão, investido na função de um
dos Poderes, não poderá exercer a de outro, salvo as exceções previstas nesta
Constituição.
(...)
Artigo 47 - Compete privativamente ao
Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:
(...)
II - exercer, com o auxílio dos Secretários
de Estado, a direção superior da administração estadual;
(...)
XIV - praticar os demais atos de
administração, nos limites da competência do Executivo.”
III
- DA INCONSTITUCIONALIDADE
Em primeiro lugar, indubitavelmente, a denominação de logradouros e de próprios públicos é matéria de interesse local (CF, art. 30, I), dispondo, assim, os Municípios de ampla competência para regulamentá-la, pois foram dotados de autonomia administrativa e legislativa.
Contudo,
afigura-se necessário distinguir as seguintes situações:
(a) a edição de regras que
disponham genérica e abstratamente sobre a denominação de logradouros e de
próprios públicos, caso em que a iniciativa é concorrente;
(b) o ato de atribuir nomes a
logradouros e próprios públicos, segundo as regras legais que disciplinam
essa atividade, que é da competência
privativa do Executivo.
No Município, à Câmara Municipal incumbem as funções legislativas e ao Prefeito as executivas. Entre esses Poderes locais, não há subordinação administrativa ou política, mas simples entrosamento de funções e de atividades político-administrativas. “Nessa sinergia de funções é que residem a independência e a harmonia dos poderes, princípio constitucional extensivo ao governo municipal.” (Cf. HELY LOPES MEIRELLES, “Direito Municipal Brasileiro”, Malheiros, São Paulo, 8.ª ed., pp. 427 e 508.)
Em sua função
normal e predominante sobre as outras, a Câmara elabora leis, isto é, normas
abstratas, gerais e obrigatórias de conduta. Esta é sua atribuição específica,
bem diferente daquela outorgada ao Poder Executivo, que consiste na prática de
atos concretos de administração. Ou seja, a Câmara edita normas gerais, enquanto que o Prefeito as aplica aos casos
particulares ocorrentes (ob. cit., p. 429).
Assim, no
exercício de sua função normativa, a Câmara está habilitada a editar normas
gerais, abstratas e coativas a serem observadas pelo Prefeito, para a
denominação das vias, logradouros e prédios públicos, como, por exemplo:
proibir que se atribua o nome de pessoa viva, determinar que nenhum nome poderá
ser composto por mais de três palavras, exigir o uso de vocábulos da língua
portuguesa, etc. (Cf. ADILSON DE ABREU DALLARI, “Boletim do Interior”,
Secretaria do Interior do Governo do Estado de São Paulo, 2/103).
Ressalte-se
que a nomenclatura de logradouros públicos, que constitui elemento de sinalização urbana, tem por finalidade
precípua a orientação da população (Cf. JOSÉ
AFONSO DA SILVA, “Direito Urbanístico Brasileiro”, Malheiros, São Paulo,
2.ª ed., p. 285).
De fato, se
não houvesse sinalização, a identificação e a localização dos logradouros
públicos seria tarefa quase impossível, principalmente nos grandes aglomerados
urbanos.
Diverso,
porém, é o ato de denominar os próprios públicos, inclusive nos casos em que
não se busca apenas permitir a orientação da população, mas sim homenagear
determinadas pessoas ou fatos históricos.
Note-se: nada
obsta que o nome dado a determinado logradouro público cumpra não só a função
de permitir sua identificação e exata localização, mas sirva também para
homenagear pessoas ou fatos históricos, segundo os critérios previamente
estabelecidos em lei editada para regulamentar essa matéria.
Definidas
essas premissas básicas, entretanto, é imperativo o reconhecimento da
inconstitucionalidade do ato normativo impugnado nesta inicial.
Leis que
conferem nomes a bens integrantes do patrimônio público municipal não encerram
o conteúdo de normas abstratas ou teóricas, instituídas em caráter permanente e
de generalidade.
