Excelentíssimo Senhor Doutor Desembargador Presidente do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

 

 

 

Constitucional. Processo. Ação Direta Inconstitucionalidade. Resolução nº 54, de 18 de agosto de 2017, do Tribunal de Justiça Militar do Estado de São Paulo. Contrariedade ao princípio federativo. Competência privativa da União para legislar sobre processo penal e estabelecer normas gerais sobre procedimento em matéria processual. Ofensa ao Princípio da reserva legal e à separação dos poderes. Matéria sujeita à lei formal. Direitos Humanos. Crimes dolosos contra a vida de civis praticados por militares. Violação à competência da Justiça Comum para investigação e processamento.

1. Resolução que disciplina a realizações de diligências no curso de inquérito policial pela prática de crimes dolosos contra a vida de civil - como apreensão de instrumentos e objeto do crime e realização de perícias -, invade a competência privativa da União, para legislar sobre processo e estabelecer normas gerais sobre procedimentos em matéria processual (art. 22, I e 24, XI e § 1º, CF/88 c.c. art. 1º, CE/89).

2. Resolução que inova acerca do tema, de forma autônoma, genérica e abstrata, em violação à reserva legal e ao princípio da separação dos poderes (art. 5º, caput e § 2º, CE/89; art. 5º, II, CF/88).

3. Violação da competência da Justiça Comum para investigação e processamento dos crimes dolosos contra vida de civil praticados por militares (art. 79-B, CE/89) bem como às atribuições previstas à Polícia Militar e à Polícia Civil (arts. 140 e 141, CE/89).

 

         O Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, no exercício da atribuição prevista no art. 116, VI, da Lei Complementar Estadual n. 734, de 26 de novembro de 1993 (Lei Orgânica do Ministério Público do Estado de São Paulo), em conformidade com o disposto no art. 125, § 2º, e no art. 129, IV, da Constituição Federal, e, ainda, nos arts. 74, VI, e 90, III, da Constituição do Estado de São Paulo, vem, respeitosamente, perante esse egrégio Tribunal de Justiça, promover a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE em face da Resolução nº 54, de 18 de agosto de 2017, do Tribunal de Justiça Militar do Estado de São Paulo, pelos fundamentos a seguir expostos:

I – O Ato Normativo Impugnado

A Resolução nº 54, de 18 de agosto de 2017, do Tribunal de Justiça Militar do Estado de São Paulo, que “dispõe sobre apreensão de instrumentos ou objetos em Inquérito Policiais Militares”, tem o seguinte teor:

O Presidente do Tribunal de Justiça Militar, no uso de suas atribuições legais e regimentais;

CONSIDERANDO que o § 4º do artigo 125 da Constituição Federal dispõe que os crimes militares definidos em lei, quando dolosos contra a vida de civil, são da competência do júri;

CONSIDERANDO que o § 2º do artigo 82 do Código de Processo Penal Militar dispõe que nesses casos a Justiça Militar encaminhará os autos do inquérito policial militar à Justiça Comum;

CONSIDERANDO que os Títulos II e III do Livro I do Código de Processo Penal Militar tratam detalhadamente do exercício da polícia judiciária militar e da elaboração do inquérito policial militar;

CONSIDERANDO que, ainda assim, quando da instauração de inquéritos policiais militares para apuração de crimes dolosos contra a vida de civil, algumas dúvidas têm surgido sobre o correto proceder em relação à apreensão de instrumentos ou objetos que digam respeito ao fato;

CONSIDERANDO a conveniência de se disciplinar o assunto, evitando que essas dúvidas resultem no desatendimento do princípio constitucional da celeridade no trâmite desses feitos;

CONSIDERANDO o decidido pelo E. Pleno na Sessão Administrativa Extraordinária de 18 de agosto de 2017;

RESOLVE:

Art. 1º. Em obediência ao disposto no artigo 12, alínea “b” do Código de Processo Penal Militar, a autoridade policial militar a que se refere o § 2º do artigo 10 do mesmo Código, deverá apreender os instrumentos e todos os objetos que tenham relação com a apuração dos crimes militares definidos em lei, quando dolosos contra a vida de civil.

