Parecer
Autos nº 0082901-11.2012.8.26.0000
Suscitante: 8ª Câmara de Direito Público
Objeto: art. 17 da Lei Municipal n.
2.487 de 22 de outubro de 2002
Ementa: Incidente de inconstitucionalidade suscitado pela 8ª. Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, do art. 17 da Lei Municipal n. 2.487/02, o qual dispõe que os pontos de moto-táxi deverão ficar afastados pelo menos 50 (cinquenta) metros dos pontos de táxi e dos pontos de ônibus urbano e 500 (quinhentos) metros dos outros pontos de moto-taxi. Ofensa ao princípio da livre concorrência (Súmula nº 646, STF). Parecer pela admissão e acolhimento do incidente de inconstitucionalidade.
Colendo Órgão Especial
Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente
1.
Relatório.
Trata-se de incidente de
inconstitucionalidade suscitado pela C. 8ª
Câmara de Direito Público, nos autos de Apelação
Cível nº 0052990-27.200.8.26.0000, em que figuram como partes o Chefe do Setor Tributário da Prefeitura
Municipal de Vargem Grande do Sul (apelante) e Moto Táxi Central LTDA (apelado).
Objetiva-se atender à cláusula de reserva de plenário (Súmula Vinculante nº 10 do STF), eis que se cogita eventual inconstitucionalidade do art. 17 da Lei Municipal n. 2.487/02, de Vargem Grande do Sul.
Não há notícia de
pronunciamento anterior do Órgão Especial, do Plenário ou do Supremo Tribunal
Federal sobre a questão suscitada (art. 481, parágrafo único, do CPC).
2.
Da admissibilidade do incidente de inconstitucionalidade.
A questão de direito deve ser solucionada para que seja possível concluir-se o julgamento da apelação interposta pelo Chefe do Setor Tributário da Prefeitura Municipal de Vargem Grande do Sul.
Como anota José Carlos Barbosa Moreira, comentando o parágrafo único do art. 481 do CPC, “são duas as hipóteses em que se deixa de submeter a arguição ao plenário ou ao órgão especial: (a) já existe, sobre a questão, pronunciamento de um desses órgãos do tribunal em que corre o processo; (b) já existe, sobre a questão, pronunciamento do plenário do STF. A redação alternativa indica que é pressuposto bastante da incidência do parágrafo a ocorrência de uma delas” (Comentários ao CPC, vol.V, 13ªed., Rio de Janeiro, Forense, 2006, p.44).
No caso em exame, salvo eventual equívoco, a quaestio iuris – que se restringe à verificação da constitucionalidade do art. 17 da Lei Municipal n. 2.487/02– não foi examinada pelo Plenário ou Órgão Especial.
De outro lado, e de acordo com pesquisa
informatizada, não há notícia de que a validade dessa norma foi julgada pelo
Supremo Tribunal Federal ou analisada por esse Sodalício sob a perspectiva aqui
abordada.
Assim, considerando que (a) a
solução da quaestio iuris é
imprescindível para o julgamento do recurso de apelação, e (b) ainda não houve
declaração de inconstitucionalidade a seu respeito pelo E. STF ou por esse E.
Tribunal de Justiça, é de ser admitido o processamento
do presente incidente de inconstitucionalidade.
3.
Fundamentação.
A questão constitucional
foi delimitada pelo Órgão Fracionário nos seguintes termos:
“Malgrado a competência municipal para legislar sobre assuntos locais prevista no art. 30 da Constituição Federal, a demarcação de limites entre estabelecimentos do mesmo ramo importa imposta pela legislação local desatende os princípios gerais da atividade econômica, em especial o art. 170, inciso IV, da Carta Magna”.
Outrossim, a questão já se encontra pacificada, com a edição da Súmula 646 do Supremo Tribunal Federal: ‘Ofende o princípio da livre concorrência lei municipal que impede a instalação de estabelecimentos comerciais do mesmo ramo em determinada área’”(fls. 101).
Reside a controvérsia na análise da constitucionalidade do art. 17 da Lei Municipal n. 2.487/02 de Vargem Grande do Sul.
