Parecer em Incidente de Inconstitucionalidade

 

Incidente de Inconstitucionalidade nº 0041454-43.2012.8.26.0000

Suscitante: 6ª Câmara de Direito Público

Apelante: (...) e outros

Apelada: FAZENDA DO ESTADO DE SÃO PAULO e DER (DEPARTAMENTO DE ESTRADAS DE RODAGEM DO ESTADO DE SÃO PAULO)

Ementa:

1)      Incidente de inconstitucionalidade. Medida Provisória nº 2.220/2001, que dispõe sobre a “concessão especial de uso de que trata o § 1º do art. 183 da Constituição Federal”.

2)      Ausência de interesse processual para a instauração do incidente. Inexistência de questão constitucional a examinar. Caso em que a improcedência da ação, na hipótese em exame, deve se fundar no não preenchimento de um dos requisitos da concessão especial de uso, qual seja a inexistência de posse. Mera autorização para uso de imóveis do Poder Público, que não se qualifica como posse e não produz os efeitos que esta pode produzir.

3)      Mérito. Na hipótese de admissão do incidente, reconhecimento da inconstitucionalidade da norma, com interpretação conforme a Constituição. Medida Provisória que, a pretexto de legislar sobre direito urbanístico (art. 24, I da CF), vai além da fixação de normas gerais, invadindo a esfera de competência dos Estados e Municípios para legislar sobre aspectos suplementares e locais relativos ao tema (art. 24, §§ 1º e 2º, art. 30, I e II da CF).

4)   Parecer pela não admissão do incidente de inconstitucionalidade, ou alternativamente, em caso de sua admissão, pelo seu acolhimento.

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Desembargador Relator

 

Trata-se de incidente suscitado pela Col. 6ª Câmara de Direito Público do E. Tribunal de Justiça de São Paulo, na sessão de julgamento realizada em 6 de fevereiro de 2012, figurando como relator o Des. Sidney Romano dos Reis, quando do julgamento da apelação nº 0129801-28.2007.8.26.0000, tendo como objeto a “concessão de uso especial” para fins de moradia de imóvel público nos termos da Medida Provisória nº 2.220/2001.

Para melhor compreensão do objeto do incidente, pedimos vênia para transcrever excerto do voto do relator no v. acórdão no qual foi suscitada a instauração do incidente:

“(...)

Não se mostra possível o julgamento definitivo da presente demanda neste momento.

Isto porque, os autores alicerçam o pleito de concessão de uso especial dos imóveis pertencentes ao DER e à Fazenda do Estado no disposto na Medida Provisória nº 2.220/2001.

Acontece, contudo, que a competência para legislar sobre direito urbanístico é concorrente entre a União, Estados e Distrito Federal (art. 24, I, da Constituição Federal), incumbindo ao Município, com base em lei federal que fixe suas diretrizes gerais executar a política de desenvolvimento urbano e, portanto, extrapolou a União seus poderes ao instituir a concessão de uso especial em relação a imóveis públicos dos demais entes federados (Estados e Municípios).

Reside aí, singelamente, a meu ver, o vício de inconstitucionalidade da MP nº 2.220/2001.

(...)

Em sendo assim, incontroverso que não pode a União dispor sobre a utilização de bens públicos que estejam afetos a outros entes federados, tais como Estados e Municípios, mas apenas estabelecer as normas gerais a respeito da matéria, somente lhe sendo possível dispor sobre a concessão de uso em relação aos seus próprios bens, eis que cada ente federativo tem competência privada para legislar sobre seus bens.

(...)”

É o relato do essencial.

Preliminarmente, não há interesse processual para o conhecimento do incidente de inconstitucionalidade, que não deverá ser admitido.

O exame da constitucionalidade da MP nº 2.220/2001, que regulou o instituto da “concessão especial de uso”, previsto genericamente, no art. 183, § 1º da CF/88, não é indispensável para fins de julgamento do mérito da presente ação e do recurso de apelação interposto contra a sentença.

Note-se que, em conformidade com o art. 1º da MP nº 2.220/2001, um dos requisitos indispensáveis para a concessão de uso especial é a existência de posse por cinco anos ininterruptos, até o dia 30 de junho de 2001, de imóvel nas condições que especifica.

Pedimos vênia para transcrever referido dispositivo:

“(...)

Art. 1º. Aquele que, até 30 de junho de 2001, possuiu como seu, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, até duzentos e cinquenta metros quadrados de imóvel público situado em área urbana, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, tem o direito à concessão de uso especial para fins de moradia em relação ao bem objeto da posse, desde que não seja proprietário ou concessionário, a qualquer título, de outro imóvel urbano ou rural.

(...)”

Não está preenchido, no caso concreto que rendeu ensejo ao feito em exame, este requisito.