Art. 2º. Em observância ao previstos nos artigos 8º, alínea “g”, e 321 do Código de Processo Penal Militar, a autoridade de polícia judiciária militar deverá requisitar das repartições técnicas civis as pesquisas e exames necessários ao complemento da apuração dos crimes militares definidos em lei, quando dolosos contra a vida de civil.

Art. 3º. Nos casos em que o órgão responsável pelo exame pericial proceder a liberação imediata, o objeto ou instrumento deverá ser apensado aos autos quando da remessa à Justiça Militar, nos termos do artigo 23 do Código de Processo Penal Militar.

Art. 4º. Nas hipóteses em que o objeto ou instrumento permaneça no órgão responsável pelo exame pericial e somente posteriormente venha a ser encaminhado à autoridade de polícia judiciária militar, esta deverá também prontamente, quando do recebimento, efetuar o envio desse material à Justiça Militar, referenciando o procedimento ao qual se relaciona.

Parágrafo único – O mesmo procedimento deverá ser adotado pela autoridade de polícia judiciária militar quando do recebimento do laudo ou exame pericial.

Art. 5º. Esta Resolução entrará em vigor na data da sua publicação, revogadas as disposições em contrário.

II – O parâmetro da fiscalização abstrata de constitucionalidade

A Resolução nº 54/17 do TJMSP contraria frontalmente a Constituição do Estado de São Paulo, bem como a Constituição Federal, à qual está subordinada a produção normativa estadual, ante a previsão do art. 25 da Constituição Federal, que assim estabelece:

Artigo 25 – Os Estados organizam-se e regem-se pelas Constituições e leis que adotarem, observados os princípios desta Constituição.

A Resolução ora impugnada é incompatível com os seguintes preceitos da Constituição Estadual:

Artigo 1º O Estado de São Paulo, integrante da República Federativa do Brasil, exerce as competências que não lhe são vedadas pela Constituição Federal.

(...)

Artigo 5º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

(...)

§ 2º - O cidadão, investido na função de um dos Poderes, não poderá exercer a de outro, salvo as exceções previstas nesta Constituição.

(...)

Artigo 79 - B – Compete à Justiça Militar estadual processar e julgar os militares do Estado, nos crimes militares definidos em lei e as ações judiciais contra atos disciplinares militares, ressalvada a competência do júri quando a vítima for civil, cabendo ainda decidir sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças

(...)

Artigo 140 - À Polícia Civil, órgão permanente, dirigida por delegados de polícia de carreira, bacharéis em Direito, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares.

(...)

Artigo 141 - À Polícia Militar, órgão permanente, incumbem, além das atribuições definidas em lei, a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública.

Com efeito, a Resolução ora impugnada viola o princípio federativo, invadindo competência privativa da União para legislar sobre processo e estabelecer normas gerais sobre procedimentos em matéria processual.

Ofende, ainda, a reserva legal imposta constitucionalmente para veiculação de matéria que envolva processo e procedimento penal e a separação dos poderes.

Vulnera, por fim, a competência da Justiça Comum para a investigação e processamento dos crimes dolosos contra a vida de civis praticados por militares, subtraindo competência própria da Polícia Civil para investigar, mediante inquérito policial (e sem prejuízo do poder investigatório do Parquet), infrações penais comuns e exercer a atividade de polícia judiciária, fornecendo competência à Polícia Militar e à Justiça Militar que expressamente contrariam as reformas introduzidas pela Lei n. 9.299/96, pela Emenda Constitucional n. 45/04 e pela Emenda n. 21/06 à Constituição Paulista.

III – A NATUREZA DO ATO NORMATIVO IMPUGNADO

Antes de adentrar a análise das violações constitucionais promovidas pela Resolução ora impugnada, é necessária breve análise de sua natureza jurídica, a ensejar a instauração do contencioso direto de inconstitucionalidade.

