Parecer em incidente de Inconstitucionalidade

 

Autos nº 0082842-23.2012.8.26.0000

Suscitante: 8ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

Objeto: art. 19 da Lei Municipal n. 3.616, de 6 de janeiro de 2005, do Município de Tatuí

 

Ementa:

1)      Incidente de inconstitucionalidade do art. 19 da Lei Municipal n. 3.616, de 6 de janeiro de 2005, do Município de Tatuí, que criou cargos de provimento em comissão de livre nomeação e exoneração do Prefeito Municipal sem lhes atribuir as respectivas funções.

2)      Cargos de provimento em comissão para o exercício de funções eminentemente técnicas.

3)      Invasão da reserva legal, geradora de violação da separação de poderes, em razão do Chefe do Poder Executivo definir em decreto as atribuições dos cargos ou empregos públicos de provimento em comissão;

4)      Incompatibilidade vertical com os arts. 111, 115, II, e 144, todos da Constituição Paulista.

5)      Parecer pela declaração da inconstitucionalidade parcial da norma questionada.

 

 

 

Colendo Órgão Especial,

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente:

 

O Ministério Público do Estado de São Paulo ajuizou Ação Civil Pública na qual pleiteia a declaração de nulidade de atos administrativos de nomeação de servidores, bem como o reconhecimento de improbidade administrativa, tendo por causa de pedir, dentre outros motivos, a inconstitucionalidade do art. 19 da Lei Municipal n. 3.616, de 6 de janeiro de 2005, do Município de Tatuí.

Pela r. Sentença de fls. 1.056/1.062, a ação foi julgada improcedente.

O Parquet apelou (fls. 1.064/1.103).

O recurso foi regularmente processado, com contrarrazões às fls. 1.108/1.139, sendo distribuído à Colenda 8ª Câmara de Direito Público.

Após parecer da Procuradoria de Justiça de Interesses Difusos e Coletivos (fls. 1.162/1.198) sobreveio o V. Acórdão de fls. 1.218/1.223 remetendo os autos para instauração do incidente de inconstitucionalidade, em atenção à cláusula da reserva de Plenário do art. 97 da Constituição Federal e aos ditames da Súmula Vinculante nº 10, tendo em vista a conclusão no sentido da inconstitucionalidade do art. 19 da Lei Municipal n. 3.616, de 6 de janeiro de 2005, do Município de Tatuí.

Este é resumo do que consta dos autos.

Com a advertência de que a manifestação se restringe à questão prejudicial, o parecer é no sentido da inconstitucionalidade do art. 19 da Lei Municipal n. 3.616, de 6 de janeiro de 2005, do Município de Tatuí.

Ocorre que se encontra, de fato, eivado de inconstitucionalidade o dispositivo legal questionado. Isso decorre da delegação indevida da definição de atribuições dos cargos em comissão, o que é incompatível com o princípio da legalidade, uma vez que a reserva legal exige lei em sentido formal para descrição das atribuições dos cargos em comissão.

A exigência constitucional decorre da necessidade de se averiguar a completa licitude do exercício das funções pelo agente público, que resta impossibilitada pela falta de descrição precisa, por lei em sentido formal, das atribuições do cargo público (art. 61, § 1º, II, a, da Constituição Federal e art. 24, § 2º, 1, da Constituição Estadual).

No mesmo sentido os seguintes julgados:

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI MUNICIPAL. CRIAÇÃO DE CARGOS PÚBLICOS. ATRIBUIÇÕES E FUNÇÕES NÃO ESPECIFICADAS EM LEI E PREVISTAS PARA SEREM REGULAMENTADAS MEDIANTE DECRETO DO CHEFE DO EXECUTIVO MUNICIPAL. VÍCIO FORMAL INSANÁVEL. AFRONTA A DISPOSITIVOS DAS CONSTITUIÇÕES FEDERAL E ESTADUAL. ALTERAÇÕES INTRODUZIDAS PELA EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 32/2001 QUE NÃO AFASTARAM A OBRIGATORIEDADE DE LEI EM SENTIDO ESTRITO PARA A CRIAÇÃO DE CARGOS PÚBLICOS COM A ESPECIFICAÇÃO DE SUAS RESPECTIVAS ATRIBUIÇÕES. INCONSTITUCIONALIDADE CARACTERIZADA” (TJRN ADI 56544 –2008.005654-4, rel. des. Caio Alencar, j. 20/01/2010).

