EXCELENTÍSSIMO SENHOR
DESEMBARGADOR PRESIDENTE DO E. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
Protocolado nº 87.673/2017
1. Ação Direta de Inconstitucionalidade. Inciso I do art. 1º, expressão “Team Roping”, prevista no inciso IV do art. 1º, inciso V do art. 1º, expressão “o manejo e condução dos animais somente serão permitidos com a utilização do condutor elétrico pelo médico veterinário ou tratador por ele supervisionado”, constante do inciso IX do art. 4º, e parágrafos 1º, 2º, 3º e 4º do art. 5º, da Lei nº 8.104, de 26 de junho de 2017, do Município de Marília, que “dispõe sobre as normas para a realização de provas equestres e rodeios no âmbito do Município de Marília e dá outras providências”.
2. Lei Municipal que autoriza e disciplina a realização de rodeios de bovinos, equinos e bubalinos e de provas equestres no Município de Marília. Previsão da realização de provas de montaria, da prova de laço denominada “Team Roping” e de prova de paleteada. Previsão do uso de condutores elétricos no manejo e condução de animais. Previsão do uso de sedéns, cintas, cilhas, barrigueiras, esporas e laços. Provas e apetrechos que causam sofrimento aos animais.
3. Proteção da fauna nacional. Condutas que atentam contra o aludido objeto de proteção.
4. Violação ao art. 193, X, da CE.
O PROCURADOR-GERAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO, no exercício da
atribuição prevista no art. 116, inciso VI, da Lei Complementar Estadual nº
734, de 26 de novembro de 1993 (Lei Orgânica do Ministério Público de São
Paulo), em conformidade com o disposto nos arts. 125,
§ 2º, e 129, inciso IV, da Constituição Federal, e, ainda, nos arts. 74, inciso VI, e 90, inciso III, da Constituição do
Estado de São Paulo, com amparo nas informações colhidas no incluso
protocolado, vem, respeitosamente, perante esse Egrégio Tribunal de Justiça,
promover a presente AÇÃO DIRETA DE
INCONSTITUCIONALIDADE em face do
inciso I do art. 1º, da expressão “Team Roping”,
prevista no inciso IV do art. 1º, do inciso V do art. 1º, da expressão “o
manejo e condução dos animais somente serão permitidos com a utilização do
condutor elétrico pelo médico veterinário ou tratador por ele supervisionado”,
constante do inciso IX do art. 4º, e dos parágrafos 1º, 2º, 3º e 4º do art. 5º,
da Lei nº 8.104, de 26 de junho de 2017, do Município de Marília, pelos fundamentos que passa
a expor:
1. DOS DISPOSITIVOS LEGAIS IMPUGNADOS
A Lei nº 8.104, de 26 de
junho de 2017, do Município de Marília, ostenta a seguinte redação:
O inciso I do art. 1º, a expressão “Team Roping”, constante do inciso IV do art. 1º, o inciso V do art. 1º, a expressão “o manejo e condução dos animais somente serão permitidos com a utilização do condutor elétrico pelo médico veterinário ou tratador por ele supervisionado”, presente no inciso IX do art. 4º, e os parágrafos 1º, 2º, 3º e 4º do art. 5º, da Lei Municipal acima transcrita, ao permitirem a realização de provas de montaria, de laço e de paleteada e o uso de apetrechos que proporcionam sofrimento físico e psíquico aos animais, padecem de incompatibilidade vertical com a Constituição do Estado de São Paulo, como adiante será demonstrado.
2. O parâmetro da fiscalização abstrata de
constitucionalidade
Os dispositivos legais questionados contrariam frontalmente a Constituição do Estado de São Paulo, à qual está subordinada a produção normativa municipal ante a previsão dos arts. 1º, 18, 29 e 31, da Constituição Federal.
Os preceitos da Constituição Federal e da Constituição do Estado são aplicáveis aos Municípios por força do art. 29 daquela e do art. 144 desta.
Os
dispositivos em comento encontram-se em dissonância com os seguintes preceitos
da Carta Bandeirante:
“Artigo
144 - Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e
financeira se auto-organizarão por lei orgânica,
atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta
Constituição
(...)
Artigo 193 - O Estado, mediante lei, criará um sistema
de administração da qualidade ambiental, proteção, controle e desenvolvimento
do meio ambiente e uso adequado dos recursos naturais, para organizar,
coordenar e integrar as ações de órgãos e entidades da administração pública
direta e indireta, assegurada a participação da coletividade, com o fim de:
(...)