A Resolução impugnada ostenta evidente autonomia, generalidade e abstração, com introdução de novidade normativa no ordenamento jurídico estadual, não sendo o caso de mera crise de legalidade, na qual a Resolução, editada com o fim de disciplinar assuntos de interesse interno, ultrapassa os limites estabelecidos na lei ordinária.

No caso em apreço, a Resolução assume caráter de regulamento autônomo, que desafia o controle concentrado por meio de Ação Direta de Inconstitucionalidade.

A Resolução em questão sujeita-se ao controle de constitucionalidade abstrato e concentrado por constituir ato normativo que, muito embora ostente nome ou roupagem formal de ato secundário (resolução), inova autonomamente na ordem jurídica, não se limitando a disciplinar questões interna corporis.

No ensinamento de Luís Roberto Barroso, “os atos normativos secundários, como decretos regulamentares, portarias, resoluções, por estarem subordinados à lei, não são suscetíveis de controle em ação direta de inconstitucionalidade. Não assim, porém, os atos normativos que, ostentando embora o nome ou a roupagem formal de ato secundário, na verdade pretendem inovar autonomamente na ordem jurídica, atuando com força de lei. Nesta caso, poderão ser  objeto de controle abstrato, notadamente para aferir violação ao princípio da reserva legal. Situam-se nessa rubrica os regimentos internos e atos normativos elaborados pelos Tribunais, inclusive o de Contas” (Controle de Constitucionalidade no Direito Brasileiro, São Paulo: Saraiva, 7ª ed. p. 217).

Neste contexto, a Resolução vergastada, ao inovar na disciplina concernente ao procedimento relativo a atos de investigação e tramitação de inquérito policial de crimes dolosos contra a vida de civis praticados por militares, assume caráter autônomo, passível de objeto de controle concentrado de constitucionalidade.

Como já assentado, “o Supremo Tribunal Federal deve exercer sua função precípua de fiscalização da constitucionalidade das leis e dos atos normativos quando houver um tema ou uma controvérsia constitucional suscitada em abstrato, independente do caráter geral ou específico, concreto ou abstrato de seu objeto” (RTJ 212/372; RTJ 206/232). Tal conclusão se esparge por identidade de razões à jurisdição constitucional estadual, instituída pelo § 2º do art. 125 da Constituição de 1988.

Em suma, se o ato normativo impugnado ostenta autonomia, generalidade e abstração suficientes, com introdução de novidade normativa, desafiando controle concentrado por meio de Ação Direta de Inconstitucionalidade. Neste sentido:

“1. INCONSTITUCIONALIDADE. Ação direta. Objeto. Admissibilidade. Impugnação de decreto autônomo, que institui benefícios fiscais. Caráter não meramente regulamentar. Introdução de novidade normativa. Preliminar repelida. Precedentes. Decreto que, não se limitando a regulamentar lei, institua benefício fiscal ou introduza outra novidade normativa, reputa-se autônomo e, como tal, é suscetível de controle concentrado de constitucionalidade. 2. INCONSTITUCIONALIDADE. Ação direta. Decreto nº 27.427/00, do Estado do Rio de Janeiro. Tributo. Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços – ICMS. Benefícios fiscais. Redução de alíquota e concessão de crédito presumido, por Estado-membro, mediante decreto. Inexistência de suporte em convênio celebrado no âmbito do CONFAZ, nos termos da LC 24/75. Expressão da chamada “guerra fiscal”. Inadmissibilidade. Ofensa aos arts. 150, § 6º, 152 e 155, § 2º, inc. XII, letra “g”, da CF. Ação julgada procedente. Precedentes. Não pode o Estado-membro conceder isenção, incentivo ou benefício fiscal, relativos ao Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços – ICMS, de modo unilateral, mediante decreto ou outro ato normativo, sem prévia celebração de convênio intergovernamental no âmbito do CONFAZ” (ADI n. 3664-RJ, Rel. Min. Cézar Peluso, Tribunal Pleno, Dje 21.09.2011)

Por outro lado, o deslocamento da competência do processamento e julgamento de crimes dolosos contra a vida de civis praticados por militares da Justiça Militar para a Justiça Comum, resultante da Lei n. 9.299/96, da Emenda Constitucional n. 45/04 e da Emenda n. 21/06 à Constituição Paulista, é signo da sensibilidade devotada ao relevante tema para a consolidação da efetiva tutela dos direitos humanos, e não pode ser obliterada por expedientes tendentes ao sentido oposto dessas normativas.

