Parecer em Incidente de Inconstitucionalidade

 

 

Autos n. 0015501-14.2011.8.26.0000

Suscitante: Décima Quinta Câmara de Direito Público

Objeto da impugnação: item 15.08 da Lei Complementar n. 116/03 e item 15.08 do art. 1º, da Lei Municipal n. 13.071/2003, do Município de São Paulo

 

 

 

 

Ementa: Item 15.08 da Lei Complementar n. 116/03 e item 15.08, do art. 1º, da Lei Municipal n. 13.071/2003, do município de São Paulo, que fundamentam a cobrança de ISS sobre a prestação de fianças e avais. Instauração de incidente determinada pelo Órgão Fracionário do Egrégio Tribunal de Justiça, que declarou vislumbrar a inconstitucionalidade dos citados dispositivos legais. Parecer pela inconstitucionalidade pois “revela-se inarredável que a prestação de fianças, avais e congêneres não constitui prestação de serviço (obrigação de fazer), escapando, portanto, da esfera da tributação do ISS pelos municípios”. Parecer pela procedência da tese de inconstitucionalidade.

 

 

 

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator

Colendo Órgão Especial

 

 

Trata-se de Acórdão proferido pela Décima Quinta Câmara de Direito Público do Egrégio Tribunal de Justiça, no julgamento da Apelação Cível n. 994.07.051081-0, que suscitou a instauração de incidente de inconstitucionalidade, determinando a remessa dos autos ao Excelso Órgão Especial, por força da Súmula Vinculante n. 10 do Supremo Tribunal Federal,  decidindo a questão da constitucionalidade do item 15.08 da Lei Complementar n. 116/03 e do item 15.08, do art. 1º,  da Lei Municipal n. 13.071/2003, do Município de São Paulo, que fundamentam a cobrança de ISS sobre a prestação  de fiança, aval e congêneres.

Alegação de que se trata de atividade que não envolve efetiva prestação de serviços e, por isso, afronta o disposto no art. 156, III, da Constituição Federal, dispositivo utilizado como paradigma para fundamentar o pedido de reconhecimento incidental de inconstitucionalidade.

É o breve relatório.

A Constituição em vigor consagrou o Município como entidade federativa indispensável ao nosso sistema federativo, integrando-o na organização político-administrativa e garantindo-lhe plena autonomia, como se observa da análise dos arts. 1.º, 18, 29, 30 e 34, VI, “c” da CF (Cf. Alexandre de Moraes, in “Direito Constitucional”, Atlas, 7.ª ed., p. 261).

Essa autonomia consagrada aos Municípios não tem caráter absoluto e soberano, muito pelo contrário, encontra limites nos princípios emanados dos poderes públicos e dos pactos fundamentais, que instituíram a soberania de um povo (Cf. De Plácido e Silva, “Vocabulário Jurídico”, Forense, Rio de Janeiro, Volume I, 1984, p. 251), sendo definida por José Afonso da Silva como “a capacidade ou poder de gerir os próprios negócios, dentro de um círculo prefixado por entidade superior”, que no caso é a Constituição (Cf. “Curso de Direito Constitucional Positivo”, Malheiros Editores, São Paulo, 8.ª ed., 1992, p. 545).

A autonomia municipal se assenta em quatro capacidades básicas: (a) auto-organização, mediante a elaboração de lei orgânica própria, (b) autogoverno, pela eletividade do Prefeito e dos Vereadores as respectivas Câmaras Municipais, (c) autolegislação, mediante competência de elaboração de leis municipais      sobre       áreas que são reservadas à sua competência exclusiva e suplementar, (d) auto-administração ou administração própria, para manter e prestar os serviços de interesse local (Cf. José Afonso da Silva, ob. cit., p. 546).

Nessas quatro capacidades, encontram-se caracterizadas a autonomia política (capacidades de auto-organização e autogoverno), a autonomia normativa (capacidade de fazer leis próprias sobre matéria de sua competência), a autonomia administrativa (administração própria e organização dos serviços locais) e a autonomia financeira (capacidade de decretação de seus tributos e aplicação de suas rendas, que é uma característica da auto-administração) (ob. e loc. cits).