X - proteger a flora e a fauna, nesta compreendidos todos
os animais silvestres, exóticos e domésticos, vedadas as práticas que coloquem
em risco sua função ecológica e que provoquem extinção de espécies ou submetam
os animais à crueldade, fiscalizando a extração, produção, criação, métodos de
abate, transporte, comercialização e consumo de seus espécimes e subprodutos;
(...)”
3. Da
inconstitucionalidade
O constituinte originário, quando esquadrinhou as
linhas inaugurais da vigente ordem constitucional, estabeleceu nesse novel
arcabouço normativo uma gama de direitos cuja observância seria fundamental ao
equilíbrio de interesses oriundos dos mais variados segmentos sociais do Estado
brasileiro, buscando, assim, concretizar os objetivos estabelecidos em seu
texto, em especial o de promover o bem de todos (art. 3º, IV, da CF).
Nesse diapasão, portanto,
visualiza-se, no decorrer do texto magno de 1988, mandados constitucionais de
proteção a serem observados por todos os entes federativos da república
brasileira, dentre os quais se destaca, para os fins perquiridos nesta ação
direta, a proteção constitucional ao meio ambiente (art. 225 e seguintes, da
Constituição Federal), bem como à fauna, cuja competência legislativa é
concorrente entre a União e os Estado-membros (art. 24, VI, da CF).
Ex vi do disposto no art. 225, da CF, cujo teor, em linhas gerais,
fora reproduzido no decorrer do Capítulo IV, da Seção I, da Carta Paulista, a
preservação de um meio ambiente ecologicamente equilibrado é imperiosa à
existência do Estado brasileiro, pois sua defesa se revela essencial à
qualidade de vida das gerações presentes e futuras, devendo tanto o Poder
Público, como a coletividade zelar pela defesa desse interesse difuso.
Aliás, não por menos a
proteção do meio ambiente está incluída no Título VIII da CF/88 (Ordem Social),
sendo rememorada, outrossim, no Título VII (Ordem Econômica).
Partindo-se da premissa
segundo a qual se revela impossível a perpetuação da espécie humana dissociada
dos recursos naturais e espécies biológicas presentes na natureza, a tutela do
meio ambiente se torna assaz relevante ao próprio corpo social, de sorte que o
constituinte procedeu com exímia diligência ao insculpir em sua moldura
normativa a proteção do bem jurídico em questão, devendo sua guarida, assim,
ser necessariamente promovida, sob pena de contrariedade ao anseio de seu
criador.
Importante ressaltar, por
oportuno, que o E. Supremo Tribunal Federal já se posicionou nesse sentido em
inúmeros julgados, o que revela a envergadura constitucional da tutela em
exame. Apenas para clarificar a importância da proteção ambiental,
colacionam-se alguns julgados da lavra da Suprema Corte, verbis:
"O
direito à integridade do meio ambiente – típico direito de terceira geração –
constitui prerrogativa jurídica de titularidade coletiva, refletindo, dentro do
processo de afirmação dos direitos humanos, a expressão significativa de um
poder atribuído, não ao indivíduo identificado em sua singularidade, mas, num
sentido verdadeiramente mais abrangente, à própria coletividade social.
Enquanto os direitos de primeira geração (direitos civis e políticos) – que
compreendem as liberdades clássicas, negativas ou formais – realçam o princípio
da liberdade e os direitos de segunda geração (direitos econômicos, sociais e
culturais) – que se identificam com as liberdades positivas, reais ou concretas
– acentuam o princípio da igualdade, os direitos de terceira geração, que
materializam poderes de titularidade coletiva atribuídos genericamente a todas
as formações sociais, consagram o princípio da solidariedade e constituem um
momento importante no processo de desenvolvimento, expansão e reconhecimento
dos direitos humanos, caracterizados, enquanto valores fundamentais
indisponíveis, pela nota de uma essencial inexauribilidade."
(MS 22.164, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 30-10-1995, Plenário, DJ de17-11-1995.)