Colocadas essas premissas, passemos à análise das violações aos dispositivos da Constituição Bandeirante.

IV – VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO FEDERATIVO: COMPETÊNCIA NORMATIVA PRIVATIVA DA UNIÃO SOBRE PROCESSO

A ordem constitucional vigente adotou o princípio da predominância do interesse para definir a repartição de competências na federação brasileira. Nessa toada, a competência para dispor sobre assuntos de interesse nacional ou predominantemente geral foi atribuída à União, ao passo que o tratamento das matérias de interesse predominantemente local ficou a cargo do Município, restando aos Estados a competência residual.

Dessa forma, é pertinente assentar que diante do sistema federativo e da repartição constitucional de competências, quando se contraria uma regra de competência estabelecida pela Lei Maior, mais que se descumprir uma simples norma, o que se está a fazer, verdadeiramente, é desrespeitar uma das mais evidentes manifestações do princípio federativo – e, assim, a violar frontalmente a Constituição Estadual.   

Pois bem.

O traçado de competências normativas acerca de direito processual aponta a União como privativa detentora dessa capacidade, como consta do art. 22, I, da Constituição Federal.

Tal dispositivo, aliás, é reforçado pelo art. 25, § 1º, da Constituição de 1988, que só comete aos Estados competências residuais, de tal sorte que não lhes assiste dispor sobre aquilo que foi privativamente outorgado à esfera normativa federal.

No exercício da competência privativa que lhe é assegurada (art. 22, I, Constituição Federal), a União editou o Código Penal Militar (Decreto-Lei n. 1.001/69) e o Código de Processo Penal Militar (Decreto-Lei nº 1.002/69), que disciplinam a investigação e processamento das infrações penais militares.

O art. 9º, parágrafo único, do Código Penal Militar, exclui do rol de crimes militares aqueles dolosos contra a vida e cometidos contra civil, estabelecendo que eles serão da competência da justiça comum.

A investigação e processamento das infrações penais comuns, dentre elas aquelas tipificadas como crimes dolosos contra a vida, são disciplinadas pelo Código de Processo Penal (Decreto-Lei nº 3.689/41), também editado pela União, no exercício de sua competência legislativa privativa.

No entanto, a Resolução n. 54/17, ora questionada, inova indevidamente no ordenamento jurídico, ao disciplinar sobre (a) a apreensão de instrumentos ou objetos em inquéritos policiais que envolvam infração penal dolosa contra a vida de civil, e (b) a requisição de diligências investigativas e apensamento de exames periciais.

Desse modo, a resolução enfocada ao estabelecer que a autoridade policial militar deve: (a) apreender instrumentos e objetos que tenham relação com apuração dos crimes dolosos contra a vida de civil; (b) requisitar pesquisas e exames necessários à apuração dessas infrações e que os objetos, instrumentos e exames periciais; e que essas provas devem ser apensados aos autos da investigação quando da remessa à Justiça Militar, afrontou a competência legislativa da União para editar normas sobre processo penal (arts. 22, I, Constituição Federal), patenteando ofensa à competência normativa alheia e, em essência, ao princípio federativo.   

Isso possibilita o contraste da resolução objurgada em face do art. 1º da Constituição Estadual que delimita a competência normativa do Estado de São Paulo, em especial dos agentes, órgãos e entidades de quaisquer de seus Poderes.