Note-se que os próprios autores afirmam, na inicial da presente ação, que os imóveis foram ocupados a partir de “Termo de Autorização de Uso”, elaborado pelo então proprietário, o DER.

Com a contestação, foram juntadas cópias dos Termos de Autorização de Uso referentes aos imóveis mencionados na inicial (fls. 463 e ss.).

Em outras palavras, é fato incontroverso que os autores não exerciam a posse dos imóveis, sendo apenas seus detentores, a título precário, considerando que a autorização é ato unilateral e precário, editado prevalentemente no interesse da Administração Pública.

Nesse sentido, anota Hely Lopes Meirelles (Direito Administrativo, 34. Ed., São Paulo, Malheiros, 2008, p. 533), que:

“(...)

Autorização de uso é ato unilateral, discricionário e precário pelo qual a Administração consente na prática de determinada atividade individual incidente sobre um bem público. Não tem forma nem requisitos especiais para sua efetivação, pois visa apenas a atividades transitórias e irrelevantes para o Poder Público, bastando que se consubstancie em ato escrito, revogável sumariamente e sem ônus para a Administração.

(...)”

Dessa forma, como os requerentes não preenchiam um dos requisitos fundamentais para o exercício do direito regulado pela MP nº 2.220/2001, a improcedência da ação independe da análise da constitucionalidade da referida Medida Provisória.

Recordemos que a arguição de inconstitucionalidade nada mais é que incidente que se verifica no controle difuso de constitucionalidade, com a finalidade, exclusivamente, de respeito à chamada “cláusula de reserva de plenário”, prevista no art. 97 da CF/88.

Em outras palavras, não se trata propriamente do processo objetivo, como a ação direta de inconstitucionalidade, sendo limitada a cognição do Órgão Especial à questão de Direito Constitucional cuja apreciação é indispensável para o julgamento do recurso no qual o incidente foi suscitado.

É nesse sentido que Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery (Código de Processo Civil comentado e legislação extravagante, 9. Ed., São Paulo, RT, 2006, p. 668, nt. 1 ao art. 480 do CPC) anotam que a declaração de inconstitucionalidade:

“(...)

É levantada no curso de um processo e constitui questão prejudicial do julgamento da causa no tribunal.

(...)”

E a questão prejudicial só se configura, relativamente ao exame da questão principal do feito, ou seja, o seu mérito, como anota Cândido Rangel Dinamarco (Institutuições de Direito Processual Civil, t. II, 4. Ed., São Paulo, Malheiros, 2004, p. 155), nos casos em que a prejudicial versa:

“(...)

sobre a existência, inexistência ou modo-de-ser de uma relação jurídica fundamental, da qual dependa o reconhecimento da existência, inexistência ou modo-de-ser do direito controvertido na outra.

(...)”

Em outras palavras, se o incidente de inconstitucionalidade serve para a análise da questão prejudicial constitucional, sua instauração depende da efetiva existência da relação de prejudicialidade: só se justifica a admissão do incidente, se o exame da questão de direito constitucional é, efetivamente, indispensável para o julgamento da causa ou do recurso.

Deste modo, em nosso entendimento, o julgamento do recurso deve ser concluído sem a análise da inconstitucionalidade da MP nº 2.220/2001, visto ser irrelevante a questão constitucional para o desfecho da ação.

Caso não seja acolhida a preliminar e o incidente venha a ser admitido, será necessário reconhecer a inconstitucionalidade da MP nº 2.220/2001.

Note-se que o art. 183, § 1º, da CF/88, apenas menciona genericamente, sem indicar requisitos e procedimentos, o instituto da “concessão de uso”, prevendo que:

“(...)

Art. 183.

§ 1º. O título de domínio e a concessão de uso serão conferidos ao homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil.

(...)”

A MP nº 2.220/2001 regulamentou tal instituto, estabelecendo seus requisitos, impondo sua aplicação à União, ao Distrito Federal, aos Estados e aos Municípios, bem ainda tratando-o, sob a perspectiva do particular, como direito subjetivo em face da Administração Pública.

Nesse sentido é que o art. 1º da MP nº 2.220/2001 assenta que o particular que cumprir os requisitos nele estabelecidos “tem direito à concessão de uso especial para fins de moradia em relação ao bem objeto da posse”. Esse direito deve ser exercido em face do Poder Público, visto que de, imóveis públicos, trata referida norma.

Cuidando-se de Direito Urbanístico, não se pode negar que a competência da União para legislar a esse propósito limita-se à edição de regras gerais, cabendo aos Estados e Municípios sua suplementação e a regulamentação de aspectos essencialmente locais relativos ao tema (art. 24, I, §§ 1º e 2º, bem como art. 30, I e II da CF).