"Meio
ambiente – Direito à preservação de sua integridade (CF, art. 225) – Prerrogativa
qualificada por seu caráter de metaindividualidade –
Direito de terceira geração (ou de novíssima dimensão) que consagra o postulado
da solidariedade – Necessidade de impedir que a transgressão a esse direito
faça irromper, no seio da coletividade, conflitos intergeneracionais
– Espaços territoriais especialmente protegidos (CF, art. 225, § 1º, III) –
Alteração e supressão do regime jurídico a eles pertinente – Medidas sujeitas
ao princípio constitucional da reserva de lei – Supressão de vegetação em área
de preservação permanente – Possibilidade de a administração pública, cumpridas
as exigências legais, autorizar, licenciar ou permitir obras e/ou atividades
nos espaços territoriais protegidos, desde que respeitada, quanto a estes, a
integridade dos atributos justificadores do regime de proteção especial –
Relações entre economia (CF, art. 3º, II, c/c o art. 170, VI) e ecologia (CF,
art. 225) – Colisão de direitos fundamentais – Critérios de superação desse
estado de tensão entre valores constitucionais relevantes – Os direitos básicos
da pessoa humana e as sucessivas gerações (fases ou dimensões) de direitos (RTJ 164/158, 160-161) – A questão da
precedência do direito à preservação do meio ambiente: uma limitação
constitucional explícita à atividade econômica (CF, art. 170, VI) – Decisão não
referendada – consequente indeferimento do pedido de medida cautelar. A
preservação da integridade do meio ambiente: expressão constitucional de um
direito fundamental que assiste à generalidade das pessoas." (ADI 3.540-MC, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 1º-9-2005, Plenário, DJ de 3-2-2006.)”
Pois bem.
Dentre os segmentos de
proteção ambiental elencados pelo texto constitucional, lembrando que a tutela
em exame não se restringe aos elementos naturais presentes no mundo fenomênico,
mas também engloba outros variados segmentos, como o cultural, laboral e
artificial, embora nesta ação direta tratar-se-á apenas do aspecto natural de
proteção ambiental, cumpre no momento trazer à baila a guarida constitucional
atribuída à fauna brasileira.
Conforme dispõe o art. 225,
§ 1º, VII, da Constituição Federal, reproduzido com maior detalhamento no art.
193, X, da Constituição Estadual, é dever de todos proteger a fauna nacional,
vedadas quaisquer condutas que atentem contra o aludido objeto de proteção.
Vejamos:
“Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida,
impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e
futuras gerações.
§ 1º - Para assegurar a
efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:
VII - proteger a fauna e a flora,
vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função
ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais à crueldade.
Artigo 193 - O Estado, mediante lei, criará um sistema
de administração da qualidade ambiental, proteção, controle e desenvolvimento
do meio ambiente e uso adequado dos recursos naturais, para organizar,
coordenar e integrar as ações de órgãos e entidades da administração pública
direta e indireta, assegurada a participação da coletividade, com o fim de:
(...)
X - proteger a flora e a fauna, nesta compreendidos todos
os animais silvestres, exóticos e domésticos, vedadas as práticas que coloquem
em risco sua função ecológica e que provoquem extinção de espécies ou submetam
os animais à crueldade, fiscalizando a extração, produção, criação, métodos de
abate, transporte, comercialização e consumo de seus espécimes e subprodutos;”
Ou seja, é visível a
preocupação das Cartas Federal e Estadual com a proteção da fauna da terrae brasilis, não
fazendo distinção se silvestres, exóticos ou domésticos, sendo defeso qualquer
ato que prejudique sua função ecológica, promova sua extinção ou a submeta a
tratamento cruel, uma vez que, reflexamente, estar-se-ia a atentar contra o
próprio sistema ambiental, caracterizado pela sinergia entre seus elementos
componentes, cada qual com um respectivo papel de relevância nessa complexo
conjunto de condições, leis, influências e
interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a
vida em todas as suas formas.
Aliás, a necessidade da
tutela desses seres se revela tão imperiosa ao complexo sistema normativo
ambiental que a E. Corte Suprema, em reiterados julgamentos, firmou precedente no
sentido de se obstar qualquer conduta dissonante do imperativo constitucional
ora invocado, vide o teor das ementas destacadas:
“A obrigação
de o Estado garantir a todos o pleno exercício de direitos culturais,
incentivando a valorização e a difusão das manifestações, não prescinde da
observância da norma do inciso VII do art. 225 da CF, no que veda prática que
acabe por submeter os animais à crueldade. Procedimento discrepante da norma
constitucional denominado ‘farra do boi’." (RE 153.531, Rel. p/ o ac. Min. Marco Aurélio, julgamento em
3-6-1997, Segunda Turma, DJ de 13-3-1998).
“A promoção de briga de galos, além de caracterizar prática criminosa
tipificada na legislação ambiental, configura conduta atentatória à
Constituição da República, que veda a submissão de animais a atos de crueldade,
cuja natureza perversa, à semelhança da “farra do boi” (RE 153.531/SC), não
permite sejam eles qualificados como inocente manifestação cultural, de caráter
meramente folclórico. Precedentes. - A proteção jurídico-constitucional
dispensada à fauna abrange tanto os animais silvestres quanto os domésticos ou
domesticados, nesta classe incluídos os galos utilizados em rinhas, pois o
texto da Lei Fundamental vedou, em cláusula genérica, qualquer forma de
submissão de animais a atos de crueldade. - Essa especial tutela, que tem por
fundamento legitimador a autoridade da Constituição da República, é motivada
pela necessidade de impedir a ocorrência de situações de risco que ameacem ou
que façam periclitar todas as formas de vida, não só a do gênero humano, mas,
também, a própria vida animal, cuja integridade restaria comprometida, não fora
a vedação constitucional, por práticas aviltantes, perversas e violentas contra
os seres irracionais, como os galos de briga (“gallus-gallus”).
