Parecer em Incidente de Inconstitucionalidade

 

Autos nº. 0079421-25.2012.8.26.0000

Suscitante: 13ª. Câmara de Direito Público

Objeto: Lei n. 14.072, de 18 de outubro de 2005, que autoriza a Companhia de Engenharia de Tráfego – CET – a cobrar pelos custos operacionais de serviços prestados em eventos, relativos à operação do sistema viário.

 

 

Ementa: Incidente de inconstitucionalidade suscitado pela 13ª. Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, da Lei n. 14.072, de 18 de outubro de 2005, que autoriza a Companhia de Engenharia de Tráfego – CET – a cobrar pelos custos operacionais de serviços prestados em eventos, relativos à operação do sistema viário. Valor cobrado tem natureza de preço público e não de taxa. Legalidade. Parecer pela admissão e não acolhimento do incidente de inconstitucionalidade.

                  

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

1.   Relatório.

Trata-se de incidente de inconstitucionalidade suscitado pela C. 13ª Câmara de Direito Público, nos autos de Apelação Cível nº 9471-95.2011.8.26.0053, em que figuram como partes a União Nacional dos Estudantes (UNE - apelante) e a Companhia de Engenharia de Tráfego (CET – apelada).

Objetiva-se atender à cláusula de reserva de plenário (Súmula Vinculante nº 10 do STF), eis que se cogita eventual inconstitucionalidade da Lei n. 14.072, de 18 de outubro de 2005, que autoriza a Companhia de Engenharia de Tráfego – CET – a cobrar pelos custos operacionais de serviços prestados em eventos, relativos à operação do sistema viário.

Não há notícia de pronunciamento anterior do Órgão Especial, do Plenário ou do Supremo Tribunal Federal sobre a questão suscitada (art. 481, parágrafo único, do CPC).

2. Da admissibilidade do incidente de inconstitucionalidade.

   A questão de direito deve ser solucionada para que seja possível concluir-se o julgamento da apelação interposta pela União Nacional dos Estudantes (UNE).

Como anota José Carlos Barbosa Moreira, comentando o parágrafo único do art. 481 do CPC, “são duas as hipóteses em que se deixa de submeter a arguição ao plenário ou ao órgão especial: (a) já existe, sobre a questão, pronunciamento de um desses órgãos do tribunal em que corre o processo; (b) já existe, sobre a questão, pronunciamento do plenário do STF. A redação alternativa indica que é pressuposto bastante da incidência do parágrafo a ocorrência de uma delas” (Comentários ao CPC, vol.V, 13ªed., Rio de Janeiro, Forense, 2006, p.44).

 No caso em exame, salvo eventual equívoco, a quaestio iuris – que se restringe à verificação da constitucionalidade da Lei n. 14.072, de 18 de outubro de 2005, que autoriza a Companhia de Engenharia de Tráfego – CET – a cobrar pelos custos operacionais de serviços prestados em eventos, relativos à operação do sistema viário – não foi examinada pelo Plenário ou Órgão Especial.

              De outro lado, e de acordo com pesquisa informatizada, não há notícia de que a validade dessa norma foi julgada pelo Supremo Tribunal Federal ou analisada por esse Sodalício sob a perspectiva aqui abordada.

                Assim, considerando que (a) a solução da quaestio iuris é imprescindível para o julgamento do recurso de apelação, e (b) ainda não houve declaração de inconstitucionalidade a seu respeito pelo E. STF ou por esse E. Tribunal de Justiça, é de ser admitido o processamento do presente incidente de inconstitucionalidade.

3. Fundamentação

A questão constitucional foi delimitada pelo Órgão Fracionário nos seguintes termos:

“Segundo a tese recursal a cobrança ora questionada é inconstitucional sob a justificativa de que a prestação de serviços pela CET tem natureza tributária, e a atribuição da base de cálculo e eventual alíquota a um decreto viola o princípio da legalidade”(fls. 218).

Reside a controvérsia em se saber qual a natureza jurídica da cobrança efetuada pela Lei n. 14.072, de 18 de outubro de 2005, se taxa ou tarifa.

A Constituição da República, ao regular o sistema constitucional tributário, estabeleceu a denominada “regra matriz de incidência”. Embora não tenha ela própria criado tributos, indicou, de forma genérica, a norma padrão de incidência, ou seja, as hipóteses genericamente consideradas, das quais o legislador infraconstitucional de todas as esferas da Federação pode se valer para criar tributos.

A competência das pessoas políticas (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) para instituir e arrecadar tributos deve se desenvolver dentro desses limites, sob pena de mostrar-se inconstitucional.