Ou seja, a
Câmara não pode, em nosso regime constitucional, invadir a esfera da gestão
administrativa, que cabe ao Poder Executivo, atribuindo, especificamente e de
modo individualizado, a determinados próprios integrantes do Município,
denominação concreta.
As leis
formais não se mostram regras jurídicas, mas simples atos administrativos do Poder Legislativo, que invadem a esfera de
competência constitucional do Poder Executivo.
Na ordem
constitucional vigente, que incorporou o postulado da separação de funções, a
fim de limitar o poder estatal, na consagrada fórmula de Montesquieu, não
existe a menor possibilidade de a Administração municipal ser exercida pela
Câmara, por meio de leis (Estado legal), pois a Constituição é clara ao
atribuir ao Prefeito a competência privativa para exercer, com o auxílio dos
Secretários Municipais, a direção superior da administração municipal (CE, art.
47, II) e praticar os atos de administração, nos limites de sua competência
(CE, art. 47, XIV).
Bem por isso,
aliás, ELIVAL DA SILVA RAMOS adverte que:
“(...)
Sob a vigência de Constituições que
agasalham o princípio da separação de Poderes (...) não é lícito ao Parlamento
editar, ao seu bel-prazer, leis de conteúdo concreto e individualizante. A
regra é a de que as leis devem corresponder ao exercício da função legislativa.
A edição de leis meramente formais, ou seja, ‘aquelas que, embora fluindo das
fontes legiferantes normais, não apresentam os
caracteres de generalidade e abstração, fixando, ao revés, uma regra dirigida,
de forma direta, a uma ou várias pessoas ou a determinada circunstância’,
apresenta caráter excepcional. Destarte, deve vir expressamente autorizada no
Texto Constitucional, sob pena de inconstitucionalidade substancial. (“A
Inconstitucionalidade das Leis - Vício e Sanção”, Saraiva, 1994, p. 194.)
(...)”
Nesse contexto, a aprovação de lei, de iniciativa parlamentar, que atribui nome a logradouro ou prédio público só pode ser interpretada como atentatória ao postulado constitucional da independência e harmonia entre os poderes (CE, art. 5.º).
Ao examinar
assunto correlato, no julgamento da Repr. n.º
1.117-SP, o insigne Ministro FRANCISCO REZEK consignou no seu
respeitável voto que:
“(...)
No contexto dos debates que esta matéria
provocou na origem, e que envolveram os três poderes do Estado, vez por outra
afloram equívocos conceituais de certa monta, qual o entendimento da
prerrogativa de dar nome à sede forense como atributo da propriedade
imobiliária, ou a visão do Poder Executivo como titular do domínio dos bens
públicos afetos a seus próprios serviços, tanto quanto aos da Legislatura e aos
da Justiça.
Tudo isso posto de lado, porque
desnecessário ao completo esquema da questão de inconstitucionalidade que aqui
se discute, reponta claro o argumento do Presidente da Assembleia Legislativa
de São Paulo: parece-lhe que a competência para dar nome a logradouros
públicos, porque não disciplinada na lei fundamental, há de sê-lo em lei
ordinária; e que entre aqueles não há por que distinguir os de uso especial da
Justiça dos vinculados aos demais poderes, ou entregues ao uso comum do povo.
Aquela primeira ideia se viu desenvolver com esmero pelos fundadores da
federação norte-americana, e, dessa e de outras fontes, foi sabidamente
assimilada pelo direito público brasileiro: tudo quanto a Carta não diz por si
mesma, di-lo-á não o Governo, nem tampouco a Justiça, mas o Congresso,
compositor, por excelência, da ordem jurídica que a lei fundamental encabeça,
sem poder exaurir.
