Incidente de Inconstitucionalidade

 

Autos nº.  177.847.0/2-00

Suscitante: Sexta Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça   

Objeto:   Expressão “onerosa” do art. 1º, da Lei n. 459/2001 do Município de Tarumã e dos arts. 6º, 7º e 8º, da mesma Lei.

 

Parecer do Ministério Público

 

Ementa: Expressão “onerosa” do art. 1º , da Lei n. 459/2001, do Município de Tarumã e dos arts. 6º, 7º e 8º da da mesma Lei.  Violação do art. 111 da Constituição do Estado de São Paulo e dos arts. 153, I e II e 155, §3º, da Constituição Federal. Parecer pela admissão e acolhimento do incidente de inconstitucionalidade.

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator

1)    Relatório

A EEVP Empresa de Eletricidade Vale Paranapanema S/A, concessionária de serviços públicos de energia elétrica, ajuizou Mandado de Segurança em face do Prefeito do Município de Tarumã, objetivando o direito líquido e certo de não se submeter às exigências contidas na Lei n. 459/2001 e  no Decreto-Lei n. 219/2002, do Município de Tarumã, ou seja, de não ser obrigada a pagar o valor locativo instituído pela citada Lei.

A ação foi julgada procedente pela r. Sentença de fls. 118/122.

O Município de Tarumã interpôs recurso de apelação. Defendeu, em síntese, que a permissão de uso em questão, nada mais é que simples contrapartida do espaço usado pela concessionária dentro da área do Município, mas não é tributo de qualquer espécie e, como tal, não sujeita-se a limitações Constitucionais ou inconstitucionais para a sua instituição, fls. 126/130.

As contra-razões foram apresentadas  a fls. 133/151.

Parecer da Procuradoria de Justiça Cível pelo não provimento dos recursos interpostos, fls. 157/159.

Pelo v. Acórdão de fls. 167/177, a Sexta Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça determinou a remessa dos autos a este Colendo Colegiado para atendimento da cláusula do artigo 97 da Constituição da República e da recente Súmula Vinculante n. 10, do Supremo Tribunal Federal.

Eis, em breve síntese, o relatório.

2) Da admissibilidade do incidente de inconstitucionalidade.

 

 

A questão de direito deve ser solucionada para que seja possível concluir-se o julgamento da apelação interposta pelo Prefeito Municipal de Tarumã.

Como anota José Carlos Barbosa Moreira, comentando o parágrafo único do art. 481 do CPC, “são duas as hipóteses em que se deixa de submeter a argüição ao plenário ou ao órgão especial: (a) já existe, sobre a questão, pronunciamento de um desses órgãos do tribunal em que corre o processo; (b) já existe, sobre a questão, pronunciamento do plenário do STF. A redação alternativa indica que é pressuposto bastante da incidência do parágrafo a ocorrência de uma delas” (Comentários ao CPC, vol.V, 13ªed., Rio de Janeiro, Forense, 2006, p.44).

No caso em exame, salvo eventual equívoco, a quaestio iuris – que se restringe à verificação da constitucionalidade da Lei  n. 459/2001 do Município de Tarumã – não foi examinada pelo Plenário ou Órgão Especial.

De outro lado, e, de acordo com pesquisa informatizada, não há notícia    de     que a   validade dessa norma foi julgada pelo Supremo Tribunal Federal ou analisada por esse Sodalício sob a perspectiva aqui abordada.      

Assim, considerando que (a) a solução da quaestio iuris é imprescindível para o julgamento do recurso de apelação, e (b) ainda não houve declaração de inconstitucionalidade a seu respeito pelo E. STF ou por esse E. Tribunal de Justiça, é de ser admitido o processamento do presente incidente de inconstitucionalidade.

3) Fundamentação.

A Lei n. 459, de 06 de julho de 2001,  estabeleceu permissão, a título precário e oneroso, de “uso das vias públicas, inclusive do espaço aéreo e do subsolo e de obras de arte de domínio municipal, para implantação, instalação e passagem de equipamentos urbanos destinados à prestação de serviços de infra-estrutura por entidades de direito público e privado...” (art. 1º). O preço da permissão de uso é representado por contribuição pecuniária, calculada de acordo com os elementos fixados no artigo 7º do diploma regulamentar (art. 6º) e deverá ser pago mensalmente, tendo como vencimento o 15º (décimo quinto) dia do mês (art.8º ). A impetração se volta contra a cobrança de tal contribuição.

Referida expressão, bem como, os diplomas legais impugnados realmente são inconstitucionais.

Com efeito, a taxa consiste no tributo que possui como fato gerador o exercício regular do poder de polícia, ou a utilização, efetiva ou potencial, de serviço público específico e divisível, prestado ao contribuinte ou colocado à sua disposição pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios (art. 145, inc. II, da CF e 77 do Código Tributário Nacional – CTN).

O conceito de poder de polícia vem disposto no artigo 78 do CTN, que o considera “atividade da administração, que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina de produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranqüilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos”.

“Poder de polícia, hoje, é a expressão indicativa de um poder inerente à administração pública, abrangendo diversas áreas, dentre as quais se destacam a segurança, os cultos, a propriedade, a indústria, o comércio, a saúde pública, costumes, trabalho etc. O conceito moderno de poder de polícia, diz Caio Tácito, ultrapassa ‘as fronteiras conservadoras para reconhecer ao Estado um papel mais ativo na promoção do bem-estar geral, estabelecendo não somente no tocante à ordem pública, mas sobretudo no sentido da ordem econômica e social, normas limitadoras da liberdade individual. É o poder de vigilância, inerente a toda administração pública, que a habilita zelar eficientemente pelo bem comum, pelo interesse coletivo” .