É indispensável invocar, nesse passo, as considerações formuladas por Roque Antônio Carrazza (Curso de Direito Constitucional Tributário, 4ª ed., Malheiros, 1993, p. 257):

“A Constituição, ao discriminar as competências tributárias, estabeleceu – ainda que, por vezes, de modo implícito e com uma certa margem de liberdade para o legislador – a norma padrão de incidência (o arquétipo genérico, a regra matriz) de cada exação. Noutros termos, ela apontou a hipótese de incidência possível, o sujeito ativo possível, o sujeito passivo possível, a base de cálculo possível e a alíquota possível, das várias espécies e subespécies de tributos. Em síntese, o legislador, ao exercitar a competência tributária, deverá ser fiel à norma padrão de incidência do tributo, pré-traçada na Constituição. O legislador (federal, estadual, municipal ou distrital) enquanto cria o tributo, não pode fugir deste arquétipo constitucional”.

Além disso, a respeito da hipótese de incidência das taxas, anota Roque Antônio Carrazza que deve ser “uma prestação de serviço público diretamente referida a alguém”. São os serviços específicos, prestados uti singuli. “Gozam, portanto, de divisibilidade, é dizer, da possibilidade de avaliar-se a utilização efetiva ou potencial, individualmente considerada. É o caso dos serviços de telefone, de transporte coletivo, de fornecimento domiciliar de água potável, de gás, de energia elétrica, etc. Estes sim podem ser custeados por meio de taxas de serviço” (op. cit., p. 271/272).

No mesmo sentido, anotou oportunamente Geraldo Ataliba (Hipótese de Incidência Tributária, 4ªed., São Paulo, RT, 1991, p. 128 e ss.) que a taxa é espécie de tributo vinculado, tendo em vista o critério jurídico do aspecto material do fato gerador, ou seja, a “hipótese de incidência”, devendo assim ser serviço especificamente ligado ao contribuinte.

Nessa mesma linha de raciocínio, aduz Hely Lopes Meirelles (Direito Municipal Brasileiro, 6ª ed., 3ª tir., São Paulo, Malheiros, 1993, p. 141), que: “quanto à divisibilidade, o conceito do Código Tributário Nacional está correto, pois caracteriza como divisíveis os serviços uti singuli, i. é, os de utilização individual e mensurável, que se contrapõem aos serviços uti universi, prestados indistintamente a todos os usuários, sem possibilidade de individualização e medição, muito embora possam beneficiar mais determinadas categorias do que outras. (...) Somente a conjugação desses dois requisitos – especificidade e divisibilidade – aliada à compulsoriedade do serviço, pode autorizar a imposição de taxa”.

É pacífico, na doutrina, o entendimento de que só serviços específicos e divisíveis podem render ensejo à tributação por meio de taxas. Confira-se, entre outros: Luciano Amaro Neto, Direito Tributário Brasileiro, 13ª ed., São Paulo, Saraiva, 2007, p. 33 e ss; Ricardo Lobo Torres, Curso de Direito Financeiro e Tributário, 14ª ed., Rio de Janeiro, Renovar, 2007, p. 403; Leandro Paulsen, Direito Tributário, 9ª ed., Porto Alegre, 2007, p. 48.

Essa posição também é assente junto ao E. STF, no sentido de não se admitir a tributação, por meio de taxas, de serviços que não sejam específicos e divisíveis. Confiram-se os seguintes precedentes: RE 367.004-AgR, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgamento em 31-5-07, DJ de 22-6-07; ADI 2.424, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento em 1º-4-04, DJ de 18-6-04; ADI 948, Rel. Min. Francisco Rezek, julgamento em 9-11-95, DJ de 17-3-00; AI 245.539-AgR, Rel. Min. Ilmar Galvão, julgamento em 14-12-99, DJ de 3-3-00; RE 249.070, Rel. Min. Ilmar Galvão, julgamento em 19-10-99, DJ de 17-12-99; ADI 447, voto do Min. Carlos Velloso, julgamento em 5-6-91, DJ de 5-3-93.

Ocorre que, no caso dos autos, como bem assinalado pelo apelado, “a cobrança de custos operacionais decorrentes de eventos não pode ser qualificada como pagamento de serviço público que deve ocorrer por meio de taxa, eis que não se trata de prestação de serviço divisível”(fls. 194).

Outro não tem sido o entendimento deste Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, ao reconhecer a natureza jurídica de preço público às cobranças realizadas com suporte na Lei n. 14.072, de 18 de outubro de 2005, que autoriza a Companhia de Engenharia de Tráfego – CET – a cobrar pelos custos operacionais de serviços prestados em eventos, relativos à operação do sistema viário, conforme se pode verificar dos julgados abaixo:

 “OPERAÇÃO DO SISTEMA VIÁRIO – Custo operacional do serviço - Natureza jurídica de preço público, sem característica tributária – Legitimidade da cobrança - Recurso provido” (AC nº 0035077- 96.2009.8.26.0053, rel. Des. Francisco Vicente Rossi, 11ª C. Direito Público, j. 7.11.11).

(...).

