Arguição de
Inconstitucionalidade
Processo n.o
0042398-79.2011.8.26.0000
Suscitante: 4.a Câmara de Direito Privado do
Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo
Interessados: (...) e outros
‘Ementa: Arguição de
inconstitucionalidade. Art. 1.790, inciso III, do Código Civil. Impossibilidade
de equiparar-se o casamento à união estável para efeitos sucessórios. O Poder
Judiciário não pode atuar como legislador positivo. A expressão ‘outros parentes sucessíveis’ admite
interpretação compatível com a Constituição no sentido de referir-se
exclusivamente aos ascendentes. Rejeição do incidente.’
Excelentíssimo
Senhor Desembargador Relator,
Colendo
Órgão Especial:
Em ação de arrolamento de
bens movida pela companheira do ‘de cujus’,
os irmãos deste postularam sua habilitação nos autos, na condição de herdeiros
colaterais, mas tiveram sua pretensão desacolhida, pelo Juízo de primeiro grau,
que reconheceu a incidência, na espécie, do art. 1829, incisos I e III, do
Código Civil, motivando, tal solução, a interposição tempestiva de agravo de
instrumento, no qual requereram a aplicação, ao caso, do disposto no art. 1790,
inciso III, do Código Civil, mas, ao apreciar essa questão, a 4.a
Câmara de Direito Privado desse Egrégio Tribunal de Justiça optou por suscitar
incidente de inconstitucionalidade da norma civil invocada, a qual entende ser
incompatível com os arts. 5.o, inciso XXX, e 226, § 3.o,
da vigente Constituição Republicana.
Preliminarmente: no
Processo n.º 0434423-72.2010.8.26.0000 (990.10.434423-9), em trâmite no Órgão
Especial, discute-se questão idêntica à debatida neste incidente, qual seja a
possível inconstitucionalidade do art. 1790 do Código Civil, tendo, inclusive,
o julgamento se iniciado com o voto do Relator, Desembargador Corrêa Vianna,
que julgou procedente a arguição, mas foi adiado após o pedido de vista dos
Desembargadores Cauduro Padin e Campos Mello, consoante extrato de
acompanhamento anexo.
Assim, pela ordem, requer-se
a suspensão deste processo até a finalização do referido julgamento,
evitando-se, com tal iniciativa, a possibilidade de soluções díspares.
No mérito, o art. 1790,
inciso III, do Código Civil, dispõe que:
‘Art.
I –.................
II – ...............
III – se concorrer com outros
parentes sucessíveis, terá direito a um terço da herança;
IV –..............’
‘Data venia’, não se vislumbra a inconstitucionalidade na extensão
em que propalada.
Com efeito, a resolução do
caso concreto independe da proclamação de inconstitucionalidade da norma em
epígrafe (invalidação da norma), pois a superação do problema ora identificado
é perfeitamente possível com a interpretação
compatível com a Constituição, solução hermenêutica.
Nos seus incisos I e II, o
art. 1790 do Código Civil trata da concorrência entre filhos comuns e
descendentes só do autor da herança com o companheiro ou companheira sobrevivente,
quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, enquanto
que no inciso III há remissão a ‘outros
parentes sucessíveis’, expressão que, no entender dos Interessados,
abrangeria os ‘colaterais’ (irmãos),
mas, considerando-se que as normas não devem ser interpretadas isoladamente,
pois integram um sistema jurídico, com quem devem sempre estar em harmonia, é
possível a exegese segundo a qual a remissão legal a ‘outros parentes sucessíveis’ diz respeito exclusivamente aos
ascendentes.
De fato, a Lei n.o
8.971, de 29 de dezembro de 1994, dispunha no seu art. 2.o que:
‘Art. 2º As
pessoas referidas no artigo anterior participarão da sucessão do(a)
companheiro(a) nas seguintes condições:
I
- o(a) companheiro(a) sobrevivente terá direito enquanto não constituir nova
união, ao usufruto de quarta parte dos bens do de cujos, se houver filhos ou
comuns;
II
- o(a) companheiro(a) sobrevivente terá direito, enquanto não constituir nova
união, ao usufruto da metade dos bens do de cujos, se não houver filhos, embora
sobrevivam ascendentes;
III
- na falta de descendentes e de ascendentes, o(a) companheiro(a) sobrevivente
terá direito à totalidade da herança.
