Parecer em Incidente de Inconstitucionalidade

 

Autos nº 0057414-73.2011.8.26.0000

Requerente: 3ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

Objeto: Inconstitucionalidade das Leis Municipais ns. 846, de 08 de fevereiro de 1989 e 1.613, de 27 de julho de 2005, ambas do Município de Severínia

 

 

 

 

Ementa: Leis Municipais ns. 846, de 08 de fevereiro de 1989, “que concede pensão mensal a ex-prefeito do Município e dá outras providências” e 1.613, de 27 de julho de 2005, que “dispõe sobre a concessão de pensão mensal às viúvas de ex-prefeitos municipais e dá outras providências”, ambas do Município de Severínia. Inteligência do art. 195, § 5º da Constituição Federal, aplicável por força dos arts. 218 e 144 da Constituição Estadual: “nenhum benefício ou serviço da seguridade social poderá ser criado, majorado ou estendido sem a correspondente fonte de custeio total”. Precedentes: RE 485.940, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgamento em 9-2-07, DJ de 20-4-07; RE 419.954 e RE 414.741, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento em 9-2-07, DJ de 23-3-07; RE 492.338, Rel. Min. Cezar Peluso, julgamento em 9-2-07, DJ de 30-3-07; ADI 3.205, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 19-10-06, DJ de 17-11-06; entre outros. Impossibilidade de se considerar como fonte de custeio a previsão legal de que o pagamento do benefício será feito com recursos constantes de dotação orçamentária própria. Inconstitucionalidade reconhecida. Violação, também, do art. 111 da Constituição Estadual.

 

 

Colendo Órgão Especial:

 

                  

      Trata-se de incidente de inconstitucionalidade suscitado pela C. 3ª Câmara de Direito Público, nos autos de Apelação Cível nº 994.09.269978-1, em que figuram como partes (....) (apelante) e PREFEITURA DO MUNICÍPIO DE SEVERÍNIA (apelado).

      Objetiva-se atender à cláusula de reserva de plenário (Súmula Vinculante nº 10 do STF), eis que se cogita do eventual afastamento, por inconstitucionalidade, das Leis Municipais ns. 846, de 08 de fevereiro de 1989 e 1.613, de 27 de julho de 2005, ambas do Município de Severínia.

      Não há notícia de pronunciamento anterior do Órgão Especial, do Plenário ou do Supremo Tribunal Federal sobre a questão suscitada (art. 481, parágrafo único, do CPC).

      Este é resumo do que consta dos autos.

      A Lei n. 846, de 08 de fevereiro de 1989, que “concede pensão mensal a ex-Prefeito do Município e dá outras providências”, apresenta a seguinte redação:

“Art. 1º - Fica concedida a pensão mensal em caráter vitalício, a todo aquele que já tiver exercido o cargo de Prefeito do Município de Severínia e que preencha as seguintes condições, na data da promulgação desta lei:

I- Ter mais de 70 anos;

II- Suprimido.

III- Residir no Município.

Parágrafo único- Não terá direito à pensão aprovada por este artigo aquele cujo mandato tiver sido cassado por improbidade administrativa ou que, mesmo fora do exercício do cargo tiver sofrido condenação por crime praticado contra a administração pública.

Art. 2º - A pensão mensal de que trata esta lei é fixada em 02 (dois) salários mínimos nacional.

Art. 3º - Não perde os benefícios da pensão mensal que trata esta lei, o ex-prefeito que exercer ou vier a exercer quaisquer mandatos eletivos, sem prejuízo das remunerações relativas a esses cargos.

Art. 4º - Ocorrendo o falecimento do beneficiário, a pensão mensal será transferida ao cônjuge supérsiste, e na ausência deste, por falecimento ou por novas núpcias, aos filhos menores de 21 ( vinte e um) anos de idade, não podendo o valor total ser pago a estes ser superior ao que percebia o beneficiário.

Art. 5º - Fica o poder executivo autorizado, a abrir crédito especial no corrente exercício, até a importância necessária para a cobertura das despesas para a execução desta lei, devendo em exercícios futuros tais recursos constarem das leis orçamentárias próprias.

Art. 6º - Esta lei entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrários”.

      A Lei n. 1.613, de 27 de julho de 2005, que “dispõe sobre a concessão de pensão mensal às viúvas de ex-prefeitos municipais e dá outras providências”, assim dispõe:

“Art. 1º - Fica o Poder Executivo autorizado a conceder uma pensão mensal às viúvas de ex-prefeitos municipais, cujo valor será de 2 (dois) salários base do município.