Magistério da doutrina. (...)” (ADI 1.856, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento
em 26-05-2011, Plenário, DJ de 14-10-2011).
Desse último julgado, aliás, extrai-se lição tão profícua aos anseios desta propositura, principalmente pela erudição de seu relator ao tratar sobre a temática, que se pede vênia para transcrever excertos subtraídos de seu v. acórdão:
“(...)
Vê-se, daí,
que o constituinte objetivou, com a proteção da fauna e com a vedação, dentre
outras, de práticas que “submetam os animais a crueldade”, assegurar a
efetividade do direito fundamental à preservação da integridade do meio
ambiente, que traduz conceito amplo e abrangente das noções de meio ambiente
natural, de meio ambiente cultural, de meio ambiente artificial (espaço urbano)
e de meio ambiente laboral, consoante ressalta o magistério doutrinário (CELSO
ANTÔNIO PACHECO FIORILLO, “Curso de Direito Ambiental Brasileiro”, p. 20/23,
item n. 4, 6ª ed., 2005, Saraiva; JOSÉ AFONSO DA SILVA, “Direito Ambiental
Constitucional”, p. 21/24, itens ns. 2 e 3, 4ª ed./2ª
tir., 2003, Malheiros; JOSÉ ROBERTO MARQUES, “Meio Ambiente Urbano”, p. 42/54,
item n. 4. 2005, Forense Universitária, v.g.).
Importante
assinalar, neste ponto, que a cláusula inscrita no inciso VII do § 1º do art.
225 da Constituição da República, além de veicular conteúdo impregnado de alto
significado ético-jurídico, justifica-se em função de sua própria razão de ser,
motivada pela necessidade de impedir a ocorrência de situações de risco que
ameacem ou que façam periclitar todas
as formas de vida, não só a do gênero humano, mas, também, a própria vida
animal, cuja integridade restaria comprometida por práticas aviltantes,
perversas e violentas contra os seres irracionais.
Resulta,
pois, da norma constitucional invocada como parâmetro de confronto (CF, art.
225, § 1º, VII), o sentido revelador
do vínculo que o constituinte quis estabelecer ao dispor que o respeito pela
fauna em geral atua como condição inafastável de
subsistência e preservação do meio ambiente em que vivem os próprios seres
humanos.
Evidente,
desse modo, a íntima conexão que há entre o dever ético-jurídico de preservar a
fauna (e de não incidir em práticas de crueldade contra animais), de um lado, e
a própria subsistência do gênero humano em um meio ambiente ecologicamente
equilibrado, de outro.
Cabe
reconhecer, portanto, Senhor Presidente, o impacto altamente negativo que
representaria, para a incolumidade do patrimônio ambiental dos seres humanos, a
prática de comportamentos predatórios e lesivos à fauna, seja colocando em
risco a sua função ecológica, seja provocando a extinção de espécies, seja,
ainda, submetendo os animais a atos de crueldade.
(...)
Impende
assinalar que a proteção conferida aos animais pela parte final do art. 225, §
1º, inciso VII, da Constituição abrange, consoante bem ressaltou o eminente
Ministro CARLOS VELLOSO, em voto proferido, em sede cautelar, neste processo,
tanto os animais silvestres quanto os domésticos ou domesticados, nesta classe
incluídos os galos utilizados em rinhas, pois o texto constitucional, em
cláusula genérica, vedou qualquer forma de submissão de animais a atos de
crueldade.” (grifo nosso)
Ora, no referido caso levado
à apreciação da Corte Constitucional, a leitura feita do art. 225, § 1º, VII,
da CF, por seus ministros é tão clara em favor da proteção do direito em jogo,
que se faz despiciendo tecer maiores considerações voltadas a seu patrocínio.
Conforme indicou o E.
Supremo Tribunal Federal, comportamentos atentatórios aos direitos dos animais,
ainda que de lesividade mínima ou lastreados em fundamentos estritamente
antropocêntricos, não mais encontram complacência em nossa res pública, porquanto a natureza a ninguém pertence, é bem difuso,
direito de todos, sendo defeso, por conseguinte, o assenhoramento
do destino desses seres vivos, independente do embasamento invocado em sua
defesa.