A disciplina da investigação e persecução penal constitui matéria de processo penal, não sendo lícito ao Tribunal de Justiça Militar disciplinar o assunto autonomamente em resolução.

V – VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO FEDERATIVO: COMPETÊNCIA NORMATIVA PRIVATIVA DA UNIÃO SOBRE NORMAS GERAIS EM PROCEDIMENTOS EM MATÉRIA PROCESSUAL

Ainda dentro da repartição constitucional de competências entre as diversas esferas da federação brasileira como corolário sensível do princípio federativo, o artigo 24, XI da Constituição Federal estabelece competir concorrentemente à União, Estados e Distrito Federal, legislar sobre procedimentos em matéria processual.

E no âmbito da legislação concorrente, o artigo 24, § 1º estabelece competir à União estabelecer normas gerais.

Dispor sobre diligências investigativas relacionadas a infrações penais, e sua remessa à autoridade judiciária, é matéria relacionada a procedimento em matéria processual.

No exercício da atividade legiferante para editar normas gerais, a União editou tanto o Código de Processo Penal Militar (Decreto-Lei nº 1.002/69) como o Código de Processo Penal (Decreto-Lei nº 3.689/41).

Desse modo, ainda que não se entenda que a resolução ora objurgada não disciplina sobe processo, mas sim sobre procedimento, é certo que ao disciplinar sobre inquérito policial, penetrou a competência privativa da União prevista no artigo 24, XI e § 1º da Carta Federal, para editar normas gerais sobre procedimentos em matéria processual.

De fato, a resolução excede os limites da competência normativa estadual e invade a competência normativa federal, sendo incompatível com o art. 1º da Carta Estadual, norma que delimita a competência estadual.

VI – OFENSA AO PRINCÍPIO DA RESERVA LEGAL E À SEPARAÇÃO DOS PODERES

A Resolução nº 54/17 contraria frontalmente a Constituição do Estado de São Paulo, bem como a Constituição Federal, à qual está subordinada a produção normativa estadual, ante a previsão do art. 25 da Constituição Federal.

Os preceitos da Constituição Federal são aplicáveis aos Estados por força de seu art. 25, que assim estabelece:

Artigo 25 – Os Estados organizam-se e regem-se pelas Constituições e leis que adotarem, observados os princípios desta Constituição.

De fato.

A Resolução ora impugnada mantêm incompatibilidade vertical com o princípio da legalidade, porque a reserva legal exige lei em sentido formal para a disciplina de regras sobre processo e procedimentos em matéria processual.

Desse modo, seu tratamento por meio de resolução  implica de per si invasão do espaço reservado à lei e violação contundente à cláusula da separação de poderes. 

Com efeito, o art. 5º da Constituição Estadual consagra a independência entre os Poderes, estabelecendo em seu § 2º que:

O cidadão, investido na função de um dos Poderes, não poderá exercer a de outro, salvo as exceções previstas nesta Constituição.

Não bastasse matéria processual (e, subsidiariamente, procedimental) empenhar lei em sentido estrito por força da competência constitucional para legislar, é ponto elementar relacionado à disciplina de regras relativas a processo e procedimento em matéria processual a necessidade de a lei específica – no sentido de reserva legal ou de lei em sentido formal, ou, ainda, de princípio da legalidade absoluta ou restrita, como ato normativo produzido no Poder Legislativo mediante o competente e respectivo processo – estabelecer regras relativas a realização de diligências em inquéritos policiais e requisição de exames periciais em crimes dolosos contra a vida de civis.

         Nem se alegue que ao Tribunal de Justiça Militar Estadual remanesce competência para organizar a administração da justiça e da corporação castrenses, sob pena de convalidar a invasão de matéria sujeita exclusivamente à reserva legal.

A possibilidade de edição de resolução para disciplina da organização administrativa interna não significa a outorga de competência para fixar regras relativas ao inquérito policial, em especial a diligências em geral e o seu trâmite.

A alegação cede à vista do art. 22, I e 24, XII, da Constituição de 1988 que, em coro, exigem lei em sentido formal.