Parágrafo único- O valor da pensão será corrigido na mesma proporção do reajuste dos servidores municipais levando em consideração sempre o salário base.

Art. 2º - Os benefícios desta lei serão extensivos aqueles que viviam como companheira do falecido há mais de 5 (cinco) anos sob o mesmo teto e na época que deu-se a questão do referido mandatário.

Art. 3º - O benefício que trata esta Lei será concedido mediante requerimento da viúva ou companheira do ex-prefeito.

Art. 4º - As despesas decorrentes com a execução desta Lei, correrão à conta das dotações orçamentárias próprias do orçamento vigente, suplementadas se necessário for.

Art. 5º - Esta Lei entrará em vigor na data de sua publicação, revogada as disposições em contrário”.

 

     Como se pode observar, a Lei n. 846, de 08 de fevereiro de 1989, do Município de Severínia, criou o benefício de pensão mensal, em caráter vitalício, aos ex-Prefeitos do citado Município, ao passo que a Lei n. 1.613, de 27 de julho de 2005, concede pensão mensal às viúvas de ex-Prefeitos.

      Essa legislação, como se verá, é verticalmente incompatível com a Constituição do Estado de São Paulo, em especial com as seguintes disposições:

“Art. 111 – A administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes do Estado, obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, razoabilidade, finalidade, motivação e interesse público.

Art. 218 – O Estado garantirá, em seu território, o planejamento e desenvolvimento de ações que viabilizem, no âmbito de sua competência, os princípios de seguridade social previstos nos artigos 194 e 195 da Constituição Federal.

Art. 144 - Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por Lei Orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.”

      A Constituição em vigor consagrou o Município como entidade federativa indispensável ao nosso sistema federativo, integrando-o na organização político-administrativa e garantindo-lhe plena autonomia, como se nota da exegese dos arts. 1.º, 18, 29, 30 e 34, VI, “c” da CF (Cf. Alexandre de Moraes, in “Direito Constitucional”, Atlas, São Paulo, 7.ª ed., p. 261).

     Na definição de José Afonso da Silva, autonomia é a capacidade ou poder de gerir os próprios negócios, dentro de um círculo prefixado por entidade superior, que no caso é a Constituição (Cf. Curso de Direito Constitucional Positivo, Malheiros, São Paulo, 1992, p. 545”). Verifica-se, pois, que essa autonomia consagrada ao Município não tem caráter absoluto e soberano, ao contrário, encontra limites nos princípios emanados dos poderes públicos e dos pactos fundamentais, que instituíram a soberania de um povo (Cf. De Plácido e Silva, Vocabulário Jurídico, Forense, Rio de Janeiro, Vol. I, 1984, p. 251).

      A autonomia municipal assenta-se em quatro capacidades básicas: (a) auto-organização, mediante a elaboração de lei orgânica própria, (b) autogoverno, pela eletividade do Prefeito e dos Vereadores as respectivas Câmaras Municipais, (c) autolegislação, mediante competência de elaboração de leis municipais sobre áreas que são reservadas à sua competência exclusiva e suplementar, (d) autoadministração ou administração própria, para manter e prestar os serviços de interesse local (Cf. José Afonso da Silva, ob. cit., p. 546).

      Nessas quatro capacidades, encontram-se caracterizadas a autonomia política (capacidades de auto-organização e autogoverno), a autonomia normativa (capacidade de fazer leis próprias sobre matéria de sua competência), a autonomia administrativa (administração própria e organização dos serviços locais) e a autonomia financeira (capacidade de decretação de seus tributos e aplicação de suas rendas, que é uma característica da auto-administração) (ob. e loc. cits).          

      Contudo, a liberdade conferida aos Municípios para gerir os assuntos de natureza administrativa não é ampla e ilimitada, pois subordina-se às seguintes regras fundamentais e impostergáveis: (a) a que exige que essa organização se faça por lei; (b) a que prevê a competência exclusiva da entidade ou Poder interessado; e (c) a que impõe a observância das normas constitucionais federais pertinentes (José Afonso da Silva, Curso de Direito Constitucional Positivo, São Paulo: Malheiros, 8ª ed., 1992, p. 545).

       Todavia, verifica-se neste caso que as leis indicadas permitiram que o Executivo pague a pessoa certa e determinada pensão mensal, sem a correspondente fonte de custeio, como determina o sistema constitucional do país. Com efeito, tanto a Constituição Estadual em seu art. 218, como a Constituição Federal, nos arts. 195, § 5º e 201, albergaram o princípio do regime previdenciário contributivo, de maneira que não há como ser deferido benefício sem a correspondente fonte de custeio.