Assim, se o cerne da questão
reside na possibilidade de adequação dos atos normativos impugnados ao
desiderato constitucional protecionista, a partir das considerações
anteriormente esposadas, não pode ser patrocinado outro entendimento, senão o
de que eles são incompatíveis com o texto constitucional.
Verifica-se, na hipótese em
análise, que o Município de Marília permitiu e fomentou a prática de provas
equestres e de rodeios com a utilização de bovinos, equinos e bubalinos, sendo
contempladas provas de montaria, a prova de laço denominada “Team Roping” e a prova conhecida por paleteada, assim como o uso
de sedéns, cintas, cilhas, barrigueiras, esporas e laços. Além disso, a citada
legislação permitiu o uso de condutores elétricos no manejo e condução dos
animais.
Segundo o conteúdo da
enciclopédia livre Wikipédia:
“Rodeio é uma prática competitiva que consiste em permanecer
por até oito segundos sobre um animal, usualmente um cavalo ou boi. A avaliação
é feita por dois árbitros cuja nota é de 0 a 50 cada; um árbitro avaliada o
competidor e o outro avalia o animal, totalizando a pontuação de 0 a 100. O
rodeio divide-se em algumas modalidades, tais como ´touro, cutiano,
bareback, buldoging, três
tambores, sela americada, laço de bezerro e laço em
dupla´ (Sítio
eletrônico: https://pt.wikipedia.org. Consulta em 25-08-2017).
Apesar de os rodeios e as
provas equestres consubstanciarem, a princípio, atividades lícitas, não são
admissíveis, por violarem as Constituições Federal e Estadual, a realização de provas
e o uso de objetos que possam causar sofrimento a animais, como as provas de
montaria, de laço e as paleteadas, e a utilização de condutores elétricos, sedéns,
esporas e outros apetrechos causadores de injúrias físicas.
Nas montarias um sedém é
puxado firmemente em torno da região da virilha do animal, causando sofrimento,
fazendo com que corcoveie, ao mesmo tempo em que o peão segura a corda
americana com uma mão e desfere esporadas no touro, enquanto nele tenta
permanecer por oito segundos. A realização das montarias, com o uso de sedém e
golpes de espora, acarreta sofrimento físico aos animais usados em tais provas.
As
provas de laço, conhecidas por team roping, cal roping, eu-down roaping, laçada de bezerro e
laço em dupla, são aquelas nas quais
ganha o participante que, em menor tempo, consiga laçar e amarrar as patas do
animal, que, muitas vezes, conta poucos meses de vida, suportando, além de
estresse, dor física, possibilidade de danos físicos e até a morte.
Nas paleteadas, dois
competidores perseguem um novilho e o prensam entre dois cavalos, o que pode provocar
fraturas, hemorragias internas e a morte do animal perseguido e prensado.
O uso de condutores
elétricos para o manejo e condução de animais, mesmo que efetivado por médico
veterinário ou tratador supervisionado, com a utilização de descargas elétricas,
inegavelmente causa sofrimento físico, sendo, desta feita, prática incompatível
com a ordem constitucional.
Os sedéns, as cintas, as
cilhas e as barrigueiras são tiras amarradas fortemente na região da virilha
dos animais e utilizadas para fustigá-los, neles causando estresse, intenso sofrimento
e, por via de consequência, comportamento bravio.
Ainda que haja previsão, na
legislação impugnada, do uso daqueles materiais em lã, é evidente que a
utilização deles, comprimindo o corpo dos animais, para neles causar dor e um
comportamento arredio, próprio de animais selvagens, configura prática que
atenta contra a proteção à fauna veiculada no Texto Maior. A confecção de tais
objetos com lã não afasta o uso deles como compressores corpóreos para provocar
sofrimento, lembrando, aliás, que tais instrumentos ostentam somente esta
finalidade, de causar dor e fazer com que os animais pulem e se corcoveiem.
Vale dizer, independentemente
do material empregado na confecção de sedéns, cintas, cilhas e barrigueiras, tais
instrumentos são usados com o propósito de pressionar a virilha, o saco escrotal,
o pênis e o abdômen dos animais, provocando dor e sofrimento, levando-os a
pular e a corcovear.
As esporas são confeccionadas
em metal, usadas nas botas dos peões e fincadas no ventre e peito dos bovinos e
no pescoço e cabeça dos equinos, objetivando a dominação dos animais e a
montaria, também lhes acarretando sofrimento físico. A utilização de esporas é
bastante para acarretar dor, sendo irrelevante a circunstância de a lei
municipal ter vedado o uso de tais objetos com rosetas pontiagudas e nazarenas,
uma vez que, ainda que sem tais características, são aptos a causar sofrimento,
decorrente da pressão de tais artefatos contra o corpo dos animais.
