Arguição de Inconstitucionalidade

Processo n.º 0018627-72.2011.8.26.0000

Suscitante: 18.ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

Interessados: (...) e Município de Mococa

EMENTA: Arguição de inconstitucionalidade. Lei Complementar Municipal n.º 260, de 10 de maio de 2007, de Mococa, que concedeu remissão do IPTU, no exercício de 2007, aos contribuintes atingidos por enchente ocorrida no referido Município, mas desautorizou o ressarcimento dos valores referentes a esse tributo que já foram pagos (Art. 3.º, parágrafo único). Ofensa ao princípio da isonomia não caracterizada, à medida que o pagamento antecipado do tributo constitui sinal indicativo de que o contribuinte não se encontrava em dificuldade financeira e, portanto, não fazia jus à benesse legal. A lei não pode retroagir para alcançar fatos constituídos e exauridos no passado (‘tempus regit actum’). Ademais, se for declarada a inconstitucionalidade apenas do dispositivo que veda o ressarcimento, o Poder Público se verá obrigado a devolver integralmente os valores pagos, efeito indesejado pelo legislador e expressamente vedado por lei. Impossibilidade de o Poder Judiciário atuar como legislador positivo. Precedentes do STF. Proposto o não acolhimento do incidente.”

 

Colendo Órgão Especial,

Eméritos Desembargadores:

 

                   Ao examinar o recurso de apelação interposto contra a respeitável sentença que julgou procedente ação de repetição de indébito movida por contribuinte contra o Município de Mococa – na qual se busca o reconhecimento do direito à remissão do IPTU do exercício de 2007 –, o órgão fracionário suscitou incidente de inconstitucionalidade da Lei Complementar Municipal n.º 260, de 10 de maio de 2007, de Mococa, no ponto em que esta desautorizou o ressarcimento dos valores que já foram pagos relativos ao IPTU/2007 (art. 3.º e seu parágrafo único), o que, em tese, atentaria contra o princípio constitucional da isonomia, que vem expressamente consagrado nos arts. 5.º ‘caput’ e 150, inciso II, da Constituição da República.

                   Data venia’, o incidente deve ser conhecido, mas não acolhido.

                   Com efeito, o art. 3.º, e seu parágrafo único, da Lei Complementar Municipal n.º 260, de 10 de maio de 2007, de Mococa, não se ressente da eiva de inconstitucionalidade que lhe é imputada.

                   Como se sabe, os municípios são entidades federativas dotadas de autonomia financeira, que é consubstanciada na capacidade de instituir e arrecadar os tributos de sua competência (CF, art. 30, III), dentre eles o imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana – IPTU (CF, art. 156, I).

                   Nos termos do art. 172, I a V, do Código Tributário Nacional, ‘a lei poderá autorizar a autoridade administrativa a conceder, por despacho fundamentado, remissão total ou parcial do crédito tributário, atendendo: a situação econômica do sujeito passivo; ao erro ou ignorância escusáveis do sujeito passivo, quanto a matéria de fato; à diminuta importância do crédito tributário e a considerações de equidade, em relação com as características pessoais ou materiais do caso, a condições peculiares a determinada região do território da entidade tributante.

                   Pois bem, o Município de Mococa, no exercício pleno de sua autonomia financeira, editou a Lei Complementar n.º 260, de 10 de maio de 2007, que autorizou o Poder Executivo a conceder remissão do pagamento do IPTU, no exercício financeiro de 2007, aos contribuintes que tiveram seus imóveis atingidos por enchente ocorrida naquela localidade em 13/1/2007.

                   Como se sabe, a remissão consiste no perdão do tributo (Cf. Leandro Paulsen, ‘Direito Tributário’, publicação conjunta da Livraria do Advogado Editora e ESMAFE, 9.ª edição, comentário ao art. 172, p. 1103) e a sua concessão deve pautar-se nos critérios estabelecidos na lei autorizadora, que, no caso em exame, afastou a possibilidade de ressarcimento dos valores já pagos relativos ao IPTU/2007 (Art. 3.º, parágrafo único).

                   Sem querer adentrar no mérito da questão subjacente, essa ressalva legal é perfeitamente compatível com os valores e princípios consagrados na Constituição, pois, à época em que constituído o crédito tributário, e efetuado o seu pagamento, ainda não existia lei autorizando o Executivo a conceder remissão de tributo, a qual somente foi editada mais tarde, quando praticamente exaurida a relação jurídico-tributária, de tal forma que os efeitos da lei tributária posterior não poderiam retroagir para alcançar fato constituído e consumado no pretérito (‘tempus regit actum’).

                   Evidentemente que, para autorizar o Executivo a conceder remissão tributária, o legislador municipal deve ter levado em consideração as dificuldades financeiras dos contribuintes, em decorrência dos prejuízos sofridos com a enchente, possibilitando, assim, o perdão do tributo.