       A Constituição Bandeirante previu expressamente que, na esfera de sua competência, os princípios da seguridade social previstos nos arts. 194 e 195 da Constituição Federal devem ser observados. E, segundo este último dispositivo, a seguridade social será financiada por toda a sociedade.

      Significa dizer que sem custeio não há como obter-se benefício previdenciário. Com efeito, ao criar pensão a ex-Prefeito e para viúva de ex-prefeito, o Município de Severínia legislou contra o texto fundamental, incorrendo em inconstitucionalidade.

      Pacífico é o entendimento a respeito da matéria, no Pretório Excelso, conforme inúmeros precedentes, aqui indicados a título de exemplificação: RE 485.940, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgamento em 9-2-07, DJ de 20-4-07; RE 419.954 e RE 414.741, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento em 9-2-07, DJ de 23-3-07; RE 492.338, Rel. Min. Cezar Peluso, julgamento em 9-2-07, DJ de 30-3-07; ADI 3.205, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 19-10-06, DJ de 17-11-06; entre outros.

      Observe-se que, em mais de uma oportunidade, o C. STF, julgando ações diretas de inconstitucionalidade, reconheceu a invalidade jurídico-constitucional de atos normativos que contrariam o disposto no art. 195, § 5º da CR/88, norma constitucional originária, por força da qual “nenhum benefício ou serviço da seguridade social poderá ser criado, majorado ou estendido sem a correspondente fonte de custeio total”. Confiram-se os seguintes julgados do C. STF:

"Ação direta de inconstitucionalidade: L. est. 2.207/00, do Estado do Mato Grosso do Sul (redação do art. 1º da L. est. 2.417/02), que isenta os aposentados e pensionistas do antigo sistema estadual de previdência da contribuição destinada ao custeio de plano de saúde dos servidores Estado: inconstitucionalidade declarada. (...) Seguridade social: norma que concede benefício: necessidade de previsão legal de fonte de custeio, inexistente no caso (CF, art. 195, § 5º): precedentes." (ADI 3.205, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 19-10-06, DJ de 17-11-06).

"Ação direta de inconstitucionalidade. Emenda constitucional n. 35, de 20 de dezembro de 2006, da Constituição do Estado de Mato Grosso do Sul. Acréscimo do art. 29-A, caput e §§ 1º, 2º e 3º, do Ato das Disposições Constitucionais Gerais e Transitórias da Constituição sul-mato-grossense. Instituição de subsídio mensal e vitalício aos ex-Governadores daquele Estado, de natureza idêntica ao percebido pelo atual chefe do Poder Executivo estadual. Garantia de pensão ao cônjuge supérstite, na metade do valor percebido em vida pelo titular. Segundo a nova redação acrescentada ao Ato das Disposições Constitucionais Gerais e Transitórias da Constituição de Mato Grosso do Sul, introduzida pela Emenda Constitucional n. 35/2006, os ex-Governadores sul-mato-grossenses que exerceram mandato integral, em 'caráter permanente', receberiam subsídio mensal e vitalício, igual ao percebido pelo Governador do Estado. Previsão de que esse benefício seria transferido ao cônjuge supérstite, reduzido à metade do valor devido ao titular. No vigente ordenamento republicano e democrático brasileiro, os cargos políticos de chefia do Poder Executivo não são exercidos nem ocupados 'em caráter permanente', por serem os mandatos temporários e seus ocupantes, transitórios. Conquanto a norma faça menção ao termo 'benefício', não se tem configurado esse instituto de direito administrativo e previdenciário, que requer atual e presente desempenho de cargo público. Afronta o equilíbrio federativo e os princípios da igualdade, da impessoalidade, da moralidade pública e da responsabilidade dos gastos públicos (arts. 1º, 5º, caput, 25, § 1º, 37, caput e inc. XIII, 169, § 1º, inc. I e II, e 195, § 5º, da Constituição da República). Precedentes. Ação direta de inconstitucionalidade julgada procedente para declarar a inconstitucionalidade do art. 29-A e seus parágrafos do Ato das Disposições Constitucionais Gerais e Transitórias da Constituição do Estado de Mato Grosso do Sul." (ADI 3.853, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgamento em 12-9-07, DJ de 26-10-07).