A lume dessa orientação, em primeiro lugar, insta observar que as atividades da EEVP Empresa de Eletricidade Vale Paranapanema S/A de instalação de redes de distribuição de energia elétrica em vias públicas, inclusive mediante a utilização do subsolo urbano, em princípio, são passíveis de fiscalização pelo Município, nos lindes de seu território e interesse local. (art. 30, inc. I e V, da CF). A administração pode e deve exercer poder de vigilância, com vistas a zelar pela adequada utilização de bem público de uso comum, de sorte a salvaguardar a sua destinação específica, em prol da satisfação de interesse da coletividade .

Em contrapartida, a cobrança de taxa encontra intransponível óbice. Alude-se à regra do parágrafo 3º, do artigo 155, da Constituição da República, segundo a qual “à exceção dos impostos de que tratam o inciso II do caput deste artigo e o art. 153, I e II, nenhum outro tributo poderá incidir sobre operações relativas à energia elétrica, serviços de telecomunicações, derivados de petróleo, combustíveis e minerais do País”. Mesmo que assim não fosse, como comezinho, não é permitido ao Município exigir o pagamento de tributo, sem a prévia existência de lei que o estabeleça (art. 150, inc. I e III, letras a e b, da CF).

Por seu turno, não há falar em permissão de uso, de caráter precário e oneroso, de área de domínio municipal, para a implantação e instalação pela EEVP Empresa de Eletricidade Vale Paranapanema S/A de redes de distribuição de energia elétrica.

A permissão de uso é ato administrativo unilateral, discricionário e precário, através do qual a administração faculta a terceiro a utilização privativa de bem público, para a satisfação de interesse público.

A utilização pela referida empresa de áreas públicas do Município de Tarumã para a implementação dos serviços de distribuição de energia elétrica não guarda a menor relação com a hipótese. Os traços de discricionariedade e precariedade caem, desde logo, por terra. A administração do Município não dispõe de faculdade alguma para permitir ou não o uso de vias públicas para a instalação de redes de energia. Serviço   de     tal      natureza    é    de caráter essencial, dele dependendo a própria subsistência da coletividade, de maneira que o uso de bem público municipal imprescindível à consecução de atividade de tamanha ordem não se submete, de modo algum, a critérios de conveniência e oportunidade da administração. Diante do caso concreto, não há nenhuma margem de liberdade ao Município para decidir se autoriza ou não a EEVP Empresa de Eletricidade Vale Paranapanema utilizar-se de áreas públicas para a instalação de suas redes. A supremacia do interesse público sobre qualquer outro, o que se revela na hipótese dos autos em sua plenitude, não possibilita o advento de nenhuma outra atuação administrativa que não seja a de aquiescer ao uso. O que o Município pode e deve, como já dito antes, é exercer o seu poder de vigilância para que as atividades da concessionária não interfiram e nem prejudiquem a destinação específica das vias públicas. Ao revés, em tempo algum, lhe será dado obstar respectivo uso para a realização de serviços afetos à distribuição de energia elétrica à população.

Dentro desse contexto, vale também destacar que, não obstante envolva interesse geral da comunidade, a permissão de uso sempre pressupõe o atendimento a interesse exclusivo do particular. Não se vislumbra aqui a existência de nenhum interesse da EEVP Empresa de Eletricidade Vale Paranapanema S/A na utilização das vias públicas do Município de Tarumã. Os interesses da concessionária são ínsitos à relação jurídica travada com o poder público concedente, no caso a União (arts. 21, inc. XII, letra b, e 175, da CF). Já o uso das ruas e calçamentos  integra   a   esfera da exploração do próprio serviço de distribuição de energia, dirigindo-se, de conseguinte, única e tão somente à satisfação do interesse coletivo que o reveste.

Como se vê, padecem de inconstitucionalidade os dispositivos legais impugnados eis que estão em total dissonância do princípio da supremacia do interesse público e ao vetor da razoabilidade contemplado no artigo 111 da Constituição Paulista.

Na mesma linha, descabe supor a possibilidade de cobrança de preço público que, diversamente dos tributos, decorre da “vontade do comprador, havendo sempre uma relação contratual, uma obrigação não-compulsória (a vontade humana participa na formação da obrigação). Da relação contratual – acordo de vontades e não da decisão unilateral do Estado (lei), aparece a obrigação de pagar, ao Poder Público, a soma devida, pelo bem adquirido, isto é, de pagar o preço público. A obrigação em relação ao preço público não nasce da lei, mas, sempre, com a participação da vontade do interessado” .

No caso concreto, não se verifica nenhuma relação negocial, caracterizada por acordo de vontades entre as partes (Município e Eletropaulo). Exsurge irrelevante a participação da vontade, que representa requisito fundamental à configuração do preço público. Sob pena de inadmissível descumprimento das obrigações pactuadas com a União, originárias do contrato de concessão do serviço, não é facultada à EEVP Empresa de Eletricidade Vale Paranapanema a utilização das vias públicas municipais para a instalação de suas redes de distribuição de energia elétrica. A exploração do serviço obriga a espécie, pouco importando a intenção dos envolvidos para tal finalidade. Daí porque não    ser possível cogitar da ocorrência da hipótese, o que, sem dúvida alguma, se traduz em significativo fator ao reconhecimento da mácula de inconstitucionalidade de que se inquina a cobrança impugnada nesta ação.

  Por essas razões, o parecer é pela inconstitucionalidade  da expressão mencionada e dos dispositivos em epígrafe.

 

                          São Paulo, 25 de maio de 2009.

 

 

Maurício Augusto Gomes

Subprocurador-Geral de Justiça

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