Desse modo, o ato normativo ora impugnado ignorou a reserva legal constitucionalmente estabelecida ao estabelecer regras relativas a processo penal e procedimento em matéria processual, matérias que são de exclusiva iniciativa legislativa, sendo interditado seu tratamento por resolução.

Os temas disciplinados na resolução são de indispensável lei formal, a ser votada pelo Poder Legislativo. Em última análise, desprezou-se a atuação do poder competente para disciplinar a matéria, ou seja, o Poder Legislativo, em manifesta afronta ao princípio da separação dos poderes.

VII - COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA COMUM PARA INVESTIGAÇÃO E PROCESSAMENTO DOS CRIMES DOLOSOS CONTRA A VIDA DE CIVIS PRATICADOS POR MILITARES

A Resolução nº 54/17 também viola os artigos 79-B, 140 e 141 da Carta Estadual, que assim dispõem:

Artigo 79 - B – Compete à Justiça Militar estadual processar e julgar os militares do Estado, nos crimes militares definidos em lei e as ações judiciais contra atos disciplinares militares, ressalvada a competência do júri quando a vítima for civil, cabendo ainda decidir sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças.

(...)

Artigo 140 - À Polícia Civil, órgão permanente, dirigida por delegados de polícia de carreira, bacharéis em Direito, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares.

(...)

Artigo 141 - À Polícia Militar, órgão permanente, incumbem, além das atribuições definidas em lei, a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública.

A competência jurisdicional da Justiça Militar Estadual para os crimes militares praticados contra civis não abrange os dolosos contra a vida quando a vítima for civil, nos termos do § 4º do art. 125 na redação dada pela Emenda Constitucional n. 45/04, reproduzido pelo artigo 79-B da Constituição Estadual, na redação dada pela Emenda Constitucional n. 21/06.

No mesmo sentido o parágrafo único do art. 9º do Código Penal Militar, na redação dada pela Lei n. 9.299/96 e mantida pela Lei n. 12.432/11, ao preceituar que:

Os crimes de que trata este artigo quando dolosos contra a vida e cometidos contra civil serão da competência da justiça comum, salvo quando praticados no contexto de ação militar realizada na forma do art. 303 da Lei no 7.565, de 19 de dezembro de 1986 - Código Brasileiro de Aeronáutica.

Nem se alegue que o § 2º do art. 82 do Código de Processo Penal Militar, na redação dada pela Lei nº 9.299/96, serve como fundamento hábil e proficiente da resolução combatida, porquanto a Emenda Constitucional nº 45/04, que alterou o §4º do art. 125 da Constituição Federal e a Emenda nº 21/06, que acrescentou o artigo 79-B à Constituição Estadual, estabelecem a competência para processamento e julgamento de crimes dolosos contra a vida de civil praticados por militar, por força da ressalva nela constantes.

A interpretação sistêmica da Constituição está a demonstrar que quando se trata de processamento e julgamento, no seio da repartição jurisdicional de competências – como por exemplo a originária dos Tribunais – isto envolve a preliminar apuração mediante o inquérito policial.

Portanto, o §2º do art. 82 do Código de Processo Penal Militar não foi recepcionado por essas Emendas Constitucionais.

Patente que se compete à Justiça Comum Estadual processar e julgar crimes dolosos contra a vida de civil praticados por militar, a ela compete também, e privativamente, pronunciar-se, em sede de promoção de arquivamento do inquérito policial, recebimento de denúncia, decisão de pronúncia ou plenária, assim como o controle do inquérito.

E se compete à Justiça Comum o processamento dos crimes dolosos contra a vida de civil praticados por militar porque não constituem infrações militares, por certo não cabe à Polícia Judiciária Militar sua investigação, sendo reservada a essa tão somente a investigação das infrações militares.

Assim entendeu o Superior Tribunal de Justiça:

“(...)