Essa regra eminente traz, porém, consigo,
duas presunções tácitas, a ditar-lhe o exato contorno. A primeira é a de que
esse espaço a ser preenchido pela produção congressional reclame substância
normativa, vestida da abstração e da generalidade que lhe são próprias. A
segunda, indissociável da precedente, é a de que o vasto domínio dos poderes
implícitos do Congresso não pretenda estender-se sobre área reservada pela lei
fundamental às prerrogativas do Executivo e do Judiciário, com todos os
desdobramentos necessários a que se não lhes afronta a independência.
(...)”
Em suma, a concessão de denominação a determinado bem municipal é ato concreto de administração, parte integrante do serviço público de sinalização urbana, cujo único responsável é o Prefeito.
Não há como
aceitar a edição de lei formal, desvestida dos atributos de generalidade e
abstração, tampouco estender esses poderes sobre área de atuação exclusiva do
Poder Executivo, a quem compete administrar os bens públicos e prestar os
serviços públicos municipais.
O ato de
atribuir nomes a logradouros ou prédios públicos é mero corolário do poder de
administrar.
Bem a
propósito, ao examinar leis de conteúdo semelhante, esse egrégio Tribunal de
Justiça decidiu que:
“AÇÃO
DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEIS Nº 10.222/2012, 10.296/2012 E
10.367/2012, DE INICIATIVA PARLAMENTAR, QUE ATRIBUEM NOME A LOGRADOUROS E ESCOLA
DO MUNICÍPIO DE SOROCABA. PRELIMINAR DE INADEQUAÇÃO DA AÇÃO PARA CONTROLE
CONCENTRADO DE NORMA DE CARÁTER CONCRETO. AÇÃO ADEQUADA. POSSIBILIDADE DE
SUBMISSÃO DE NORMAS SEM CARÁTER DE GENERALIDADE A CONTROLE DE
CONSTITUCIONALIDADE. ATOS EDITADOS SOB A FORMA DE LEI. AUSÊNCIA DE DISTINÇÃO
PELO CONSTITUINTE ENTRE LEIS DOTADAS DE GENERALIDADE E AQUELOUTRAS, CONFIRMADAS
SEM O ATRIBUTO DA GENERALIDADE E ABSTRAÇÃO. INADMISSIBILIDADE DA ISENÇÃO DE
ATOS APROVADOS SOB A FORMA DE LEI DO CONTROLE ABSTRATO DE NORMAS. PRECEDENTES
DA CORTE SUPREMA. PRELIMINAR AFASTADA.
AÇÃO
DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEIS Nº 10.222/2012, 10.296/2012 E
10.367/2012, DE INICIATIVA PARLAMENTAR, QUE ATRIBUEM NOME A LOGRADOUROS E
ESCOLA DO MUNICÍPIO DE SOROCABA. VÍCIO DE INICIATIVA. AFRONTA AO PRINCIPIO DA
SEPARAÇÃO DOS PODERES. ATRIBUIÇÃO DE NOMES AOS BENS, PRÉDIOS, LOGRADOUROS E
VIAS QUE É ATO DE ORGANIZAÇÃO DE SINALIZAÇÃO MUNICIPAL, DE INICIATIVA EXCLUSIVA
DO CHEFE DO EXECUTIVO. VIOLAÇÃO AOS ARTS. 5º, 47, II E XIV E 144 DA CARTA BANDEIRANTE.
AÇÃO PROCEDENTE.” (ADI nº 2032984-81.2015.8.26.0000, Rel. Des. Xavier de
Aquino, j. em 29/07/2015, v.u).
Em suma, a Câmara não pode arrogar a si a competência para autorizar a prática de atos concretos de administração. E a nomenclatura de logradouros e próprios públicos - que constitui atividade relacionada ao serviço público municipal de sinalização e identificação - enquadra-se exatamente nessa hipótese, resultando, daí, a conclusão inafastável de que a lei em epígrafe é manifestamente incompatível com o princípio da separação dos poderes.
