Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo n. 0271643-54.2011.8.26.0000

Requerente: Prefeito do Município de Onda Verde

Objeto: Inconstitucionalidade da Lei n. 1.338, de 26 de julho de 2011, do Município de Onda Verde

 

 

Constitucional. Administrativo. Ação direta de inconstitucionalidade. Lei n. 1.338/11 do Município de Onda Verde. Denominação de prédio público. Processo legislativo. Parametricidade no controle de constitucionalidade de norma municipal. Impossibilidade de confronto com a Lei Orgânica Municipal. Lei de iniciativa parlamentar. Violação ao princípio da separação dos poderes. 1. O controle abstrato, concentrado, direto e objetivo de constitucionalidade de lei ou ato normativo municipal, por via de ação direta, tem como exclusivo parâmetro a Constituição Estadual (art. 125, § 2º, CF), sendo insuscetível de conhecimento a arguição de inconstitucionalidade por vício no processo legislativo consistente na inobservância do quórum estabelecido na Lei Orgânica Municipal. 2. A denominação de bens, prédios, logradouros e vias do patrimônio público é ato privativo da gestão administrativa reservada ao Chefe do Poder Executivo. 3. Lei municipal de iniciativa parlamentar que usurpa a reserva da Administração, com ofensa ao princípio da separação dos poderes (art. 5º, CE).

 

 

Colendo Órgão Especial:

 

 

1.                Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade ajuizada pelo Prefeito do Município de Onda Verde contestando a Lei n. 1.368, de 26 de julho de 2011, de iniciativa parlamentar, que dá denominação à escola pública municipal, sob alegação de contrariedade aos arts. 5º, 25, 47, II e 144, da Constituição Estadual e ao art. 30, I, a, da Lei Orgânica do Município (fls. 02/18).

2.                Negada liminar (fls. 174/175), a douta Procuradoria-Geral do Estado declinou de sua intervenção (fls. 184/185), decorrendo in albis o prazo das informações da Câmara Municipal (fl. 186).

3.                É o relatório.

4.                O controle abstrato, concentrado, direto e objetivo de constitucionalidade de lei ou ato normativo municipal, por via de ação direta, tem como exclusivo parâmetro a Constituição Estadual, nos termos do art. 125, § 2º, da Constituição Federal.

5.               Por isso, não cabe a análise de vício no processo legislativo radicado na inobservância do quórum exigido pela Lei Orgânica Municipal.

6.                No mérito, a alegada ofensa ao art. 25 da Constituição Estadual não merece abono porque o objeto da lei impugnada não revela a geração de despesas novas, sem a necessária cobertura no orçamento.

7.                Entretanto, a ação é procedente sob o prisma de contrariedade ao princípio da separação de poderes.

8.                Não há na Constituição em vigor reserva de iniciativa para denominação de bens públicos em favor de qualquer dos Poderes, donde se conclui que a iniciativa das leis que dela se ocupem só pode ser geral ou concorrente.

9.                Contudo, é necessário distinguir as seguintes situações: (a) a edição de regras que disponham genérica e abstratamente sobre a denominação de logradouros públicos, ou alterações na nomenclatura já existente, caso em que a iniciativa é concorrente; (b) o ato de atribuir nomes a logradouros públicos, segundo as regras legais que disciplinam essa atividade, que é da competência privativa do Executivo.

10.              No Brasil, como se sabe, o governo municipal é de funções divididas, incumbindo à Câmara as legislativas e ao Prefeito as executivas. Entre esses Poderes locais não existe subordinação administrativa ou política, mas simples entrosamento de funções e de atividades político-administrativas. Nesta sinergia de funções é que residem a independência e a harmonia dos poderes, princípio constitucional extensivo ao governo municipal (HELY LOPES MEIRELLES, “Direito Municipal Brasileiro”, Malheiros, 8.ª ed., p. 427 e 508).

11.              Em sua função normal e predominante sobre as outras, a Câmara elabora leis, isto é, normas abstratas, gerais e obrigatórias de conduta. Esta é sua atribuição específica, bem diferente daquela outorgada ao Poder Executivo, que consiste na prática de atos concretos de administração.

12.              Ou seja, a Câmara edita normas gerais, enquanto que o Prefeito as aplica aos casos particulares ocorrentes (ob. cit., p. 429). Assim, no exercício de sua função legislativa, a Câmara está autorizada a editar normas gerais, abstratas e coativas a serem observadas pelo Prefeito, para a denominação das vias e logradouros públicos, como, por exemplo: proibir que se atribua o nome de pessoa viva, determinar que nenhum nome poderá ser composto por mais de três palavras, exigir o uso de vocábulos da língua portuguesa, etc. (ADILSON DE ABREU DALLARI, “Boletim do Interior”, Secretaria do Interior do Governo do Estado de São Paulo, 2/103).

