Parecer em Incidente de Inconstitucionalidade

 

 

Autos nº. 0085143-40.2012.8.26.0000

Suscitante: 8ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça

Objeto: Lei nº 2.836, de 24 de março de 2008, do Município de Cerquilho

 

 

Ementa: Incidente de inconstitucionalidade da Lei nº 2.836, de 24 de março de 2008, do Município de Cerquilho, que “Proíbe o comércio e o uso de spray de espuma no município de Cerquilho, e dá outras providências”. Regras de proteção à saúde pública e ao consumidor, cujo fundamento de validade pode ser extraído do art. 24, incs. VIII e XI, da Constituição Federal. Competência concorrente não-cumulativa dos entes políticos para a edição de leis sobre o tema. Precedente. Parecer pela constitucionalidade da norma questionada.

 

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

Trata-se de incidente de inconstitucionalidade suscitado pela C. 8ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, nos autos de Apelação nº 9197008-51.2008.26.0000 - Cerquilho, em que figuram como partes (...) EPP (apelante) e a Prefeitura Municipal de Cerquilho (apelada).

Objetiva-se atender à cláusula de reserva de plenário (Súmula Vinculante nº 10 do STF), eis que se cogita do eventual afastamento, por inconstitucionalidade, da Lei nº 2.836, de 24 de março de 2008, do Município de Cerquilho.

Concluiu o V. Acórdão que a legislação municipal não pode contrariar a Resolução ANVISA nº 77, de 14 de novembro de 2007, que estaria a permitir a comercialização do spray proibido pela impugnada norma.

Este é resumo do que consta dos autos.

Este é o texto da Lei nº 2.836, de 24 de março de 2008, do Município de Cerquilho:

“Artigo 1º - Fica proibido no município de Cerquilho a comercialização e o uso de produto composto de espuma expansível em aerossol (spray) e similares, comumente conhecido como “espuma de Carnaval”.

Artigo 2º - O Poder Executivo através de seus órgãos competentes promoverá ações de vigilância e fiscalização aos estabelecimentos que comercializarem o produto a que se refere o art. 1º desta Lei.

Artigo 3º - O estabelecimento comercial que descumprir a presente Lei, além da apreensão da mercadoria, sofrerá as seguintes penalidades:

(...)

Artigo 4º - O material referido no caput no artigo 1º, quando estiver em pose de usuário, será sumariamente apreendido, não cabendo ao infrator qualquer indenização.”

Atente-se para o fato de que a recorrente explora a industrialização e comercialização do produto conhecido como “espuminha de carnaval”, que a Lei nº 2.836, de 24 de março de 2008, do Município de Cerquilho, veio proibir sua comercialização.

No entanto, pode-se observar que a norma em questão visa à proteção da saúde pública e do consumidor, cuja competência legislativa não é exclusiva da União, mas concorrente, conforme se depreende do disposto no art. 24, incs. VIII e XII da Constituição Federal.

Aliás, a preocupação com a saúde é evidente, pois a matéria foi alvo de regulamentação pela Resolução da Agência Nacional de Vigilância Sanitária - ANVISA nº 77/2007 (fls. 46).

Justamente seria a norma federal que estaria se contrapondo à lei municipal em tela.

No entanto, não se pode erigir à categoria de lei uma Resolução de uma Agência Nacional, por não gozar esta de caráter geral e abstrato, concebida no seio do Poder Legislativo. Somente a lei é que goza de tais requisitos.

Portanto, não se pode dizer que a Lei Municipal em questão tenha ferido uma Lei Federal, o que a macularia de inconstitucionalidade.

Com efeito, a Lei Municipal 2.836/2008 de Cerquilho, veio tão somente regulamentar supletivamente o vácuo deixado pela União e pelo Estado, tratando de matéria de competência concorrente e não exclusiva da União.

Neste pormenor, comentando as competências exclusiva, privativa, comum, concorrente e suplementar da União, dos Estados, dos Municípios e Distrito Federal, leciona JOAQUIM CASTRO AGUIAR:  “Existem matérias sobre as quais tanto a União, quanto os Estados, o Distrito Federal e os Municípios podem legislar, sendo os poderes  compartilhados entre as unidades federativas. Podemos ditar, como exemplos, a proteção e defesa da saúde, a proteção do meio ambiente e controle da poluição. Nesses casos, diz-se que a legislação é concorrente, no sentido de que cada ente federativo possui um quinhão do poder legislativo, nessa partilha de competências. A matéria não é exclusiva e nem privativa de ninguém, podendo, pois, ser objeto de legislação federal, estadual, distrital ou municipal”.