                   Ora, se a lei ora impugnada foi editada com o propósito de minimizar as dificuldades financeiras dos contribuintes, à vista dos prejuízos por estes sofridos, não há que se falar em ofensa ao princípio da isonomia tributária na recusa legal de proceder-se à devolução integral de tributo já pago, ou das parcelas liquidadas, relativamente ao IPTU/2007, tendo em vista que se o contribuinte efetuou o pagamento do tributo à vista, após a ocorrência da enchente, é porque não se encontrava em situação de dificuldade financeira e, por via de consequência, não se fazia merecedor da benesse fiscal.

                   A isonomia pressupõe a adoção de tratamento igual aos iguais e desigual aos desiguais. Sob essa perspectiva, a remissão do tributo não se justifica em favor daquele contribuinte que, mesmo tendo sofrido algum prejuízo com a enchente, não se encontrava em dificuldade financeira, ao contrário daquele que, em razão do evento da natureza, ficou privado dos recursos indispensáveis a sua própria subsistência e impossibilitado do pagamento do tributo.

                   Em suma, a Lei Complementar Municipal n.º 260/2007, de Mococa, não foi editada com o propósito de indenizar o contribuinte dos prejuízos sofridos, mas sim atenta à situação econômica do sujeito passivo (CTN, art. 172, I), e, desse modo, o contribuinte que conseguiu honrar a obrigação tributária, antes de sua entrada em vigor, não poderá beneficiar-se com a devolução do tributo, seja porque não se encontrava em dificuldade financeira, tanto que pagou antecipadamente o imposto, seja porque os efeitos da lei não podem retroagir para alcançar situação consolidada no passado (extinção da obrigação tributária com o pagamento do tributo).

                   Ainda que assim não fosse, o que se admite só para argumentar, a iniciativa de declarar a inconstitucionalidade do art. 3.º, e seu parágrafo único, da Lei Complementar Municipal n.º 260/2007, de Mococa, implicaria na atuação do Poder Judiciário como legislador positivo, em flagrante descompasso com a Súmula n.º 339 do STF, ‘verbis’: ‘NÃO CABE AO PODER JUDICIÁRIO, QUE NÃO TEM FUNÇÃO LEGISLATIVA, AUMENTAR VENCIMENTOS DE SERVIDORES PÚBLICOS SOB FUNDAMENTO DE ISONOMIA.

Em precedente que trata da concessão de benefício tributário, situação análoga a deste caso, o Colendo STF decidiu que:                

                       Os magistrados e Tribunais – que não dispõem de função legislativa – não podem conceder, por isso mesmo, ainda que sob fundamento de isonomia, o benefício da exclusão do crédito tributário em favor daqueles a quem o legislador, com apoio em critérios impessoais, racionais e objetivos, não quis contemplar com a vantagem da isenção. Entendimento diverso, que reconhecesse aos magistrados essa anômala função jurídica, equivaleria, em última análise, a converter o Poder Judiciário em inadmissível legislador positivo, condição institucional esta que lhe recusou a própria Lei Fundamental do Estado. É de acentuar, neste ponto, que, em tema de controle de constitucionalidade de atos estatais, o Poder Judiciário, os magistrados e Tribunais – que não dispõem de função legislativa – não podem conceder, por isso mesmo, ainda que sob fundamento de isonomia, o benefício da exclusão do crédito tributário em favor daqueles a quem o legislador, com apoio em critérios impessoais, racionais e objetivos, não quis contemplar com a vantagem da isenção. Entendimento diverso, que reconhecesse aos magistrados essa anômala função jurídica, equivaleria, em última análise, a converter o Poder Judiciário em inadmissível legislador positivo, condição institucional esta que lhe recusou a própria Lei Fundamental do Estado. É de acentuar, neste ponto, que, em tema de controle de constitucionalidade de atos estatais, o Poder Judiciário só atua como legislador negativo (RTJ 146/461, rel. Min. CELSO DE MELLO).’

 

                   Na verdade, se declarar a inconstitucionalidade do art. 3.º, e seu parágrafo único, da Lei Complementar n.º 260/2007, de Mococa, o Tribunal na prática obrigará o Poder Público a proceder à restituição de tributo já pago, efeito este indesejado pelo legislador, que rechaçou expressamente tal possibilidade.

                   Em decorrência do firme posicionamento do legislador, que expressamente vetou a devolução de valores pagos, a superação da suposta inconstitucionalidade só seria possível com a eliminação total da Lei Complementar n.º 260/2007, única possibilidade de afastar a propalada afronta à isonomia, o que, na prática, implicaria na supressão do benefício tributário em prejuízo daquele que realmente necessita do perdão estatal.

                   Assim, com a devida vênia, o parecer é pelo não acolhimento da presente arguição.

 

                                        São Paulo, 16 de fevereiro de 2011.

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

krcy