Consoante
observa Laerte Fernando Levai, “(...) nos rodeios os animais também são
submetidos à crueldade. Pulam e escoiceiam nas provas de montaria em
decorrência de certos subterfúgios bem conhecidos na atividade do peão: o sedém
e a espora. Usados para fustigar touros e cavalos a arena, tais aparelhos independentemente
de sua forma e da capacidade de provocar lesões causam-lhes inegável sofrimento
físico e mental. Assim, os peões de rodeio fazem crer ao público que estão
montando animais xucros e bravios, quando na realidade esses animais, mansos e
domesticados, corcoveiam em desespero na tentativa de livrar-se daquilo que os
oprime. (...) O sedém é uma cinta de couro que aperta o abdômen e a virilha do
animal. Pouco importa seja confeccionado com material macio, porque seu efeito
de compressão provoca dor e sofrimento, sem necessariamente causar lesões na
pele ou, então, gerar esterilidade”. (in “Direito
dos Animais”, Editora Mantiqueira, pág. 56).
Os laços
e as cordas, de igual modo, usados nas provas de laço, configuram materiais que
evidentemente ocasionam sofrimento físico aos animais dominados.
Portanto,
depreende-se que a inovação no ordenamento jurídico do Município de Marília é
absolutamente dissonante do atual estágio constitucional de nossa república.
Se a jurisprudência
remansosa do E. Supremo Tribunal Federal veda qualquer conduta que ponha em
risco, ainda que minimamente, a integridade física de animais em território
nacional, a exemplo do que ocorreu nos casos levados à Suprema Corte
relacionados a “rinhas de galo” e “farra do boi”, é evidente que permissivo
legislativo direcionado a permitir determinadas provas de rodeio e o uso de
apetrechos que causam sofrimento revela flagrante inconstitucionalidade, por
violação ao art. 193, X, da Constituição Estadual.
A condenação dos atos cruéis não possui origem na necessidade do equilíbrio ambiental, mas sim no reconhecimento de que os animais são dotados de uma estrutura orgânica que lhes permite sofrer, sentir dor. Vale dizer, são seres sencientes. A rejeição a tais atos aflora, na verdade, dos sentimentos de justiça, de compaixão, de piedade, que orientam o ser humano a repelir toda e qualquer forma de mal radical, evitável sem justificativa razoável.
A permissão à realização de provas de montaria, de laço e paleteadas e ao uso, em rodeios e provas equestres, de condutores elétricos, sedéns, cintas, cilhas, barrigueiras, esporas e laços, no Município de Marília, representa evidente violação ao art. 193 da Constituição Estadual, que exige a criação de um sistema de proteção à fauna, nela compreendidos todos os animais silvestres, exóticos e domésticos, vedando práticas que os submetam à crueldade.
Este Colendo Órgão Especial já teve a oportunidade de enfrentar, em caso similar, as questões suscitadas na presente ação, reconhecendo, com acerto, a inconstitucionalidade de lei municipal que autorizava a realização de provas de laço e de vaquejada, uma vez que causadoras de sofrimento a animais.
Nesse sentido:
“DIRETA DE
INCONSTITUCIONALIDADE. Impugnação a Lei Municipal nº 5.056, de 10 de fevereiro
de 2015, que revogou o artigo 2º da Lei Municipal nº 4.446, de 23 de novembro
de 2010, do Município de Barretos, que vedava a realização das provas de laço e
vaquejada. Violação de dispositivos da Constituição Estadual e Federal. Precedentes
do STF - Ação procedente para declarar a inconstitucionalidade da Lei nº
5.056/2015” (ADI nº 2146983-12.2015.8.26.0000, Rel. Des. Péricles Piza, j. em
09-12-2015).
De igual modo, o Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo já assinalou, em outras oportunidades, a ilicitude decorrente do sofrimento causado a animais em rodeios pelo uso de sedéns e esporas e realização de provas de laço. Confira-se:
“Conquanto o
rodeio seja uma atividade lícita e permitida, na realização de festas dessa
natureza não poderá haver provas e atividades que impliquem maus-tratos aos
animais, em especial, as denominadas bulldog, laço em
dupla e laço de bezerro, tampouco poderão ser utilizados sedéns, ponteiras
metálicas, chicotes e aparelhos que causem choques nos animais, com o objetivo
de que estes escoiceiem e pulem furiosamente. Acrescenta-se que não convence
qualquer entendimento no sentido de que a festa de rodeio é apenas um esporte
ou ainda uma tradição do homem do interior, como se isso justificasse a
crueldade contra animais. As festas hoje realizadas em grandes arenas, com
shows, anunciantes e forte esquema publicitário, nada têm de tradicional. A
decisão agravada, repita-se, não impediu a realização do evento narrado nos
autos, nem foi essa a extensão da antecipação dos efeitos da tutela pleiteada
pelo Ministério Público no bojo da ação civil pública. O Município teve a sua
autonomia federativa preservada, podendo realizar a festa, desde que, contudo,
seja coibida a utilização de equipamentos que causem maus-tratos aos animais.