Da mesma forma vêm decidindo o Supremo Tribunal Federal, in verbis:

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. (...) 2. INCONSTITUCIONALIDADE. Ação direta. Art. 5º da Lei nº 1.124/2000, do Estado do Tocantins. Administração pública. Criação de cargos e funções. Fixação de atribuições e remuneração dos servidores. Efeitos jurídicos delegados a decretos do Chefe do Executivo. Aumento de despesas. Inadmissibilidade. Necessidade de lei em sentido formal, de iniciativa privativa daquele. Ofensa aos arts. 61, § 1º, inc. II, a, e 84, inc. VI, a, da CF. Precedentes. Ações julgadas procedentes. São inconstitucionais a lei que autorize o Chefe do Poder Executivo a dispor, mediante decreto, sobre criação de cargos públicos remunerados, bem como os decretos que lhe dêem execução".

( STF, ADI 3232/TO - Rel: Min. CEZAR PELUSO,
j. 14/08/2008, grifo nosso )

“EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. EXPRESSÃO “CARGOS EM COMISSÃO” CONSTANTE DO CAPUT DO ART. 5º, DO PARÁGRAFO ÚNICO DO ART. 5º E DO CAPUT DO ART. 6º; DAS TABELAS II E III DO ANEXO II E DAS TABELAS I, II E III DO ANEXO III À LEI N. 1.950/08; E DAS EXPRESSÕES “ATRIBUIÇÕES”, “DENOMINAÇÕES” E “ESPECIFICAÇÕES” DE CARGOS CONTIDAS NO ART. 8º DA LEI N. 1.950/2008. CRIAÇÃO DE MILHARES DE CARGOS EM COMISSÃO. DESCUMPRIMENTO DOS ARTS. 37, INC. II E V, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA E DOS PRINCÍPIOS DA PROPORCIONALIDADE E DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA. AÇÃO JULGADA PROCEDENTE.

(...)

7. A delegação de poderes ao Governador para, mediante decreto, dispor sobre “as competências, as atribuições, as denominações das unidades setoriais e as especificações dos cargos, bem como a organização e reorganização administrativa do Estado”, é inconstitucional porque permite, em última análise, sejam criados novos cargos sem a aprovação de lei.

(...)”

(STF ADI 4125/TO, Rel. Min. CÁRMEN LÚCIA, j. 10/06/2010, grifo nosso)          

Portanto, a inconstitucionalidade é manifesta.

Não bastasse, há também o vício de inconstitucionalidade decorrente da criação de 11 (onze) cargos de assessoria, 19 (dezenove) cargos de assessoria técnica e 8 (oito) cargos de chefe de segurança, todos de provimento em comissão, para o desempenho de funções técnicas.

Quanto a esse aspecto, há incompatibilidade vertical com a Constituição do Estado de São Paulo, especialmente em relação às seguintes disposições:

“Art. 111 – A administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes do Estado, obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, razoabilidade, finalidade, motivação e interesse público.

Art. 115 - Para a organização da administração pública direta e indireta, inclusive as fundações instituídas ou mantidas por qualquer dos Poderes do Estado, é obrigatório o cumprimento das seguintes normas:

I - os cargos, empregos e funções públicas são acessíveis aos brasileiros que preencham os requisitos estabelecidos em lei;

II - a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia, em concurso público de provas ou de provas e títulos, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão, declarado em lei, de livre nomeação e exoneração;

Art. 144 - Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por Lei Orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.”