Remarque-se, por
oportuno, que sobre o tema em análise, o STF possui a seguinte orientação,
consubstanciada na Súmula nº 646, in
verbis:
“SÚMULA 646: - OFENDE O PRINCÍPIO DA LIVRE CONCORRÊNCIA LEI MUNICIPAL QUE IMPEDE A INSTALAÇÃO DE ESTABELECIMENTOS COMERCIAIS DO MESMO RAMO EM DETERMINADA ÁREA”.
Para a Corte
Constitucional, a legislação municipal não pode estabelecer faixas de áreas
comerciais para a exclusiva oferta de produtos por um vendedor só, pois, ao
fazê-lo, restringe a livre concorrência, contrariando o art. 170, inc. IV, da
Constituição Federal.
Em caso análogo (Rec.
Extr. nº 193.749-1-SP), o Min. NELSON JOBIM deixou assentado o seguinte:
“Creio que a legislação municipal extrapolou a sua
área de abrangência. Não diz respeito a uso de solo urbano, nem a zoneamento,
que é da competência efetiva do Município, mas às regras que pretendem
disciplinar, na área urbana, o exercício de uma atividade a partir dos
pressupostos da concorrência.
Essa norma fere o dispositivo constitucional da livre
concorrência, e nossas preocupações em relação a um sistema de mercado, que
seja legítimo, estão exatamente nos instrumentos da concorrência, traduzidos
basicamente no Código de Defesa do Consumidor e na legislação que coíbe os
abusos da ordem econômica”.
Se assim é, a regra constante do art. 17 da Lei Municipal n. 2.487/02, segundo a qual “os pontos de moto-táxi deverão ficar afastados pelo menos 50 (cinquenta) metros dos pontos de táxi e dos pontos de ônibus urbano e 500 (quinhentos) metros dos outros pontos de moto-taxi”, não se mostra razoável (art. 111, CE) e deve, pelos fundamentos cristalizados pelo STF, ser tida por inconstitucional.
Nesse passo, deve-se
lembrar que, em ocasião recente, esse C. Órgão Especial reconheceu a
inconstitucionalidade de ato normativo municipal por ofensa ao princípio da
livre concorrência, invocando, justamente, o limite da autonomia do legislador
local. Confira-se:
“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - Lei n°
10.266/1999 do Município de Campinas - Proíbe realização de feiras itinerantes
ou temporárias com a comercialização direta, no atacado ou varejo, com fins de
lucro - Violação a livre iniciativa e concorrência - Admissibilidade - A
autonomia municipal não chega a ponto de autorizar a edição de lei que torne
defeso a realização de feiras itinerantes, isto é, que se deslocam de Município
para Município semelhante a comércio ambulante. Ação procedente (ADIN nº
153.488-0/8-00 – São Paulo, j. 11 Jun. 2008, rel. Walter Swensson).
Eros Roberto Grau, em sede doutrinária, anotou, recorrendo a trabalho da lavra de Tércio Sampaio Ferraz Júnior, que “a livre concorrência de que fala a atual Constituição como um dos princípios da ordem econômica (art.170, IV) não é a do mercado concorrencial oitocentista de estrutura atomística e fluida, i. é, exigência de pluralidade de agentes e influência isolada e dominadora de um ou uns sobre outros. Trata-se, modernamente, de um processo comportamental competitivo que admite gradações tanto de pluralidade quanto de fluidez. É este elemento comportamental – a competitividade – que define a livre concorrência. A competitividade exige, por sua vez, descentralização de coordenação como base de formação de preços, o que supõe a livre iniciativa e apropriação privada dos bens de produção. Neste sentido, a livre concorrência é forma de tutela do consumidor, na medida em que competitividade induz a uma distribuição de recursos a mais baixo preço. De um ponto de vista político, a livre concorrência é garantia de oportunidades iguais a todos os agentes, ou seja, é uma forma de desconcentração de poder. Por fim, de um ângulo social, a competitividade deve gerar extratos intermediários entre grandes e pequenos agentes econômicos, como garantia de uma sociedade mais equilibrada” (A ordem econômica na Constituição de 1988, 11ª ed., São Paulo, Malheiros, 2006, p.210).
