Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo n. 0003304-90.2012.8.26.0000

Requerente: Prefeito do Município de Suzano

Objeto: inconstitucionalidade da Lei n. 4.485, de 02 de junho de 2011, do Município de Suzano

 

 

Constitucional. Administrativo. Ação direta de inconstitucionalidade. Lei n. 4.485/11 do Município de Suzano. Obrigação de expedição de receitas médicas e odontológicas digitadas em computador, datilografadas ou escritas manualmente em letra de forma  nos postos médicos, nas unidades básicas de saúde, hospitais, clínicas, consultórios médicos da rede pública e privada do  município de suzano. Separação de poderes. Reserva de iniciativa legislativa do Chefe do Poder Executivo sobre a organização e o funcionamento dos serviços públicos. Reserva de Administração. Procedência da ação. É inconstitucional lei local, de iniciativa parlamentar, que obriga a expedição, nos postos médicos, nas unidades básicas de saúde, hospitais, clínicas, consultórios médicos da rede pública e privada, a prescrição digitada, datilografada, ou escrita manualmente em letra de forma, de receitas médicas ou odontológicas, por se situar a matéria tanto no âmbito da reserva de iniciativa legislativa do Chefe do Poder Executivo sobre atribuições e funções dos órgãos da Administração Pública, quanto na própria reserva de Administração, decorrentes do princípio da separação de poderes (arts. 5º; 24, § 2º, 2; e 47, II, XIV e XIX, a, da CE).

 

 

 

Colendo Órgão Especial:

 

 

                   Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade contestando a Lei n. 4.485, de 02 de junho de 2011, do Município de Suzano, de iniciativa parlamentar, que obriga a expedição de receitas médicas e odontológicas digitadas no computador, datilografadas ou escritas manualmente em letra de forma nos postos médicos, nas unidades básicas de saúde, hospitais, clínicas, consultórios médicos da rede pública e privada do Município de Suzano, sob alegação de violação aos arts. 5º, 25 e 144 da Constituição Estadual.

 

                   Foi deferido o pedido liminar, suspendendo “ex nunc” a vigência da Lei n. 4.485/11, do Município de Suzano (fls. 25/26).               

 

                  A douta Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato (fls. 38/44).

 

                   O Presidente da Câmara dos Vereadores prestou informações (fls. 49/50).

 

                   É o relatório.

 

                   A Lei n. 4.485, de 02 de junho de 2011, do Município de Suzano, que “dispõe sobre a obrigatoriedade de expedição de receitas médicas e odontológicas digitadas em computador, datilografadas ou escritas manualmente em letra de forma, e dá outras providências”, apresenta a seguinte redação:

 

“Art. 1º - É obrigatória a expedição de receitas médicas e odontológicas digitadas em computador, datilografadas ou escritas manualmente em letra de forma nos postos médicos, nas unidades básicas de saúde, hospitais, clínicas, consultórios médicos da rede pública e privada do município de Suzano.

 

Parágrafo único- A obrigatoriedade da expedição de receitas de acordo com o disposto no caput deste artigo, exclui a utilização de códigos e abreviaturas.

 

Art. 2º - A receita médica ou odontológica conterá, obrigatoriamente, as seguintes informações:

 

I- Nome, endereço, e o telefone do posto médico, da unidade básica de saúde, clínica ou consultório médico ou odontológico onde foi expedida a receita;

 

II- nome e endereço do paciente;

 

III- nome do medicamento indicado legível e, sempre que possível, com a indicação do respectivo medicamento genérico;

IV- forma do uso do medicamento;

 

V – concentração (dosagem);

 

VI- forma de apresentação;

 

VII- quantidade prescrita;

 

VIII- dosagem;

 

IX- via de administração;

 

X- período;

 

XI- assinatura do médico, com o respectivo carimbo constando o número de inscrição no Conselho Regional de Medicina ou Conselho Regional de Odontologia.

 

Art. 3º - O descumprimento das disposições da Lei, por parte do médico ou do odontólogo, implicará nas seguintes penalidades:

 

I – advertência por escrito;

II- multa de 02 (duas) UFM’s;

III- multa de 05 (cinco) UFM’s.

 

Art. 4º- As despesas decorrentes desta Lei correrão por conta de dotações orçamentárias próprias, suplementadas se necessário, previstas na LOA 2010, através do código 10.122.71582435-Manutenção de Atividades-Secretaria Municipal de Saúde.

 

Art. 5º - Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário”.

 

                   Denota-se na lei contestada a violação ao princípio da separação dos poderes pela invasão da reserva de iniciativa do Chefe do Poder Executivo e pela usurpação da reserva da administração, porquanto disciplinou atribuições e funções dos órgãos da Administração Pública, o que manifesta sua incompatibilidade com os arts. 5º; 24, § 2º, 2; e 47, II, XIV e XIX, a, da Constituição Estadual.

 

                   É ponto pacífico que “as regras do processo legislativo federal, especialmente as que dizem respeito à iniciativa reservada, são normas de observância obrigatória pelos Estados-membros” (STF, ADI nº 2.719-1-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Carlos Velloso, 20-03-2003, v.u.). Como desdobramento particularizado do princípio da separação dos poderes (art. 5º, Constituição Estadual), a Constituição do Estado de São Paulo prevê no art. 24, § 2º, 2, iniciativa legislativa reservada do Chefe do Poder Executivo (aplicável na órbita municipal por obra de seu art. 144) para “a criação e extinção das Secretarias de Estado e órgãos da administração pública, observado o disposto no art. 47, XIX”, o que compreende a fixação ou alteração das atribuições dos órgãos da Administração Pública direta.