A Constituição em vigor consagrou o Município como entidade federativa indispensável ao nosso sistema federativo, integrando-o na organização político-administrativa e garantindo-lhe plena autonomia, como se observa da análise dos arts. 1.º, 18, 29, 30 e 34, VI, “c” da CF (Alexandre de Moraes, in Direito constitucional, 7ª ed., São Paulo: Atlas, p. 261).

Essa autonomia consagrada aos Municípios não tem caráter absoluto e soberano, muito pelo contrário, encontra limites nos princípios emanados dos poderes públicos e dos pactos fundamentais, que instituíram a soberania de um povo (De Plácido e Silva, Vocabulário jurídico, Rio de Janeiro: Forense, 1984, v. 1, p. 251), sendo definida por José Afonso da Silva como “a capacidade ou poder de gerir os próprios negócios, dentro de um círculo prefixado por entidade superior”, que no caso é a Constituição (Curso de direito constitucional positivo, 8ª ed., São Paulo: Malheiros, 1992, p. 545).

A autonomia municipal se assenta em quatro capacidades básicas: (a) auto-organização, mediante a elaboração de lei orgânica própria, (b) autogoverno, pela eletividade do Prefeito e dos Vereadores as respectivas Câmaras Municipais, (c) autolegislação, mediante competência de elaboração de leis municipais sobre áreas que são reservadas à sua competência exclusiva e suplementar, (d) auto-administração ou administração própria, para manter e prestar os serviços de interesse local (cf. José Afonso da Silva, ob. cit., p. 546).

Nessas quatro capacidades, encontram-se caracterizadas a autonomia política (capacidades de auto-organização e autogoverno), a autonomia normativa (capacidade de fazer leis próprias sobre matéria de sua competência), a autonomia administrativa (administração própria e organização dos serviços locais) e a autonomia financeira (capacidade de decretação de seus tributos e aplicação de suas rendas, que é uma característica da auto-administração) (ob. e loc. cits).

Assim, por força da autonomia administrativa de que foram dotadas, as entidades municipais são livres para organizar os seus próprios serviços, segundo suas conveniências locais. E, na organização desses serviços públicos, a Administração cria cargos e funções, institui classes e carreiras, faz provimentos e lotações, estabelece vencimentos e vantagens e delimita os deveres e direitos de seus servidores (cf. Hely Lopes Meirelles, in Direito municipal brasileiro, 8ª ed., São Paulo: Malheiros, 1996, p. 420).

Contudo, a liberdade conferida aos Municípios para organizar os seus próprios serviços não é ampla e ilimitada; ela se subordina às seguintes regras fundamentais e impostergáveis: (a) a que exige que essa organização se faça por lei; (b) a que prevê a competência exclusiva da entidade ou Poder interessado; e (c) a que impõe a observância das normas constitucionais federais pertinentes ao servidor público (ob. e loc. cits.)

Feitas essas observações iniciais, verifica-se neste caso que a Prefeitura Municipal e a Câmara Municipal de Tatuí criaram cargos de provimento em comissão para o exercício de funções estritamente técnicas ou profissionais, próprias dos cargos de provimento efetivo. São funções que denotam a natureza profissional do vínculo entre seus agentes e a Administração Pública e que, por essa razão, só poderiam ser preenchidas por concurso público.

Segundo Ruy Cirne Lima (Princípios de direito administrativo, 6ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 162), o funcionário público profissional se peculiariza por quatro característicos básicos, a saber: (a) natureza técnica ou prática do serviço prestado; (b) retribuição de cunho profissional; (c) vinculação jurídica à Administração Direta; (d) caráter permanente dessa vinculação.