Art.
3º Quando os bens deixados pelo(a) autor(a) da herança resultarem de atividade
em que haja colaboração do(a) companheiro, terá o sobrevivente direito à metade
dos bens.’
Ou seja, além de garantir o
direito à meação, no caso de aquestos, essa lei assegurou a participação do
companheiro na sucessão do ‘de cujus’, reservando-lhe o usufruto de quarta
parte dos bens do falecido, se houver filhos ou comuns, ou da metade desses
bens, se não houver filhos, embora sobrevivam ascendentes e, na ausência
destes, assegurou ao companheiro sobrevivente o direito à totalidade da
herança.
A lei em questão em nenhum momento se reportou
aos colaterais, donde se conclui que estes foram alijados do processo
sucessório, e esta situação em nada se alterou com o advento do Código Civil de
2002, que transformou a companheira ou o companheiro em herdeiro do ‘de cujus’,
quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável.
Na espécie, portanto, é
inaplicável a ordem de vocação hereditária prevista no art. 1.829, I a IV, do
Código Civil, em que o cônjuge sobrevivente prefere os herdeiros colaterais,
visto que, na sucessão em casos de união estável, estes nem sequer foram
contemplados.
Com essa interpretação
sistemática, afasta-se em definitivo o argumento de que as alterações
produzidas pelo vigente Código Civil resultaram num retrocesso social e,
igualmente, a alegação de afronta aos arts. 5.o e 226, 3.o,
da Constituição Federal.
No mais, cumpre obtemperar, a
iniciativa de equiparar o casamento à união estável, no que tange aos efeitos
sucessórios, não encontra guarida na ordem constitucional vigente.
Aliás, o próprio art. 226, §
3.o, da Constituição Federal reza que: ‘Para efeito da proteção do
Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade
familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento’, não
habilitando, tal ressalva, o legislador a equiparar figuras jurídicas
distintas, tampouco o Poder Judiciário, a quem é vedado atuar como legislador
positivo, isto é, alterar a vontade do legislador, mediante o afastamento de
norma aplicável ao caso e o subsequente emprego da analogia.
Na verdade, a sugestão
preconizada no voto condutor – qual seja a de declarar-se a
inconstitucionalidade de norma específica e aplicar, por analogia, a solução
legalmente prevista para situação diversa – implica na atuação do Poder
Judiciário como legislador positivo, o que lhe é defeso, e somente seria
possível por meio de alteração legislativa.
Por outro lado, não é
admissível cogitar de ofensa à igualdade em situações que, a rigor, são
desiguais (casamento e união estável) e, portanto, não exigem uniformidade de
tratamento normativo.
Nessa ordem de ideias, cumpre
obtemperar que – não se tratando o casamento e a união estável de figuras
iguais, na exata acepção jurídica do termo – a discussão em torno de serem
justas ou injustas as previsões legais díspares é indiferente à resolução deste
incidente, mormente por não caber ao Poder Judiciário verberar a opção do
legislador, que entre uma e outra solução legislativa optou pela que lhe
pareceu a mais adequada.
Assim, com base nessas
premissas – e ante a possibilidade concreta de atribuir-se ao inciso III, do
art. 1790 do Código Civil, interpretação compatível com a Constituição, de modo
a considerar-se que a expressão ‘outros parentes
sucessíveis’, nele contida, somente diz respeito aos ascendentes, com
exclusão dos colaterais, mantendo-se, com tal exegese, a harmonia da ordem
constitucional, o respeito à proibição de retrocesso social e às balizas
fixadas na Lei n.o 8.971/94 –, opina-se pela rejeição do incidente
de inconstitucionalidade.
São Paulo,
21 de março de 2011.
Subprocurador-Geral
de Justiça
Jurídico
krcy