É sugestiva a afirmação, portanto, de que a livre iniciativa e a livre concorrência, que integram o rol de princípios constitucionais inerentes à nossa ordem econômica, têm por escopo tanto tutelar o próprio equilíbrio do mercado, como ainda a posição do consumidor na dinâmica das relações de consumo.
As intervenções do Estado-administrador e do Estado-legislador, que evidentemente podem ocorrer, não devem perder de vista as balizas decorrentes das finalidades acima indicadas, amalgamadas na própria sedimentação constitucional dos princípios da ordem econômica. A tendência, no Pretório Excelso, é, também, propugnar-se pela defesa da livre iniciativa e da livre concorrência.
No mesmo sentido, em decisões que, mutatis mutandis, são aplicáveis ao caso em comento, já se decidiu, no STF, que:
"Autonomia municipal. Disciplina legal de assunto de
interesse local. Lei municipal de Joinville, que proíbe a instalação de nova
farmácia a menos de
“EMENTA: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. ARTIGO 1º DA LEI Nº
6.545/91, DO MUNICÍPIO DE CAMPINAS. LIMITAÇÃO GEOGRÁFICA À INSTALAÇÃO DE
DROGARIAS. INCONSTITUCIONALIDADE.
A hipótese examinada na presente ação é análoga às situações contidas nos precedentes do Pretório Excelso.
A incompatibilidade do art. 17 da Lei Municipal n. 2.487/02 com nosso ordenamento constitucional decorre, ainda, do desrespeito à razoabilidade, princípio adotado no art. 111 da Carta Paulista, e aplicável aos Municípios por força do art. 144 da referida Carta.
Como anota Diogo de Figueiredo Moreira Neto, o princípio da razoabilidade “visa a afastar o arbítrio que decorrerá da desadequação entre meios e fins”, tendo importância tanto quando da criação da norma como quando de sua aplicação. Ademais, prossegue o autor, “o princípio da proporcionalidade, uma vez admitido como um princípio substantivo autônomo, como é considerado na doutrina alemã do Direito Público, e não apenas com o sentido estrito contido no conceito de razoabilidade, prescreve, especificamente, o justo equilíbrio entre os sacrifícios e os benefícios resultantes da ação do Estado” (Curso de direito administrativo, 14ªed., Rio de Janeiro, Forense, 2006, p.101). Também nesse sentido Maria Sylvia Zanella Di Pietro (Direito administrativo, 19ª ed., São Paulo, Atlas, 2006, p.95).
Daí a violação ao art.111 da Constituição do Estado de São Paulo.
O art.
17 da Lei Municipal n. 2.487/02 fere também os preceitos constitucionais que
estipulam a defesa do consumidor como princípio a ser seguido na ordem
econômica e na atividade financeira (art. 170 V da CF), e como garantia
fundamental (art. 5º, XXXII, da CF), cuja aplicação aos Municípios decorre do
art. 144 da Constituição do Estado de São Paulo. A livre iniciativa e a livre concorrência, como princípios da
ordem econômica, têm por escopo não apenas a proteção da autonomia e do equilibro
do mercado, mas também a defesa do consumidor.
Respeitando-se a liberdade de exercício de atividade
comercial lícita, assegura-se a viabilidade de apresentação de ofertas de
produtos e serviços que ostentem maior qualidade e melhores condições de preço
ao consumidor final. A vedação acaba por retirar do consumidor a possibilidade
de escolha. Por essa razão, entre outras, que a própria Constituição Federal,
no art. 173, § 4º, prevê que “a lei
reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à
eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros”, preceito
este concretizado na esfera infraconstitucional através da Lei nº. 8.884/94,
que trata da prevenção e repressão às infrações contra a ordem econômica.
Limitar o espectro de conhecimento e escolha do consumidor quanto a atividades,
bens e serviços lícitos, significa tolhê-lo, ainda que indiretamente, de um
aspecto fundamental da proteção que nossa sistemática constitucional lhe
confere.
4. Conclusão.
Diante do exposto, nosso parecer é no sentido do conhecimento do incidente, e por seu acolhimento, declarando-se a inconstitucionalidade do art. 17 da Lei Municipal n. 2.487 de 22 de outubro de 2002.
São Paulo, 14 de maio de 2012.
Sérgio Turra Sobrane
Subprocurador-Geral de Justiça
Jurídico
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