 Desse modo, nitidamente diferenciado dos cargos que reclamam provimento em comissão, as funções profissionais devem ser exercidas em caráter permanente, ou seja, pelo quadro estável de servidores públicos municipais, os quais, em conformidade com o disposto no art. 115, inciso II, da Constituição do Estado de São Paulo, só podem ser arregimentados por concurso público de provas ou de provas e títulos.

 Na verdade, o cargo em comissão destina-se apenas às atribuições de “direção, chefia e assessoramento” (CF., art. 37, inciso V, com a redação dada pela EC n.º 19/98) e tem por finalidade propiciar ao governante o controle das diretrizes políticas traçadas. Exige, portanto, das pessoas indicadas a titularizá-los, absoluta fidelidade à orientação fixada pela autoridade nomeante. Em outras palavras, o cargo de provimento em comissão está diretamente ligado ao dever de lealdade à linha fixada pelo agente político superior.

 Daí por que a exceção contida na parte final do inciso II, do artigo 115, da Constituição do Estado de São Paulo - “ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração” -, que, no ponto, reproduz a dicção do artigo 37, inciso II, da Constituição da República, tem alcance limitado à situações excepcionais, relativas aos cargos cuja natureza especial justifique a dispensa de concurso público.

 Torna-se evidente, portanto, que a limitação apontada não tem caráter puramente formal, de simples e incriteriosa indicação legal de cargos de provimento em comissão, que pudesse afastar o princípio constitucional da igual acessibilidade aos cargos públicos.

 Bem a propósito, ao estudar com profundidade esse assunto, o jurista Marcio Cammarosano deixou anotado que o princípio democrático implica no princípio da igualdade “e este no princípio da igual acessibilidade dos cargos públicos, com o que se resguarda também o princípio da probidade administrativa” (Provimento de cargos públicos no direito brasileiro, São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 45).

Assim, para que a lei criadora de um cargo em comissão não venha a se constituir em burla ao princípio constitucional enunciado expressamente pelo artigo 37, incisos I e II, da Constituição da República, deverá observar criteriosamente a natureza das funções a serem desempenhadas, pois, no dizer de Celso Antonio Bandeira de Mello (O conteúdo jurídico do princípio da igualdade, São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 49), “impende que exista uma adequação racional entre o tratamento diferençado construído e a razão diferencial que lhe serviu de supedâneo”.

Afinado a esse mesmo entendimento, Hely Lopes Meirelles (Direito administrativo brasileiro, 18ª ed., São Paulo: Malheiros, p. 378) adverte sobre pronunciamento do Supremo Tribunal Federal no sentido de que “a criação de cargo em comissão em moldes artificiais e não condizentes com as praxes de nosso ordenamento jurídico e administrativo, só pode ser encarada como inaceitável esvaziamento da exigência constitucional de concurso”.

E, da mesma forma, já decidiu o Pretório Excelso que “a exigência constitucional do concurso público não pode ser contornada pela criação arbitrária de cargos em comissão para o exercício de funções que não pressuponham o vínculo de confiança que explica o regime de livre nomeação e exoneração que os caracteriza.” (STF, RTJ 156/793)

Nesse contexto, não existe qualquer necessidade do estabelecimento de vínculo de confiança para o exercício dos cargos criados pelo art. 19 da Lei Municipal n. 3.616, de 6 de janeiro de 2005.

Frise-se que a lei criadora de um cargo em comissão, para que não cometa violação ao princípio constitucional da acessibilidade aos cargos públicos, deve especificar, de forma criteriosa, as funções a serem desempenhadas pelos agentes ocupantes.

Pouco interessa a nomenclatura dos cargos, mas efetivamente as funções a serem desempenhadas.

Diante do exposto, o parecer é pela declaração da inconstitucionalidade do art. 19 da Lei Municipal n. 3.616, de 6 de janeiro de 2005, do Município de Tatuí.

São Paulo, 7 de maio de 2012.

 

 

        Sérgio Turra Sobrane

        Subprocurador-Geral de Justiça

        Jurídico

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