 “COBRANÇA - CET - custos operacionais decorrentes de evento realizado pela ré – Lei Municipal n. 10.072/05 - valor cobrado tem natureza de preço público e não de taxa - legalidade da cobrança -ação procedente - recurso improvido” (AC nº 9154844-37.2009.8.26.0000, rel. Des. Franklin Nogueira, 1ª C. Direito Público, j. 24.5.11).

(...).

“MANDADO DE SEGURANÇA COLETIVO E PREVENTIVO - DIREITO ADMINISTRATIVO E CONSTITUCIONAL - PRETENSÃO AO RECONHECIMENTO DE ILEGALIDADE NA COBRANÇA DE CUSTOS OPERACIONAIS DA CET, AMPARADA NA LEI MUNICIPAL Nº 14.072/05, DECRETO Nº 46.942/06 E PORTARIA Nº 58/06 DO SECRETÁRIO MUNICIPAL DE TRANSPORTES DE SÃO PAULO - OPERAÇÃO DO SISTEMA VIÁRIO - IMPOSSIBILIDADE.

1. Preliminar de não-conhecimento do recurso afastada, com base em precedentes do STJ.

2. Prejudicial de não cabimento de mandado de segurança rejeitada, porque não se trata de impetração contra lei em tese.

3. No mérito, inexistência de direito líquido e certo passível de reconhecimento pela via mandamental.

4. Preço público cobrado sem característica tributária.

5. Taxa não caracterizada.

6. Custo operacional do serviço de transporte urbano exigido por sociedade de economia mista, com respaldo em lei, para serviços excepcionais, extraordinários ou eventuais, visando recompor gastos públicos não abrangidos nas respectivas dotações orçamentárias e remunerar a própria prestação de serviços. 7. Legalidade reconhecida.

8. Precedentes deste Tribunal de Justiça.

9. Sentença denegatória confirmada.

10. Recurso de apelação desprovido (AC nº 0169738-11.2008.8.26.0000, rel. Des. Francisco Bianco, 5ª C. Direito Público, j. 4.4.11).

(...).

“Administrativo - Entidade sem fins lucrativos que se dedica a promover evento cultural em vias públicas - Ação visando a afastar obrigatoriedade quanto à satisfação dos custos operacionais da Companhia de Engenharia de Tráfego de São Paulo - Argumento de que de utilidade pública a autora - Verba prevista na Lei Municipal n° 14.072/05 e que tem natureza de preço público e não de taxa - Precedentes – Isenção descabida, máxime em se tratando de atividade a encerrar a comercialização de bens - Sentença de improcedência que se mantém - Recurso desprovido (AC nº 0124505-60.2007.8.26.0053, rel. Des. Ivan Sartori, 13ª C. Direito Público, j. 6.10.10).

(...).

“ADMINISTRATIVO. Uso temporário, em caráter privado, de via pública municipal de São Paulo. 1. Segundo a LM n° 14.072/05, é necessária obtenção de autorização prévia da CET/SP para a realização de qualquer evento que envolva interesse comercial e que acarrete interdição, total ou parcial, de logradouro público da Capital.

2. A atuação da CET/SP engloba fiscalização e manutenção da segurança viária, contra pagamento de remuneração pelo serviço prestado.

3. À incidência da lei basta a potencialidade lesiva do evento.

4. Verificada a ocorrência de evento não autorizado, tem a CET/SP o poder-dever de atuar, assegurada posterior cobrança do devido.

5. A LM n° 14.072/05 é constitucional. Dispõe sobre preços públicos, os quais podem ser estabelecidos por decreto (AC nº 0013851-35.2009.8.26.0053, rel. Des. Coimbra Schmidt, 7ª C. Direito Público, j. 2.8.10).

(...).

“Operação do sistema viário - Custo operacional do serviço - Valor exigido por sociedade de economia mista - Natureza jurídica - Impossibilidade de se falar em taxa - Preço cobrado sem característica tributária - Recurso desprovido” (AC nº 0213835- 96.2008.8.26.0000, rel. Des. Borelli Thomaz, 13ª C. Direito Público, j. 30.6.10).

Registre-se que a CET cobra pelos custos operacionais de serviços prestados, relativos à operação do sistema viário, decorrentes da realização de eventos, inclusive seus ensaios, realizados em via aberta à circulação, ou em locais fechados cujos reflexos possam perturbar ou interromper a livre circulação de veículos e pedestres, ou colocar em risco sua segurança, o que afasta, portanto, a sua divisibilidade e sua natureza de taxa. E essa cobrança não pode ser tratada como taxa, e sim como preço público.

Ademais, mencionado entendimento tem sido sufragado pelo Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, conforme se constatou dos julgados acima transcritos.

4.  Conclusão.

              Diante do exposto, somos pela admissão e pelo não acolhimento do presente incidente.

 

São Paulo, 07 de maio de 2012.

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

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