Com fulcro na autonomia política, administrativa e financeira é que os Municípios estão autorizados a instituir os tributos e demais receitas de sua competência, consoante prevê o texto constitucional. Ou seja, tais entes arrecadam para prover as despesas com obras e serviços públicos, sobretudo nas áreas da saúde, educação, saneamento básico, habitação, transportes, etc., que são do estreito interesse da população local.

Em relação ao caso concreto, a capacidade tributária é expressa no art. 156, III, da Constituição Federal, nos seguintes termos:

Art. 156. Compete aos Municípios instituir impostos sobre:

III - serviços de qualquer natureza, não compreendidos no art. 155, II, definidos em lei complementar.

Porém, embora não haja qualquer questionamento à capacidade tributária do município, é fundamental observar que ela só pode ser exercida com base nos parâmetros constitucionais.

Nesse contexto, a cobrança de ISS deve incidir sobre serviços, o que não se verifica no caso que envolve a prestação de fiança, aval e congêneres.

Em primeiro lugar, insta observar que o sistema de cartão de crédito envolve, ordinariamente quatro sujeitos: 1) a administradora de cartão de crédito, emissora e administradora do cartão; 2) o associado (consumidor titular do cartão); 3) o fornecedor de bens ou serviços e,  4) uma instituição financeira que financia: a) o valor das aquisições efetuadas pelo titular do cartão ou b) os saques eletrônicos de dinheiro ou c) a antecipação da receita do estabelecimento filiado ao sistema.

O associado da administração de cartão de crédito pode adquirir bens nos estabelecimentos filiados ao sistema, sem efetuar nenhum desembolso de dinheiro no ato da aquisição.

Por tal razão, o fornecimento do cartão de crédito é uma prestação de uma garantia de crédito que poderá ou não ser utilizado.

O titular do cartão de crédito, de acordo com o contrato celebrado com a administradora de cartões de crédito pode: a) saldar integralmente seu débito, na data do vencimento ou b) pagar apenas um valor mínimo na data de seu vencimento, sem qualquer encargo ou c) parcelar o saldo remanescente, mediante financiamento bancário, obtido em seu nome e, tendo a administradora de cartão de crédito por fiadora, avalista e principal garantidora.

Assim é que a administradora de cartão de crédito representa o titular do cartão e, como sua mandatária, celebra no nome dele financiamento automático, em instituições financeiras, do valor das mercadorias por ele adquiridas das locações que efetua ou dos serviços que utiliza nos estabelecimentos a ela filiados - ou ainda dos valores em dinheiro sacados eletronicamente na rede 24 horas. Em todos os casos, cobra do titular do cartão uma garantia e pelo aval que lhe presta (taxa de anuidade ou de renovação).

Nos contratos de financiamento, as administradoras de cartão de crédito, figuram, apenas, como avalistas ou fiadoras do financiado, de quem são mandatárias.

Nesses casos, as administradoras de cartão de crédito nenhuma receita auferem da instituição financeira.

Ela recebe, apenas, remuneração pela prestação de fiança ou aval, do financiado: o seu associado (titular do cartão de crédito) ou o estabelecimento filiado.

Não há, pois, que se falar de prestação de serviço, relativamente a tais contratos - o de financiamento, celebrado entre a instituição financeira e o titular do cartão de crédito ou o estabelecimento filiado, no qual a administradora de cartão de crédito comparece apenas como avalista ou fiadora.

 

As receitas provenientes de avais ou fianças não correspondem a nenhum serviço. É, pois, vedada a inclusão desses valores na base de cálculo do ISS. São receitas decorrentes de contrato específico; são receitas que não provêm de nenhuma prestação de serviço, mas são decorrências de operações financeiras, que só podem ser tributadas pela União (art. 153, VI, da CF).  

Logo, a remuneração correspondente, não sendo receita de serviços, não pode compor a base de cálculo do ISS, por se tratar de garantia de crédito.

Chega-se a conclusão, portanto, que os Municípios não têm competência para tributar, pelo ISS, a prestação de fianças, avais e congêneres, porque tais prestações não se encaixam na definição do conceito de serviços de qualquer natureza, prescrito pelo art. 156, III, da Constituição Federal.

Em tais circunstâncias, o parecer é no sentido que seja acolhida a tese da inconstitucionalidade.

 

São Paulo, 15 de fevereiro de 2011.

 

 

 

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

vlcb