Dessa forma, a imposição da concessão de uso aos Estados e Municípios, como direito subjetivo decorrente da MP nº 2.220/2001, significa vinculação da atividade administrativa municipal e estadual por diretriz federal, extrapolando o campo da regulamentação geral, que se limita à conceituação, fixação de condições e estabelecimento de procedimentos relacionados ao instituto da concessão especial de uso.

Dentro dessa perspectiva, essa vinculação da administração estadual ou municipal a partir de uma iniciativa federal, equivale, na prática, a um ato administrativo da União com invasão da esfera autônoma de gestão dos Estados e Municípios.

Nesse particular, Maria Sylvia Zanella Di Pietro (Estatuto da cidade: comentários à lei federal 10.257/2001, 1. ed., São Paulo, Malheiros, 2003, p. 159), acentua claramente que:

“(...)

Conforme o art. 24, I, da Constituição, a competência para legislar sobre direito urbanístico é concorrente da União, Estados e Distrito Federal, Tratando-se de competência concorrente, a competência da União limitar-se-á a estabelecer normas gerais (§ 1º), não excluindo a competência suplementar dos Estados (§ 2º). Por sua vez, os Municípios têm competência para suplementar a legislação federal e a estadual no que couber (art. 30, II), para legislar sobre assuntos de interesse local (inciso I) e para promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano (inciso VIII).

(...)

Contudo, não se pode esquecer que o dispositivo em questão envolve a utilização de bens públicos, a respeito dos quais cada ente da Federação tem competência própria para legislar privativamente. Ainda que a União tenha competência para legislar sobre direito urbanístico (art. 24, I) e sobre a política de desenvolvimento urbano (art. 182), em um e outro caso sua competência não é privativa, tendo que se limitar a estabelecer as normas gerais ou as diretrizes gerais a respeito da matéria.

Não lhe cabe, em consequência, impor aos Estados e Municípios a outorga de título de concessão de uso, transformando-a em direito subjetivo do possuidor de imóveis públicos estaduais ou municipais. Se a norma constitucional fala em título de domínio e concessão de uso é porque deixou a decisão à apreciação discricionária do Poder Público titular do bem. A União pode, validamente, impor a concessão de uso, como decisão vinculada, em relação aos bens que integrem seu patrimônio; mas não pode fazê-lo em relação aos bens públicos estaduais e municipais. Fácil imaginar-se o ônus que tal imposição representaria para os grandes Municípios, em que as favelas invadem espaços públicos desordenadamente e em que teria que ser assegurado a todos os invasores outro imóvel urbano ou rural. A aplicação da medida é praticamente impossível sem a destinação de recursos públicos a essa finalidade.

A regulamentação do instituto seria válida por meio de lei federal se esta se limitasse a estabelecer as diretrizes gerais para sua aplicação, deixando ao Poder Público local a decisão quanto ao momento oportuno para aplica-lo, de acordo com as suas disponibilidades financeiras.

(...)” (g.n.)

A fim de preservar o instituto da concessão especial de uso, interpretando a MP nº 2.220/2001 em conformidade com a Constituição Federal, será necessário reconhecer, nesse diploma, não uma alocação impositiva de bens pertencentes ao Poder Público Estadual e Municipal, mas, sim, uma possibilidade, cuja adoção, ou não, uma vez preenchidos os requisitos previstos na norma, se submeterá à decisão da Administração Pública envolvida, considerada a supremacia do interesse público e a prerrogativa inerente à gestão de seu patrimônio.

Maria Sylvia Zanella Di Pietro (op. cit., p. 158), anota, nesse particular, examinando o fundamento constitucional do instituto, que:

“(...)

O possuidor de imóvel público não é titular de direito subjetivo oponível à Administração. O próprio fato de o § 1º falar em título de domínio e concessão de uso já deixa claro que o Poder Público pode optar entre uma hipótese ou outra; não em relação ao usucapião, mas em relação aos imóveis públicos ocupados por particulares.

(...)” (g.n.)

Essa interpretação em nosso sentir se mostra correta, partindo da premissa de que é necessário compreender o diploma que regulamentou o instituto da “concessão especial de uso” como regra geral que não dispensa a observância das autonomias de cada ente federativo, em leitura contextualizada a partir do princípio da repartição constitucional de competências.

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da não admissão do incidente de inconstitucionalidade.

Entretanto, caso seja admitido, deverá ser acolhido, reconhecendo-se a inconstitucionalidade da intepretação pela qual a concessão especial de uso prevista na MP nº 2.220/2001 é vinculativa para o Poder Público Municipal e Estadual, preservando-se, entretanto, a regulamentação do instituto.

São Paulo, 19 de março de 2012.

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

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