3. Diante de tais modificações, esta Corte Superior de Justiça adotou o entendimento de que, diante da incidência instantânea das normas processuais penais disposta no artigo 2º do Código de Processo Penal, a Lei 9.299/1996 possui aplicabilidade a partir da sua vigência, de modo que todas as investigações criminais e processos em curso relativos à crimes dolosos contra a vida praticados por militar contra civil devem ser encaminhados à Justiça Comum.

(STJ, RHC 25.384-ES, 5ª Turma, Rel. Min. Jorge Mussi, 07-12-2010, v.u., DJe 14-02-2011)”.

“PROCESSUAL PENAL. CONFLITO POSITIVO DE  COMPETÊNCIA. INQUÉRITO POLICIAL.   ADMISSIBILIDADE  DE  CONFLITO  EM  FASE  PRÉ-PROCESSUAL. COMPETÊNCIA JUÍZO DA CAUSA. TEORIA DOS PODERES IMPLÍCITOS.

(...)

IV - Aplicada a teoria dos poderes implícitos, emerge da competência de processar e julgar, o poder/dever de conduzir administrativamente inquéritos policiais.

Conflito de competência conhecido para declarar competente o Juiz de Direito da  Vara  do  Júri  e das Execuções Criminais da Comarca de Osasco/SP”.

(STJ- CC 144919-SP, Rel. Min. Felix Fischer, j. 220.6.2016).

Como bem destacado na r. decisão acima colacionada, emerge da competência de processar e julgar, o poder/dever de conduzir administrativamente inquéritos policiais.

Desse modo, a Resolução n. 54/17, ao disciplinar sobre medidas próprias de inquéritos policiais de infrações penais que não se inserem dentro de sua esfera de competência ou atribuição, viola o disposto no art. 79-B da Constituição Estadual, bem como os arts. 140 e 141 desta, pois, subtrai da Justiça Comum competência e da Polícia Civil o inquérito policial - que, como visto, é função que lhe é própria, sem prejuízo da atividade investigatória própria do Ministério Público.

VIII - PEDIDO LIMINAR

 Presentes os pressupostos do fumus boni iuris e do periculum in mora, bastantes para autorizar a suspensão liminar da vigência e eficácia do ato normativo impugnado.

A aparência do bom direito se mostra inquestionável pela apreciação de todos os motivos acima elencados, a demonstrar a inconstitucionalidade da Resolução n. 54/17.

O perigo da demora decorre da periclitação à ordem pública e à segurança jurídica, pois, investigações policiais poderão ser paralisadas ou dificultadas, comprometendo-se a eficiência do sistema de Justiça, notadamente em tema tão agudo e sensível.

Diante do exposto, requer-se a concessão da liminar, para fins de suspensão imediata da eficácia da Resolução n. 54, de 18 de agosto de 2017, do Tribunal de Justiça Militar do Estado de São Paulo.

IX – PEDIDO

Diante do exposto, requer-se o recebimento e processamento da presente ação, para que ao final seja julgada procedente, declarando a inconstitucionalidade Resolução n. 54, de 18 de agosto de 2017, do Tribunal de Justiça Militar do Estado de São Paulo.

Requer-se, ainda, sejam requisitadas informações ao Presidente do Tribunal de Justiça Militar Estadual, bem como, em seguida, citado o Procurador-Geral do Estado para manifestar-se sobre o ato normativo impugnado, aguardando-se, posteriormente, vista para fins de manifestação final.

Termos em que, pede deferimento.

São Paulo, 28 de agosto de 2017.

 

 

Gianpaolo Poggio Smanio

Procurador-Geral de Justiça

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1.     Distribua-se a petição inicial da ação direta de inconstitucionalidade, em face da Resolução nº 54, de 18 de agosto de 2017, do Tribunal de Justiça Militar do Estado de São Paulo, junto ao Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

 

2.     Oficie-se ao interessado, informando-lhe a propositura da ação, com cópia da petição inicial.

 

                       São Paulo, 28 de agosto de 2017.

 

 

Gianpaolo Poggio Smanio

Procurador-Geral de Justiça

 

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