Nessa seara, bom que se diga que deve o Poder Público reprimir atividade
recreativa que possa gerar tratamento cruel de animais. De outro lado, a
realização dos rodeios com a abstenção da utilização dos instrumentos ofensivos
(como sedém e esporas) e as provas de laço e de derrubada de animais, não
implica prejuízo econômico, visto que o público em geral costuma participar da
festa em si, sobretudo pelos shows musicais sertanejos” (Agravo de Instrumento
nº 2143128-59.2014.8.26.0000, 2ª Câmara Reservada ao Meio Ambiente, Rel. Des.
Vera Angrisani, j. em 27-11-2014).
“Ação Civil Pública - Obrigação de fazer -Proibição
da utilização em rodeios de instrumentos e práticas que possam causar sofrimento
ou maus tratos aos animais -Obrigação de fiscalização dos eventos -Sentença
parcialmente procedente – Proibição de realizarem rodeios com os instrumentos indicados
- Possibilidade de utilização do salário mínimo para fins de penalidade - Imposição
de multa diária por descumprimento da obrigação – Preliminar afastada - Recurso desprovido” (Apelação Com Revisão
9072166-38.2004.8.26.0000, Câmara Especial do Meio Ambiente, Rel. Des.
Samuel Júnior, j. em 08-11-2007).
Ainda, urge trazer à colação o seguinte julgado do E. Supremo
Tribunal Federal, que guarda pertinência com a matéria em debate:
“AGRAVO DE INSTRUMENTO. AMBIENTAL. RODEIO. AGRAVO PROVIDO PARA
MELHOR EXAME DO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. Decisão: Trata-se de agravo de
instrumento interposto pela ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE CRIADORES DECAVALO QUARTO
DE MILHA - ABQM, com fundamento no artigo 544 do Código de Processo Civil, com
o objetivo de ver reformada a r. decisão de fls. 388/389, que inadmitiu seu
recurso extraordinário, manejado com arrimo na alínea b do permissivo Constitucional, contra acórdão prolatado pela
Câmara Especial de Meio Ambiente do Tribunal de Justiça de São Paulo, assim ementado:
“AÇÃO CIVIL PÚBLICA. BAURU. OBRIGAÇÃO DE NÃO FAZER. RODEIO. PROVAS DE LAÇOS.
MAUS TRATOS AOS BEZERROS. LEI N. 10.359/99 DE 30-08-1999. LF N. 10.519/02, DE
17-07-2002. MONTARIA E PROVAS DE LAÇO. 1. Rodeio. Provas de laço. As provas de
laço, usuais em rodeio, são em princípio lícitas se atendidos os requisitos da
Re. SAA-18/98, da Lei. 10.359/99 e da LF n. 10.519/02. A jurisprudência, no entanto, dando prevalência ao princípio da presunção
e à proteção inscrita no art. 225 da Constituição Federal, se inclinou por
entender que as provas de laço descritas na inicial (calfroping,
bullgod, bareback, team roping, ou em vernáculo,
laçada de bezerro, laçada dupla, pega garrote e vaquejada), por implicar em
tração na região cervical e cauda e na derrubada dos bezerros, causa dor e
sofrimento aos animais. Tais atividades, em consequência, são vedadas. -
Sentença de improcedência. Recurso do Ministério Público provido”. Não forma opostos
embargos de declaração. Nas razões do apelo extremo, sustenta a preliminar de
repercussão geral e, no mérito, aponta violação ao artigo 5º, III, da
Constituição Federal em decorrência de equivocada declaração de
inconstitucionalidade da Lei Federal n. 10.519/2002. É o relatório. DECIDO. O
agravo preenche todos os requisitos de admissibilidade, de modo que o
conhecimento do agravo é medida que se impõe. Ex positis, DOU PROVIMENTO ao
agravo de instrumento para determinar a subida do recurso extraordinário para
melhor exame. Publique-se. Brasília, 19 de fevereiro de 2014. Ministro Luiz Fux Relator Documento assinado digitalmente” (AI nº 764016
SP, Rel. Min. Luiz Fux, julg.
em 19-02-2014).
