Parecer em incidente de Inconstitucionalidade

 

Autos nº. 0026141-42.2012.8.26.0000

Suscitante: 13ª. Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça

Objeto: Lei n. 4.247, de 23 de abril de 1999, do Município de Ourinhos

 

Ementa: Incidente de inconstitucionalidade da Lei n. 4.247, de 23 de abril de 1999, do Município de Ourinhos, que "Dispõe sobre a isenção de pagamento do transporte coletivo urbano concedida a portadores de deficiência".  Lei de iniciativa do Poder Legislativo.   Ausência de reserva do Chefe do Poder Executivo Parecer pela constitucionalidade da norma questionada.

 

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

(...) e outra, residentes no município de Ourinhos, ingressaram com ação de obrigação de fazer contra a empresa TIO – Transportes Integrados de Ourinhos (AVOA), pleiteando a fruição de transporte gratuito, na condição de portadores de deficiência mental.

Pela r. Sentença de fls. 106/108, a pretensão foi acolhida, da qual adveio apelação (fls. 117/123).

O recurso foi regularmente processado, com contrarrazões a fls. 130/138, sendo distribuído à Colenda 13ª. Câmara de Direito Privado.

O v. Acórdão de fls. 149/150 determinou a suspensão do julgamento da apelação, para que, em atenção à cláusula da reserva de Plenário (Súmula vinculante nº 10), o E. Órgão Especial se pronuncie sobre a constitucionalidade da Lei n. 4.247, de 23 de abril de 1999, do Município de Ourinhos, vislumbrando a ocorrência do vício de iniciativa, posto que de origem parlamentar.

Este é resumo do que consta dos autos.

Com todo respeito, deve o incidente ser desacolhido.

Vejamos.

         Pode-se afirmar que a matéria versada na lei impugnada não é de iniciativa legislativa reservada ao Executivo, pois não está contemplada no rol do art. 24, § 2º, 1 a 6, da Constituição Paulista, inexistindo, por esse aspecto, qualquer inconstitucionalidade a ser declarada em razão do impulso parlamentar dado ao projeto que culminou com a edição do ato normativo em epígrafe.

         De outro lado, não há, também, violação ao postulado constitucional da independência e harmonia entre os Poderes. A Constituição Federal atribuiu competência aos Municípios para legislar sobre assuntos de interesse local, bem como para organizar e prestar, diretamente ou sob o regime de concessão ou permissão, os serviços de interesse local, incluído o transporte coletivo (art. 30, II e V, da CF). E legislar a respeito do tema não significa invadir a seara da administração local.

         A propósito, a Constituição do Estado prescreve iniciativa privativa do Chefe do Executivo para leis que versem, em síntese, sobre: cargos, funções e empregos públicos na administração direta e indireta e sua remuneração; criação e extinção de órgãos na administração pública; regime jurídico dos servidores públicos (cf. art. 24, §2º, n. 1 a 6, da Constituição Estadual). Reitera a Carta Paulista, em linhas gerais, as limitações contidas no art. 61, § 1º, inciso II, da Constituição Federal.

         De outro lado, a Constituição do Estado de São Paulo também determina que cabe ao Executivo exercer a direção superior da Administração Estadual, bem como a prática de atos de administração (art. 47, incisos II e XIV).

         O princípio da independência e harmonia entre os Poderes, adotado expressamente no ordenamento constitucional brasileiro, não coloca o Executivo em posição de preeminência, e o Legislativo em situação de mera coadjuvação. É indispensável vislumbrar na proporcionalidade de forças na formulação das opções políticas do Estado, decorrente do sistema de separação associado aos freios e contrapesos (checks and balances), que Executivo e Legislativo, atuando em suas respectivas esferas de atribuição, possuem a mesma relevância política.

         Assim como o Executivo não deve sofrer indevida interferência em sua primacial função de administrar (planejamento, direção, organização e execução das atividades da Administração), o Legislativo não deve ver minimizada sua atividade de legislar. Afinal, em última análise, nosso regime democrático é representativo, e o Poder Legislativo, em sede de elaboração legislativa, reflete a própria voz da vontade popular.

         Entendimento diverso significa admitir, como perfil do Estado Democrático brasileiro, numa imagem representativa, uma balança deslocada para um lado de maior importância e prestígio: o lado do Poder Executivo. Um Executivo hipertrofiado em suas atribuições e poderes, ladeado por um Legislativo que se limitará a chancelar iniciativas daquele.

         Não parece ter sido esta a opção do Constituinte.

         Note-se, de início, que a essência da separação de Poderes, como ensina Manoel Gonçalves Ferreira Filho, é a “proteção da independência de determinado Poder, como ocorre com a de iniciativa em favor do Judiciário, que aliás, procede da inspiração que em Montesquieu sugeria a atribuição de veto ao Executivo, ou a redução das despesas públicas" (Do processo legislativo, 5ª ed., São Paulo, Saraiva, 2002, p.147).