      A proibição de criação, majoração, ou extensão de benefício previdenciário sem a correspondente fonte de custeio total também tem sido afirmada por esse E. Tribunal de Justiça de São Paulo, como se infere dos seguintes julgados:

“Ação direta de inconstitucionalidade. Lei nº1703, de 10 de dezembro de 1990, que ‘Dispõe sobre a complementação de aposentadoria e pensão de servidores aposentados por tempo de serviço ou idade, das pensionistas e viúvas de ex-servidores aposentados ou falecidos enquanto na ativa e dá outras providências’. Criação de previdência complementar sem a definição de sua fonte de custeio integral. Vulneração dos artigos 144 e 218 da Constituição Estadual, pela ausência de estrita observância ao disposto no art.195, §5º, da Constituição Federal. Pedido julgado procedente” (TJSP, ADI 153.965-0/5, rel. des. Oscarlino Moeller, j. 26.03.08, v.u.).

“Ação direta de inconstitucionalidade. Lei nº2969/93 do Município de Birigui, que dispõe sobre a denúncia de convênio firmado entre a Câmara Municipal de Birigui e o Instituto de Previdência do Estado de São Paulo e dá providências correlatas. Ofensa aos art.111, 144 e 218 da Carta Paulista. Necessidade de prévia e correspondente fonte de custeio para a criação, majoração ou extensão de benefício previdenciário. Inobservância do princípio da impessoalidade, diante da obtenção de vantagens de um grupo minoritário. Ação julgada procedente.” (TJSP, ADI 151.936-0/9-00, rel. des. Penteado Navarro, j. 20.02.08, v.u.)”.

         E não é possível considerar como fonte de custeio suficiente, pura e simplesmente, a previsão legal de que o pagamento do benefício será feito com recursos constantes de dotação orçamentária própria. Isso significa, na prática, carrear todo o ônus financeiro ao erário municipal. Este acaba sendo o único a financiar o pagamento.

         Deve-se levar em conta que a Constituição Federal estabelece, a propósito, a necessidade de respeito à diversidade da base de financiamento (art. 194, VI, da CF), bem como a participação, concomitante, de empregador e trabalhador (art. 195, incisos I e II da CF). Ademais, é impossível desconsiderar, finalmente, o caráter contributivo do sistema previdenciário (art. 201, caput, da CF).

         A exigência de fonte de custeio total deve ser entendida como fonte de custeio que satisfaça os pressupostos do sistema estabelecido na Constituição Federal:

(a) diversidade de base de financiamento;

 (b) caráter contributivo;

(c) e participação de empregador e trabalhadores.

         Assim, criar benefício por meio de lei, sem observar os parâmetros acima, que se resumem na necessidade de previsão de fonte de custeio total, significa violar frontalmente dispositivos constitucionais aplicáveis ao tema, em especial o art. 195, §5º, da CR/88, aplicável à hipótese por força dos arts. 144 e 218 da Constituição Paulista.

         Essa legislação também malferiu os princípios da impessoalidade e da moralidade, ao permitir que pessoa determinada fosse contemplada com o recebimento de pensão.

         É de conhecimento geral que o homem público age em nome do estado, não podendo favorecer ninguém, sob pena de invalidade dos atos que produzir.                                                   

         E nesse caso, o administrador quis e o legislador municipal permitiu que recursos públicos fossem entregues a pessoa determinada, esquecendo-se de que no desempenho dos seus misteres não é possível o favorecimento de quem quer que seja.

         Em consequência, não só a impessoalidade foi quebrada, mas também a isonomia, pois o favorecimento de alguns em detrimento de outros importa descumprimento de um dos mais comezinhos princípios constitucionais, que é o de tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais.

        O princípio da moralidade também foi abalado, pois não se pode permitir que a administração pública aja sem isenção e ao arrepio do interesse público.

        Portanto, o agente estatal, incluído aquele que detém mandato eletivo está preso à observação das normas e princípios constitucionais, como previsto no art. 111 da Carta Estadual.

        E, no caso em exame isso não ocorreu. Ao permitir que o Município de Severínia custeasse pensão previdenciária a pessoa determinada, o legislador local afrontou os princípios administrativos da impessoalidade, da igualdade e da moralidade.

       Diante do exposto, nosso parecer é no sentido do acolhimento do incidente, reconhecendo-se a inconstitucionalidade das Leis Municipais ns. 846, de 08 de fevereiro de 1989, “que concede pensão mensal a ex-prefeito do Município e dá outras providências” e 1.613, de 27 de julho de 2005, que “dispõe sobre a concessão de pensão mensal às viúvas de ex-prefeitos municipais e dá outras providências”, ambas do Município de Severínia.

 

                            São Paulo, 09 de maio de 2011.

 

 

         Sérgio Turra Sobrane

         Subprocurador-Geral de Justiça

         Jurídico

vlcb