         Ao discorrer sobre o assunto, o doutrinador JOSÉ NILO DE CASTRO (in: Perspectivas do Direito Municipal. Ciência Jurídica, set-out. 1993, vol.53, pág.131), ensina: “inegavelmente, cabe ao Município, como poder público, dispor sobre regras de direito, legislando em comum com a União e o Estado, com fundamento no art. 23,VI, CR. Portanto, quando um Município, através de lei – mesmo que se lhe reconheça conteúdo administrativo, em se  tratando de  competência comum -, disciplinar esta matéria, fa-lo-á no exercício da competência comum, peculiarizando-lhe a ordenação pela compatibilidade local, e consideração a esta ou àquela vocação sua”.

Ante as circunstâncias jurídicas e regras de competência traçadas na Constituição de 1988, a existência de leis ordinárias reafirmando a autonomia política dos municípios na República Federativa do Brasil, tudo ainda sob o enfoque da doutrina e jurisprudência, não há como afastar a possibilidade de o legislador de Cerquilho optar através de norma formal e com natureza de lei, pela defesa da saúde e dos direitos do consumidor de sua população.

Quanto à inexistência de competência privativa da União para Legislar sobre o assunto, veja-se o seguinte V. Aresto, aplicável à espécie em estudo mutatis mutandis:

“Possibilidade de legislação estadual assegurar ao consumidor o direito às informações sobre natureza, procedência e qualidade dos produtos combustíveis comercializados: STF – ‘Por falta de plausibilidade jurídica da alegação de ofensa à competência privativa da União para legislar sobre comércio de combustíveis (CF, art. 22, I, IV, XII), o Tribunal, por unanimidade, indeferiu pedido de liminar em ação direta de inconstitucionalidade ajuizada pela Confederação Nacional do Comércio – CNC, contra a Lei 12.420/99, do Estado do Paraná, que assegura ao consumidor o direito de obter informações sobre a natureza, procedência e qualidade dos produtos combustíveis comercializados nos postos revendedores situados no mencionado Estado’ (STF – Pleno – AdinMC nº 1.980/PR – Rel. Min. Sydney Sanches, decisão: 4.8.1999. Informativo STF, nº 156)”  “apud” Constituição do Brasil Interpretada, Alexandre de Moraes, Ed. Atlas, 2002, pág. 66

Desta forma, o que se tem é que o Município legislou sobre assunto de interesse local, escudado no que dispõe o art. 30, incs. I e II, da Constituição Federal.

A par deste entendimento, pede-se vênia para colacionar:

Saúde Pública e competência suplementar do Município: TJSP – ‘Saúde Pública – Tabagismo – Lei Municipal que restringe o uso de produtos fumígeros em recinto coletivo – Admissibilidade, em virtude da competência suplementar assegurada pela Constituição Federal – Inteligência dos artigos 24, XII, 30, II, da CF; 219 e parágrafo único da Constituição do Estado de São Paulo e 213 da Lei Orgânica do Município de São Paulo – A legislação municipal que restringe o uso coletivo está fundamentada na competência que a Constituição Federal lhe atribui para suplementar a legislação federal e estadual no setor de proteção e defesa da saúde: artigo 24, XII e 30, II, da CF; artigo 219 e parágrafo único da Constituição Estadual; Lei Orgânica do Município de São Paulo, artigo 213. Os preceitos legais do Município de São Paulo sobre as restrições ao uso de produtos fumígeros passaram a integrar todas as determinações da recente legislação federal específica, Lei nº 9.294/96 e Decreto nº 2.018/96, este ressalvando expressamente a validade das sanções previstas na legislação local” (TJSP – 3ª Câmara de Direito Privado; Apelação Cível nº 276.582-2/1 – São Paulo; Rel. Des. Ribeiro Machado; j. 15-4-1997; v. u.; ementa).  ob.  e aut. cits. pág. 744

Portanto, para o assunto em pauta, a Carta Política adotou a técnica da competência concorrente não-cumulativa, de forma que a competência da União está adstrita à formulação de normas gerais.

Entende-se, assim, que, no exercício da competência suplementar conferida pelo art. 30, inc. II, da Carta Polícia, o legislador municipal editou legitimamente o ato normativo questionado, tratando da proteção da saúde pública e da defesa dos direitos do consumidor, o que fez sem desbordar as regras da União.

Pelo exposto, opina-se pela constitucionalidade da Lei nº 2.836, de 24 de março de 2008, do Município de Cerquilho.

São Paulo, 15 de maio de 2012.

 

 

        Sérgio Turra Sobrane

        Subprocurador-Geral de Justiça

        Jurídico

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