Portanto, os dispositivos
questionados na presente ação direta são inconstitucionais por afrontarem o
sistema de proteção animal determinado pelo art. 193, X, da Constituição
Estadual.
4. DOS PEDIDOS
a. Do pedido de liminar
Estão presentes, na hipótese
examinada, os pressupostos do fumus boni
iuris e do periculum in mora, a
justificar a suspensão liminar da vigência e eficácia dos dispositivos legais
impugnados.
A razoável fundamentação
jurídica decorre dos motivos expostos, que indicam, de forma clara, a
inconstitucionalidade dos dispositivos objurgados.
O perigo da demora decorre
especialmente da ideia de que, sem a imediata suspensão da vigência e eficácia
dos preceitos legais questionados, subsistirá a sua aplicação com a possível
realização das provas de montaria, de laço e paleteadas e com a utilização de condutores
elétricos, sedéns, cintas, cilhas, barrigueiras, esporas e laços, impondo
sofrimento físico e psíquicos aos animais empregados.
De resto, ainda que não
houvesse essa singular situação de risco, restaria, ao menos, a excepcional
conveniência da medida.
Com efeito, no contexto das
ações diretas e da outorga de provimentos cautelares para defesa da
Constituição, o juízo de conveniência é um critério relevante, que vem
condicionando os pronunciamentos do Supremo Tribunal Federal, preordenados à
suspensão liminar de leis aparentemente inconstitucionais (cf. ADIN-MC 125, j.
15.2.90, DJU de 4.5.90, p. 3.693, rel. Min. Celso de Mello; ADIN-MC 568, RTJ
138/64; ADIN-MC 493, RTJ 142/52; ADIN-MC 540, DJU de 25.9.92, p. 16.182).
Diante do exposto, requer-se
a concessão da liminar, para fins de suspensão imediata da eficácia do inciso I
do art. 1º, da expressão “e Team Roping”, constante
do inciso IV do art. 1º, do inciso V do art. 1º, da expressão “o manejo e
condução dos animais somente serão permitidos com a utilização do condutor
elétrico pelo médico veterinário ou tratador por ele supervisionado”, presente
no inciso IX do art. 4º, e dos parágrafos 1º, 2º, 3º e 4º do art. 5º, da Lei nº
8.104, de 26 de junho de 2017, do Município de Marília.
b. Do pedido principal
Por todo o exposto, aguarda-se o recebimento e
processamento da presente ação declaratória, para que, ao final, seja julgada
procedente, com a declaração da inconstitucionalidade do inciso I do art. 1º,
da expressão “e Team Roping”, constante do inciso IV do
art. 1º, do inciso V do art. 1º, da expressão “o manejo e condução dos animais
somente serão permitidos com a utilização do condutor elétrico pelo médico
veterinário ou tratador por ele supervisionado”, presente no inciso IX do art.
4º, e dos parágrafos 1º, 2º, 3º e 4º do art. 5º, da Lei nº 8.104, de 26 de
junho de 2017, do Município de Marília.
Requer-se, ainda, sejam requisitadas informações à
Câmara Municipal e ao Prefeito Municipal de Marília, bem como, posteriormente,
citado o Procurador-Geral do Estado para se manifestar sobre os dispositivos
legais impugnados.
Posteriormente, aguarda-se vista para fins de
manifestação final.
Termos
em que, pede deferimento.
São
Paulo, 28 de agosto de 2017.
Gianpaolo
Poggio Smanio
Procurador-Geral
de Justiça
dsc
Protocolado
nº 87.673/2017
Interessado: ONG Adote Animais
Objeto: representação para controle de constitucionalidade da Lei nº 8.104,
de 26 de junho de 2017, do Município de Marília
1. Promova-se a distribuição de ação direta de
inconstitucionalidade, instruída com o protocolado incluso, em face do inciso I
do art. 1º, da expressão “e Team Roping”, constante
do inciso IV do art. 1º, do inciso V do art. 1º, da expressão “o manejo e
condução dos animais somente serão permitidos com a utilização do condutor elétrico
pelo médico veterinário ou tratador por ele supervisionado”, presente no inciso
IX do art. 4º, e dos parágrafos 1º, 2º, 3º e 4º do art. 5º, da Lei nº 8.104, de
26 de junho de 2017, do Município de Marília.
2. Oficie-se ao interessado, informando-lhe a propositura da ação, com cópia da petição inicial.
São Paulo, 28 de agosto de 2017.
Gianpaolo
Poggio Smanio
Procurador-Geral
de Justiça
dsc