Estas são as razões para o reconhecimento da inconstitucionalidade formal do ato normativo impugnado,
por afronta aos arts. 5º e 47, II e XIV, da
Constituição Paulista, cuja observância é obrigatória pelos municípios por força do art. 144 do mesmo diploma.
Apenas para
finalizar, importa registrar que não cabe invocar, no caso em tela, a aplicação
do art. 24, § 6º, da Constituição do Estado de São Paulo, para reconhecer a
iniciativa concorrente para a hipótese dos autos.
O referido §
6º ao seu art. 24 foi acrescentado à Constituição Paulista pela Emenda nº 43,
de 10 de novembro de 2016, a fim de estabelecer iniciativa concorrente da
Assembleia Legislativa e do Governador do Estado, para a atribuição de
denominação de próprio público.
Contudo e por
oportuno, cabe mencionar que este Procurador-Geral de Justiça já ajuizou ação
direta de inconstitucionalidade em face da Emenda nº 43 (Adin nº
2073870-54.2017.8.26.000), para o reconhecimento de sua ilegitimidade.
E, no último
dia 02 de agosto de 2017, foi concedida a liminar para suspender a eficácia da
Emenda Constitucional nº 43/16.
Logo, o
referido dispositivo não pode ser ora invocado, para afastar as considerações
acima feitas acerca da inconstitucionalidade da lei ora impugnada.
IV – PEDIDO LIMINAR
À saciedade demonstrado o fumus boni iuris, pela ponderabilidade
do direito alegado, soma-se a ele o periculum
in mora. A atual tessitura dos preceitos da Lei nº 16.629/17 do Município
de São Paulo apontados como violadores de princípios e regras da Constituição
do Estado de São Paulo é sinal, de per si,
para suspensão de sua eficácia até final julgamento desta ação, evitando-se
atuação desconforme com o ordenamento jurídico com forte impacto na separação
de poderes.
Em razão do exposto, requer a concessão de liminar
para suspensão da eficácia, até final e definitivo julgamento da Lei nº 16.629,
de 17 de abril de 2017 do Município de São Paulo.
V – CONCLUSÃO E
PEDIDO
Diante
de todo o exposto, aguarda-se o recebimento e processamento da presente ação
declaratória, para que, ao final, seja ela julgada procedente, reconhecendo-se
a inconstitucionalidade da Lei nº 16.629, de 17 de abril de 2017, do Município
de São Paulo.
Requer-se, ainda, que sejam requisitadas informações à
Câmara Municipal e ao Senhor Prefeito Municipal de São Paulo, bem como
posteriormente citado o Procurador-Geral do Estado para manifestar-se sobre o
ato normativo impugnado.
Posteriormente, aguarda-se vista para fins de
manifestação final.
Termos em que,
Aguarda-se deferimento.
São Paulo, 14 de agosto de
2017.
Gianpaolo
Poggio Smanio
Procurador-Geral
de Justiça
pss
Protocolado nº 46.166/17
Interessado: Promotoria de Justiça de Direitos Humanos
Assunto: Inconstitucionalidade da Lei
nº 16.629, de 17 de abril de 2017, do Município de São Paulo.
1. Distribua-se a inicial da
ação direta de inconstitucionalidade.
2. Com relação à violação aos
princípios da legalidade, da moralidade e da impessoalidade, ressaltada pela
representação que deu ensejo a presente ação, importa registrar que não são
temas passíveis de controle na esfera do controle abstrato de
constitucionalidade, sobretudo porque não traduzem ofensa direta ao Texto
Constitucional e porque demandam análise de fatos, o que é inadmissível nesta
seara. Portanto, tal fundamentação não vem compreendida na presente ação, o que
não impede, em tese, a adoção de outras medidas em via distinta do controle
concentrado de constitucionalidade.
3. Oficie-se ao interessado,
com o envio de cópias, comunicando-se a propositura da ação.
4. Cumpra-se.
São Paulo, 14 de agosto de
2017.
Gianpaolo
Poggio Smanio
Procurador-Geral
de Justiça