 

                   Também prevê, no art. 47 (aplicável na órbita municipal por obra de seu art. 144), competência privativa do Chefe do Poder Executivo. O dispositivo consagra a atribuição de governo do Chefe do Poder Executivo, traçando suas competências próprias de administração e gestão que compõem a denominada reserva de Administração, pois, veiculam matérias de sua alçada exclusiva, imunes à interferência do Poder Legislativo.

 

                   O art. 47 da CE, em seu inciso II, confere ao Chefe do Poder Executivo o exercício, com auxílio dos Secretários, da direção superior da administração. O inciso XIV lhe comete a prática dos demais atos de administração, nos limites da competência do Poder Executivo. Por fim, a alínea a, do inciso XIX, lhe fornece a prerrogativa de dispor mediante decreto sobre “organização e funcionamento da administração estadual, quando não implicar aumento de despesa, nem criação ou extinção de órgãos públicos”, em preceito semelhante ao art. 84, VI, a, da Constituição Federal.

 

                   A inconstitucionalidade transparece exatamente pelo divórcio da iniciativa parlamentar da lei local com esses preceitos da Constituição Estadual. Pois, ao instituir a referida obrigação estabelece regras que respeitam à organização e ao funcionamento do Poder Executivo e impõem atribuição ao Poder Executivo.

 

                   A jurisprudência reconhece o vício de inconstitucionalidade em hipóteses similares, verbi gratia:

“RESERVA DE ADMINISTRAÇÃO E SEPARAÇÃO DE PODERES. - O princípio constitucional da reserva de administração impede a ingerência normativa do Poder Legislativo em matérias sujeitas à exclusiva competência administrativa do Poder Executivo. É que, em tais matérias, o Legislativo não se qualifica como instância de revisão dos atos administrativos emanados do Poder Executivo. Precedentes. Não cabe, desse modo, ao Poder Legislativo, sob pena de grave desrespeito ao postulado da separação de poderes, desconstituir, por lei, atos de caráter administrativo que tenham sido editados pelo Poder Executivo, no estrito desempenho de suas privativas atribuições institucionais. Essa prática legislativa, quando efetivada, subverte a função primária da lei, transgride o princípio da divisão funcional do poder, representa comportamento heterodoxo da instituição parlamentar e importa em atuação ultra vires do Poder Legislativo, que não pode, em sua atuação político-jurídica, exorbitar dos limites que definem o exercício de suas prerrogativas institucionais” (STF, ADI-MC nº 2.364-AL, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, 01-08-2001, DJ 14-12-2001, p. 23).

“CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. LEI QUE ATRIBUI TAREFAS AO DETRAN/ES, DE INICIATIVA PARLAMENTAR: INCONSTITUCIONALIDADE. COMPETÊNCIA DO CHEFE DO PODER EXECUTIVO. C.F, art. 61, § 1°, n, e, art. 84, II e VI, da Lei nº 7.157, de 2002, do Espírito Santo.

I. - É de iniciativa do Chefe do Poder Executivo a proposta de lei que vise a criação, estruturação e atribuição de órgãos da administração pública: C.F, art. 61, § 1°, II, e, art. 84, II e VI.

II. - As regras do processo legislativo federal, especialmente as que dizem respeito à iniciativa reservada, são normas de observância obrigatória pelos Estados-membros.

III. - Precedentes do STF.

IV - Ação direta de inconstitucionalidade julgada procedente” (STF, ADI nº 2.719-1-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Carlos Velloso, 20-03-2003, v.u.).

“É indispensável a iniciativa do Chefe do Poder Executivo (mediante projeto de lei ou mesmo, após a EC 32/01, por meio de decreto) na elaboração de normas que de alguma forma remodelem as atribuições de órgão pertencente à estrutura administrativa de determinada unidade da Federação” (STF, ADI nº 3.254-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Ellen Gracie, 16-11-2005, v.u., DJ 02-12-2005, p. 02).

“Ação direta de inconstitucionalidade - Ajuizamento pelo Prefeito de São José do Rio Preto - Lei Municipal n° 10.241/08 cria o serviço de fisioterapia e terapia ocupacional nas unidades básicas de saúde e determina que as despesas decorrentes 'correrão por conta das dotações orçamentárias próprias, suplementadas se necessário' - Matéria afeta à administração pública, cuja gestão é de competência do Prefeito - Vício de iniciativa configurado - Criação, ademais, de despesas sem a devida previsão de recursos - Inadmissibilidade - Violação dos artigos 5° e 25, ambos da Constituição Estadual - Inconstitucionalidade da lei configurada - Ação procedente” (ADI nº 172.331-0/1-00, Órgão Especial, Rel. Des. Walter de Almeida Guilherme, v.u., 22-04-2009).

                 Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da integral procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei n. 4.485, de 02 de junho de 2011, do Município de Suzano, que “dispõe sobre a obrigatoriedade de expedição de receitas médicas e odontológicas digitadas em computador, datilografadas ou escritas manualmente em letra de forma, e dá outras providências”

                  

                            São Paulo, 19 de abril de 2012.

 

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

vlcb