13.              A nomenclatura de logradouros públicos, que constitui elemento de sinalização urbana, tem por finalidade precípua a orientação da população (JOSÉ AFONSO DA SILVA, “Direito Urbanístico Brasileiro”, Malheiros, 2.ª ed., p. 285).

14.              De fato, se não houvesse sinalização, a identificação e a localização dos logradouros públicos seria tarefa quase impossível, principalmente nos grandes centros urbanos, como é o caso da cidade de São Paulo.

15.              Diferente é a finalidade da denominação de próprios, em que não se visa a orientar a população, mas simplesmente homenagear pessoas ou fatos históricos.

16.              Contudo, a despeito de tal distinção, nada obsta que o nome dado a determinado logradouro público cumpra não só a função de permitir sua identificação e exata localização, mas sirva também para homenagear pessoas ou fatos históricos, segundo os critérios previamente fixados em lei editada para regulamentar essa matéria.  

17.              Em suma, a Câmara pode, por meio de lei, compelir o Prefeito a atender tal determinação, sem usurpar sua função. Mas não poderá, como ocorre na hipótese vertente, editar norma de conteúdo concreto e individualizante, conferindo a denominação de logradouro específico.

18.              Na ordem constitucional vigente, que incorporou o postulado da separação de funções, a fim de limitar o poder estatal, na consagrada fórmula desenvolvida pelo célebre jusfilósofo Montesquieu, não existe a menor possibilidade de a administração municipal ser exercida pela Câmara, por meio de leis, pois a Constituição é clara ao atribuir ao Prefeito a competência privativa para exercer, com o auxílio dos Secretários Municipais, a direção superior da administração municipal (Constituição Estadual, art. 47, II) e praticar os atos de administração, nos limites de sua competência (Constituição Estadual, art. 47, XIV), ou seja, emitir atos administrativos ou normativos na esfera de sua atribuição exclusiva (também denominada reserva da Administração).

19.              Bem por isso, aliás, ELIVAL DA SILVA RAMOS adverte que: “sob a vigência de Constituições que agasalham o princípio da separação de Poderes, no entanto, não é lícito ao Parlamento editar, a seu bel-prazer, leis de conteúdo concreto e individualizante. A regra é a de que as leis devem corresponder ao exercício da função legislativa. A edição de leis meramente formais, ou seja, ‘aquelas que, embora fluindo das fontes legiferantes normais, não apresentam os caracteres de generalidade e abstração, fixando, ao revés, uma regra dirigida, de forma direta, a uma ou várias pessoas ou a determinada circunstância’, apresenta caráter excepcional. Destarte, deve vir expressamente autorizada no Texto Constitucional, sob pena de inconstitucionalidade substancial” (“A Inconstitucionalidade das Leis - Vício e Sanção”, Saraiva, 1994, p. 194).

20.              Nesse contexto, a aprovação de lei, pela Câmara, que atribui nome a logradouro ou prédio público só pode ser interpretada como atentatória ao postulado constitucional da independência e harmonia entre os poderes (Constituição Estadual, art. 5.º).

21.              A propósito, ao examinar assunto o insigne Ministro FRANCISCO REZEK deixou registrado que:

“No contexto dos debates que esta matéria provocou na origem, e que envolveram os três poderes do Estado, vez por outra afloram equívocos conceituais de certa monta, qual o entendimento da prerrogativa de dar nome à sede forense como atributo da propriedade imobiliária, ou a visão do poder Executivo como titular do domínio dos bens públicos afetos a seus próprios serviços, tanto quanto aos da Legislatura e aos da Justiça” (STF, Rp 1.117-SP).

22.              Sobre o tema, este egrégio Tribunal de Justiça já decidiu:

“Ação Direta de Inconstitucionalidade – Lei Municipal que impõe ao Chefe do Poder Executivo nome de rua – Vício de iniciativa – Invasão de esfera privativa deste – Ação procedente” (ADI 115.877.0/5, Rel. Des. Laerte Nordi, 20-07-2005).

23.              A Câmara não pode arrogar a si a competência para autorizar a prática de atos concretos de administração. E a nomenclatura de logradouros e próprios públicos - que constitui atividade relacionada ao serviço público municipal de sinalização e identificação - enquadra-se exatamente nessa hipótese, resultando, daí, a conclusão de que a lei em epígrafe é manifestamente incompatível com o princípio da separação dos poderes.

24.              Em suma, a denominação de bens, prédios, logradouros e vias do patrimônio público é ato privativo da gestão administrativa reservada ao Chefe do Poder Executivo. Lei municipal de iniciativa parlamentar sobre o assunto usurpa a reserva da Administração, com ofensa ao princípio da separação dos poderes (art. 5º, Constituição Estadual).

25.              Opino pela procedência da ação pela contrariedade da Lei n. 1.338/11 com os arts. 5º e 47 da Constituição do Estado de São Paulo.

                   São Paulo, 13 de abril de 2012.

 

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

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