         Como anota José Afonso da Silva, nos casos de iniciativa reservada aos Chefes do Executivo só estes “estão em condições de saberem quais são esses interesses e como fazerem para resguardá-los” (Processo constitucional de formação das leis, 2ª ed., São Paulo, Malheiros, 2006, p. 179).

         Deve-se notar, entretanto, que a regra em nosso regime constitucional é a livre iniciativa legislativa, que decorre do art. 61, caput, da CF, ao passo que as hipóteses de iniciativa reservada são excepcionais. Como tal é curial que regras de exceção sejam interpretadas restritivamente, sem a possibilidade de extensão por integração ou interpretação analógica.

         Lembrando o brocardo latino segundo o qual “exceptiones sunt strictissimae interpretanionis”, há muito Carlos Maximiliano anotava que “as disposições excepcionais são estabelecidas por motivos ou considerações particulares, contra outras normas jurídicas ou contra o direito comum, por isso não se estendem além dos casos e tempos que designam expressamente” (Hermenêutica e aplicação do direito, 18ªed., Rio de Janeiro, Revista Forense, 1999, p. 227).

         O Pretório Excelso já assentou que as hipóteses indicadas pelo texto constitucional como casos de iniciativa legislativa privativa do Executivo, assumindo o caráter de direito excepcional, na expressão de Carlos Maximiliano, devem ser interpretadas de forma restritiva. Confira-se:

"O respeito às atribuições resultantes da divisão funcional do Poder constitui pressuposto de legitimação material das resoluções estatais, notadamente das leis. Prevalece, em nosso sistema jurídico, o princípio geral da legitimação concorrente para instauração do processo legislativo. Não se presume, em conseqüência, a reserva de iniciativa, que deve resultar — em face do seu caráter excepcional — de expressa previsão inscrita no próprio texto da Constituição, que define, de modo taxativo, em numerus clausus, as hipóteses em que essa cláusula de privatividade regerá a instauração do processo de formação das leis. O desrespeito à prerrogativa de iniciar o processo legislativo, quando resultante da usurpação do poder sujeito à cláusula de reserva, traduz hipótese de inconstitucionalidade formal, apta a infirmar, de modo irremissível, a própria integridade do diploma legislativo assim editado, que não se convalida, juridicamente, nem mesmo com a sanção manifestada pelo Chefe do Poder Executivo (...).”    (ADI 776-MC, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 23-10-92, DJ de 15-12-06, g.n.).

         "A disciplina jurídica do processo de elaboração das leis tem matriz essencialmente constitucional, pois residem, no texto da Constituição — e nele somente —, os princípios que regem o procedimento de formação legislativa, inclusive aqueles que concernem ao exercício do poder de iniciativa das leis. A teoria geral do processo legislativo, ao versar a questão da iniciativa vinculada das leis, adverte que esta somente se legitima — considerada a qualificação eminentemente constitucional do poder de agir em sede legislativa — se houver, no texto da própria Constituição, dispositivo que, de modo expresso, a preveja. Em conseqüência desse modelo constitucional, nenhuma lei, no sistema de direito positivo vigente no Brasil, dispõe de autoridade suficiente para impor, ao Chefe do Executivo, o exercício compulsório do poder de iniciativa legislativa." (MS 22.690, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 17-4-97, DJ de 7-12-06, g.n.).

         Note-se que, nos precisos termos da Constituição Estadual (art.120), cabe exclusivamente ao Poder Executivo a fixação de tarifas dos serviços públicos. Entretanto, essa exclusividade não se estende à prerrogativa de conceder isenções quanto ao pagamento de tarifas, o que é próprio de lei - cuja iniciativa é geral ou concorrente - a ser editada pelo ente público responsável pela prestação do serviço (Cf. Hely Lopes Meirelles, Direito Municipal Brasileiro, 15ª ed., Malheiros, São Paulo, 2006, p.164).

         Também não se caracteriza, na hipótese, prática de ato de administração pelo legislativo, o que poderia amparar o reconhecimento da tese da quebra do princípio da separação de poderes. Note-se que a lei aqui analisada reveste-se de todos os pressupostos necessários à sua configuração como ato normativo: generalidade, impessoalidade, e abstração.

         Em síntese, o argumento é inconsistente para fins de reconhecimento de invalidade da lei impugnada.

         Destaque-se, ainda, a relevância social da lei impugnada, que se encontra em consonância com o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana e com o que dispõe o art. 203, IV, da CF:

         "A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos:

(...)

IV- a habilitação e reabilitação das pessoas portadoras de deficiência e a promoção de sua integração à vida comunitária;"

Isso nos permite afirmar que a lei impugnada está em conformidade com a ordem jurídica vigente, sendo absolutamente razoável o benefício por ela concedido.

         Pelo exposto, opina-se pela constitucionalidade da Lei n. 4.247, de 23 de abril de 1999, do Município de Ourinhos.

São Paulo, 28 de fevereiro de 2012.

 

 

        Sérgio Turra Sobrana

        Subprocurador-Geral de Justiça

        Jurídico

fjyd